23 DE OUTUBRO DE 1898 – RIO DE JANEIRO: UMA TOURADA, POR VEZES, DIVERTIDA COM ALTOS E BAIXOS... (na imprensa brasileira)


 

Biblioteca nacional do Brasil

A tourada de hontem

Arte?!... Ora, a Arte!... Où va t’elle se nicher? N’uma praça de touros! Póde ser que assim seja na Hespanha e mesmo em Portugal. Mas no Rio de Janeiro? Aqui, onde a Arte, não se encontra nos seus respectivos templos, por mais que a procurem, fazer questão de Arte n’uma arena toureira?

E’ catonismo dispensavel, francamente.

Dispensavel mesmo porque póde chegar ás fronteiras do injusto. Que se façam exigencias onde tudo existe apparelhado para o nom exito, e se não exhibe o que é bom é porque não querem, sim, senhor. No caso, porém, das touradas no Rio de Janeiro a boa razão manda ser tolerante.

E’ o que temos feito, é o que faremos sempre. Não deixaremos de protestar só quando houver proposito de enganar o publico ou não se tiver para com elle o respeito que elle merece. Foi o que se deu algumas touradas atraz, en que houve um pouco de infelicidade misturada com pouco caso: é o que se póde dar ainda hoje, mas só pelo facto de ter constatado do programma uma sorte que não se realizou. O publico fica justamente amolado quando lhe promettem uma coisa para muito facilmente não lh’a dar. Foi o caso da cavalleira Josepha Goni, (NOTA: J. Goñi é uma das cinco niñas toureiras) que é á ultima hora deu parte de doente.

Tudo quanto a empreza não tenha seguranças de poder apresentar não deve garantir, porque causa um enorme máo effeito; ninguem a livra da pecha de haver enganado para attrair concurrencia.

Tudo mais o publico lhe tolera, porque elle o que quer é divertir-se. Desde que haja disciplina na praça (o que aliás não tem havido: hontem, até vimos um bandarilheiro de cigarro na bocca correndo um garraio), desde que haja empenho manifesto de agradar dando bons espectaculos, o publico fica satisfeito, e dá o devido desconto ás ligeiras imperfeições, áquillo a que os aficionados muito exigentes chaman falta de Arte.

Como é que se póde ter aqui as exigencias naturaes em Hespanha e Portugal, quando aqui tudo aquillo é exotico?

O touro é importado, fazendo uma viagem que muito o quebranta, e submettendo-se a um regimem de alfalfa e milho (tudo importado) que, alliado ao acanhamento de um curral coberto de zinco, muito deve concorrer para diminuir-lhe as qualidades.

O toureiro é attrahido ao Rio a poder de ouro. A certeza de que aqui não se coroam de glorias, e o terror da febre amarela, não deixa sair dos centros tauromachicos por excellencia os artistas que ahi tem nome feito e o pão garantido; e uma quadrilha que se consiga organizar para vir ao Rio, mesmo composta de Calabaças, é uma quadrilha de forasteiros que fica onerando a empreza, só trabalha quatro vezes por mez, e está louca para se fazer de vela.

E os cavallos? Quanto soffrem aqui esses animaes, e quantos se tem perdido na praça velha e na das Laranjeiras?

E’ licito considerar tudo isto para não exigir a Arte purissima, de uma empreza que está divertindo, effectivamente divertindo, a grande massa dos espectadores.

Ahi está o espectaculo de hontem. A primeira parte correu muito satisfatoriamente. Talvez não nos deixe mal nessa asserção o incontentavel João Matheus.


Apenas o primeiro touro andou mal com José Bento (de Araújo) ou o José Bento (de Araújo) com elle. Os demais cumpriram, e os artistas cumpriram tambem. Foi uma tourada como se póde ter com tudo... emprestado, tudo vindo de fóra. E, se dos artistas se póde dizer que essa circumstancia não altera, o mesmo não de póde dizer dos touros que são profundamente alterados, e não se podem substituir com facilidade.

A 2ª parte da corrida foi a parte grotesca: niñas e Pai Paulino. pois foi ainda interessante, divertiu e divertiu muito. Felizmente foi a ultima exhibição de garraios e mulheres de calças; mas o povo que não pagou para ficar macambuzio, serio, reverente, de joelhos diante da arte, riu até arrebentar os cós das calças. Sem ousar uma pateada, regalou-se com os baldões daquellas creaturas, que por amor de alguns mil réis vão offerecer o lombo ás marradas de uns bezerrotes de sangue máo.

Cruz, um dos beneficiados de hontem, fez uma lindissima sorte de gaiola, recebendo o touro com o Lisboa aos pés, e brindando a fera com um par de ferros admiraveis.

Os applausos foram estrondosos e geraes. O rapaz ficou que não cabia em si de contente.

Logo em seguida, porém, o touro maltratou-o. Indo Cruz fazer-lhe um passe de rodilhas, o animal colheu-o, e calcando-lhe o rosto com o pesunho deixou-o dolorosamente assignalado.

Não obstante, Cruz, que fôra retirado em braços, voltou á arena querendo continuar a lide, no que foi justamente impedido pelos companheiros e pelo intelligente, que desde o 2º touro era o actor Mattos.

Cruz recebeu varios presentes e entre elles uma capa de seda; na praça mostrou-se agradecido a Pechuga, seu mestre. Morenito recebeu tambem alguns brindes.

Raposo que toureou o 6º foi muito bem succedido.

In O PAIZ, Rio de Janeiro – 24 de Outubro de 1898