A tourada de hontem
A’s vezes n’uma praça de touros o publico é victima de uma burla inesperada. A companhia tauromachica mostra os melhores desejos de bem servir, mas o gado furta-se a toda a sorte, e não ha meio de se ter uma tourada em regra. Hontem foi o inverso, tourada magnifica e o amphytheatro com immensos espaços vasios.
Concorreram de certo para isso a festa da Gloria, que nunca deixa de ser um grande attractivo, e a circumstancia de se manter aberta a maioria dos estabelecimentos commerciaes de nossa praça. Foram logrados, portanto, os que lá não foram.
Hoje, naturalmente, dia desoccupado, outra será a
concurrencia.
A’s 3 ½ horas da tarde, o intelligente da praça mandou dar o signal para apresentação dos toureiros, entrando na arena a cuadrilha e os dois cavalleiros José Bento de Araujo e Alfredo Tinoco da Silva em soberbos corceis, ricamente ajaezados.
Feitas as solemnes continencias enthusiasticamente correspondidas pelo publico, Tinoco apresentou-se noutro cavallo e disposto a farpear o 1º touro que logo saiu.
Era um bom animal preto, ligeiro dos que a companhia trouxe de Portugal, escolhido entre os do creador Paulino da Cunha e Silva. Fez boa figura de bravo, e proporcionou a Tinoco sores felicissimas. Uma pega de cara terminou a lide a que o bicho se sujeitou e o publico ficou satisfeito.
O 2º touro veiu zangado; mas a sua colera não era provocada pela presença de Carlos Gonçalves e Luiz Homem. Elle tinha outros motivos que não revellou; e, justiceiro, não quiz exercer vinganças em quem não era culpado. D’ahi a falta de sortes. Quando lhe pegaaram á unha, não resistiu, submetteu-se e até deitou-se inoffensivo.
O 3º do creador Palha Blanco, de Portugal, foi lidado pelo espada Colon, que mostrou ainda uma vez a sua destreza e habilidade para citar a féra e fazer-lhe surpresas.
No intervalo que se seguiu foi largamente vendido um pequeno «orgão da arte tauromachica» Sol e Sombra, folha bem redigida e bem impressa de que já haviamos recebido um exemplar. Traz o retrato de José Bento (de Araújo) e algumas coisas de espirito.
O 4º touro, nacional, foi bandarilhado por Gonçalves da Silva, e deu que fazer. Cabeça alta e irrequieta, armação enorme, gargalhadas infinitas, até na péga, em que os moços de forcado andaram aos trambulhões.
O 5º, do Laranjal, tambem foi habilmente lidado por Luiz Homem e Manoel Brabo.
O 6º foi o grande touro do dia. Apresentou-se para farpeal-o o perfeitissimo cavalleiro José Bento (de Araújo), e o seu porte e a sua destreza arrancaram applausos justos de toda a assistencia. O touro arremettia sempre¸e o cavallo sempre sahia na tangente depois que uma farpa se firmava no cachaço do animal indomavel.
Durante essa corrida, levantaram-se os animos, e José Bento (de Araújo), com os seus feitos de perfeição, galhardia, perigo e firmeza de sella, foi alvo da mais estrepitosa ovação.
O publico saiu satisfeito, e reputou a corrida de hontem melhor do que as duas primeiras. A de hoje melhor será ainda, pois ha um animal para ser lidado por Tinoco e José Bento, juntos.
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O policiamento da praça não offereceu hontem os motivos
de critica dos demais dias, deixando de espalhar o povo que se agglomerava nos
pontos de entrada. Tambem, não havia agglomeração.
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O intelligente da praça foi soffrivelmente invectivado por alguns afficionados intransigentes, que não ficaram satisfeitos com certos pormenores. Se formos a achar-lhe algum defeito, será o de permittir que logo nos primeiros segundos se cubra um touro de farpas, obrigando a fazer recolhel-o com brevidade que podia deixar de ser tamanha.
Outra coisa de que não abusa esta companha é dos
accidentes artisticos que muito animam a corrida e muito divertem o publico.
Isso de vir o boi, farpeal-o, pegar-lhe á unha e recolhel-o, é muito
rudimentar, e póde ser sufficiente ne Hespanha, onde tudo se passa ao vivo; mas
n’uma corrida de touros embolados, o matiz funambulesco não é demais. Domingo
passado não houve a sorte da mega? Hontem não houve a ligeira sorte da vara?
Pois mais alguma coisa desse genero é bastante para acccidentar uma corrida.
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Uma coisa foi hontem notada com estranhesa: a ninguem foi permittido subir aos camarotes para cumprimentar familias que lá estavam. E’ esquisito isso. A gente é obrigada a ser insociavel n’uma praça de touros?
A excelente companhia deve se felicitar por ter reunido este anno dentro daquelle cercado pouco airoso uma sociedade muito selecta de cavalheiros e damas, que nunca haviam dado á praça a honra da sua presença; mas deve-lhes facultar os cumprimentos naturalissimos em uma assembleia de pessoas educadas.
Mas, á parte esses senões, restabeleçamos, concluindo,
a nota do bello divertimento de hontem.
In O PAIZ, Rio de Janeiro – 16 de Agosto de 1896