18 DE AGOSTO DE 1892 - "DA ABERTURA DO CAMPO PEQUENO AOS NOSSOS DIAS"

 



Quando, em 1888, começaram a circular os rumores de que a praça do Campo de Sant'Ana tinha sido vistoriada e dada por incapaz, os toireiros José Peixe, Rio Sancho, Calabaça e José Costa dirigiram-se ao Governo Civil com o fim de pedirem as obras tão necessárias ao edifício da dita casa de espectáculos. Foi-lhes respondido que o referido assunto estava afecto à proprietária da praça que era a Casa Pia. Sucedia, porém, que o Director dessa instituição, o Dr. Oliva, nada dizia, nem fazia, segundo revela José Peixinho no seu livro de memórias.

A antiga praça do Campo de Sant'Anna

Tomaram depois o caminho de Belém, onde o referido Director, ao ouvir as razões apresentadas pelos toireiros, incluindo os lamentos pelo estado de abandono a que chegou o edifício da histórica praça, se mostrou, a princípio, carrancudo, terminando por fazer algumas promessas agradáveis.

Duas vezes José Peixe foi à Casa Pia, conseguindo que se realizasse segunda vistoria, dando-se então, definitivamente, a praça por incapaz de funcionar. Peixinho, depois, elevou no seu cérebro a ideia da construção duma praça digna da capital e, nesse sentido, envidou enormes esforços. Fizeram-se representações; promoveu-se grande propaganda e até se alvitraram, para a edificação do tauródromo, vários pontos, entre os quais o alto da Avenida da Liberdade e o Campo Grande.

Entretanto, o deputado Carlos Testa, na sala do Parlamento, barafustava contra a ideia de tão importante nelhoramento citadino, chegando a propor a proibição das corridas de toiros, no que era acompanhado pelo Dr. Teófilo Ferreira, ao tempo vereador da Câmara Municipal de Lisboa.

A campanha movida pelos referidos antipatizantes do espectáculo taurino deu um resultado contraproducente porque, em muitos pontos do País, apareceram novas praças e a Festa propagava-se, notàvelmente, o que veio provar que o povo português gosta de toiros.

Nos meados de Setembro de 1889, José Peixe levou à presença do Director da Casa Pia o arquitecto Dias da Silva que, por sua vez, era portador do projecto duma praça de toiros que se pensava construir em Queluz.

O Dr. Oliva elogiou o trabalho do arquitecto e convidou este a elaborar um projecto de uma praça de harmonia com a categoria da capital, ao que Dias da Silva acedeu sem cobrar um vintém.

Os toireiros com José Peixe à frente, promoveram várias diligências junto dos ministros e da Câmara Municipal.

No gabinete do Ministro das Obras Públicas, cuja pasta estava confiada a Frederico Arouca, passou-se o seguinte caso, conforme a narrativa publicada nas «Memórias» do popular artista:

«A ocasião foi boa porque o encontramos acompanhado de diversos trunfos que nos prestaram o seu apoio. O ministro, todo gaiteiro, lembrando-se ainda dos seus tempos de rapaz, em que era forcado amador, perguntou ao Rio Sancho se ainda passava bem de capa as reses, por baixo, endireitando-lhes a cabeça para a pega.

Arouca afirmou interessar-se pelo assunto e não demorar o expediente da secretaria, e o DirectorGeral do Ministério das Obras Públicas elogiou o projecto, achando-o bem feito, pelo que o Dias da Silva ficou mui agradecido e todo inchado (sic)».

No mesmo ano, a Câmara Municipal, após renhida discussão entre os vereadores, aprovou a concessão do terreno para a edificação da praça, iniciativa que era apoiada pelos edis Dr. Bettencourt Raposo e Pinto Bastos, os ardentes defensores da causa.

A direcção da Casa Pia pôs a concurso a importante obra e, no prazo próprio, foi concedida à Empresa Tauromáquica Lisbonense que ficou com o exclusivo das corridas de toiros dentro da área de Lisboa durante 99 anos. De forma que em 1982 a referida instituição de Assistência tomará conta do circo.


Concessão do terreno à Real Casa Pia para uma praça de touros no Campo Pequeno
Hemeroteca Digital de Lisboa

José Peixe não quis fazer parte da comissão instaladora da referida empresa proprietária, pelo motivo de ser artista, indicando para o substituir Joaquim Pedro Monteiro.

A comissão fundadora foi constituída pelos seguintes elementos:

Albino José Baptista, Alfredo de Ascensão Machado, António Cardoso de Oliveira Júnior, Domingos Esteves de Oliveira, Eduardo Perry Vidal, Frederico Ressano Garcia, Guilherme Bizarro da Silva, João Cipriano R. Batalha, Joaquim Pedro Monteiro, José Antónion Fernandes Júnior, José do Espírito Santo Silva, José Baptista Pinhão, José Rodrigues Pires, Luís Reynaud, Manuel Gouveia Júnior, Manuel Alves Dinis e Manuel Luís Fernandes, cujos nomes ilustres se encontram perpetuados, no mármore, na fachada principal da formosa praça do Campo Pequeno. E a primeira direcção ficou desta forma organizada: engenheiro Ressano Garcia, Luís de Oliveira Calheiros (conde da Guarda), João Cipriano Roiz Batalha, Albino José Baptista, Eduardo Perry Vidal e Manuel Alves Dinis.

Apesar de não estarem concluídos os torreões, a cobertura das galerias e alguns trechos do exterior, a inauguração da praça realizou-se em 18 de Agosto de 1892.

Foi um dia de festa na capital alfacinha. E como se tratava de uma quarta-feira, muitos patrões tiveram de dispensar os seus empregados, e houve lojas que, a meio da tarde, tiveram de fechar, porque todo o pessoal foi aos toiros.

As reses eram possantes e pertenciam a Emílio Infante (pai), sendo lidadas pelos cavaleiros Alfredo Tinoco e Fernando de Oliveira (NOTA: O cavaleiro José Bento de Araújo esteve em França entre 1890 e 1893), pelos bandarilheiros Vicente Roberto, Roberto da Fonseca, José peixinho, João Calabaça, Rafael Peixinho, João Roberto e os espanhóis que permaneciam, há tempo no nosso país, Minuto e Pescadero.

A expressiva e cerimoniosa nota do momento solene da inauguração da praça, das mais lindas da Península, deu-a o velho Joaquim Pedro Monteiro que, descendo ao redondel e ao lado de Vicente Roberto, foi entregar o primeiro ferro que ali se viu cravar. Recebeu-o o cavaleiro Alfredo Tinoco, com o qual sangrou no alto do morrillo o primeiro toiro que saíu pela porta dos currais naquele dia memorável. Tudo quanto se seguiu naquela impoenente praça constitui um precioso conjunto de elementos para a história da casa a que fizemos já larga referência no nosso livro Fado, Mulheres e Toiros (1945) e nela palpitam factos e personagens que não são de esquecer.


Uma das muitas obras do jornalista Pepe Luiz

É precisamente essa história que vamos ampliar, servindo-nos de dados que nos foi possível obter junto de várias fontes que vieram reforçar o que possuímos no nosso arquivo, algo substancioso.

Desde já destacamos o amável e proveitoso acolhimento que nos dispensaram a Empresa Tauromáquica Lisbonense e a Sociedade do Campo Pequeno, Ltdª.

Retomemos a tarefa, revolvendo antigas crónicas, programas e volumes encaixados em velhos armários:

Quando da inauguração da Praça do Campo Pequeno, tínhamos apenas, vindos da do Campo de Sant'Ana, e, portanto, isentos de alternativa, os cavaleiros profissionais Manuel Mourisca, José Maria Casimiro Monteiro, Alfredo Tinoco da Silva, Fernando de Oliveira e José Bento de Araújo.


A nova praça de touros da capital
Hemeroteca Digital de Lisboa

A alternativa foi exigência aparecida na nova praça lisboeta.

José Pedro do Carmo, a este respeito, forneceu às Bandarilhas de Fogo estes curiosos elementos:

«Fidalgos na essência e por excelência ditavam leis nessa época, na arte de Marialva. Eram os nobilíssimos cavaleiros amadores D. Luís do Rego, visconde de Várzea, depois marquês de Castelo Melhor, Alfredo Marreca, Vitorino Fróis, visconde de Asseca, D. António Freire de Siqueira (S. Martinho), Carlos Relvas, D. António de Portugal, visconde de Alverca, D. José de Mascarenhas, D. Nuno de Almada, D. José Manuel da Cunha Meneses, D. Caetano de Bragança, Alfredo Anjos, visconde da Graça, etc., que apenas toireavam por sport, só para amigos e convidados em pequenas praças improvisadas, nas suas propriedades fora de Lisboa, ou então nas corridas de gala, chamadas toiradas de fidalgos, sem remuneração de espécie alguma, ainda muitas vezes reforçando do seu bolso a receita dessas corridas organizadas para fins de beneficência.

Dos cavaleiros que profissionalmente toireavam sem alternativa pelas praças da província, havia, apenas, Manuel Casimiro, Adelino Raposo, Fernando Ricardo Pereira, Francisco Simões Serra, Cristiano de Mendonça, José Maria do Lago e uma senhora de nacionalidade francesa, que fora discípula de J. (José) Bento de Araújo, de nome Clotilde Mayestrick.


Praça do Campo Pequeno

Como Manuel Mourisca e José Casimiro Monteiro estivessem um tanto afastados do toireio, e José Bento de Araújo andasse por Madrid, França e Brasil a cumprir os seus longos contratos, não fazia sentido que apenas Tinoco e Fernando trabalhassem em todas as corridas do Campo Pequeno.

Por este motivo era necessário abrir caminho aos novos, legalizando-lhes a situação de profissionais, o que se fez, tendo sido Manuel Casimiro de Almeida o primeiro que recebeu alternativa, em 21 de Agosto de 1892».

Nas efemérides de maior relevo da praça do Largo do Dr. Afonso Pena reza mais o seguinte: em 8 de Novembro de 1892 reapareceram e se despediram, segundo nos parece, os bandarilheiros fidalgos D. Diogo e D. Rafael Pina Manique, numa corrida em que entraram sócios do Clube Tauromáquico, entre eles os cavaleiros conde de S. Martinho e visconde de Várzea; e a 18 de Dezembro também se despediu dos aficionados de Lisboa Rafael Molina Lagartijo, el Grande, que trazia na sua quadrilha Juan Molina e Antolín.

Na segunda época do Campo Pequeno houve trinta e seis corridas, incluindo quatro nocturnas e quinze benefícios, e ainda, no meio desses festejos, realizaram-se as alternativas do cavaleiro Adelino Raposo e do bandarilheiro José Martins Azeiteiro.

Uma colhida grave se deu, que foi a do espada Juan Luiz Lagartija, que ficou com o crânio fracturado ao colocar um par de bandarilhas.

Em 23 de Abril Cara Ancha fez-se acompanhar pelo seu antigo bandarilheiro, nessa altura novilheiro, o Antonio Fuentes que anos depois se converteu em ídolo dos lisboetas. Estrearam-se também Faico que trazia os auxiliares Primito e Pulguita; Lobito, Fernando Gomez Gallo (pai de Rafael e de José); Bébe Chico e Guerrita reaparecia com o subalterno Almendro. Na tarde de 24 de Setembro, Carlos Relves farpeou na corrida promovida pela Imprensa a favor das vítimas do ciclone dos Açores. No ano seguinte, o célebre cavaleiro Manuel Mourisca ainda toireou com a sua habitual perícia.

Quase no final da temporada, anunciaram a sua despedida os notáveis amadores D. António Perestrelo e Dr. Duarte Pinto Coelho.

José Bento de Araújo revestia sempre o programa das suas festas com qualquer atracção e, então, ia buscar números desconhecidos em Lisboa. Em 1894, por exemplo, trouxe os saltadores landeses Marius Monier, Kroumir, Clarion e Bossu, todos exímios em dar saltos por cima dos toiros, uns com vara e outros sem ela, mas sempre com extrema agilidade e arte.

José Bento de Araújo no sul de França
Bibliothèque Nationale de France, Paris.

Na temporada de 1895, houve estas corridas: em 20 de Setembro, a promovida pela comissão do monumento ao grande jornalista Eduardo Coelho, na qual entrou Faico com a sua quadrilha completa de bandarilheiros e picadores; em 27 de Outubro, uma outra, a favor da Caixa de Pensões «Tauromáquica Portuguesa», espectáculo a que assistiu a excelsa actriz francesa Sara Bernardt; e foi por essa altura que começou interessando o nosso público a famosa parelha de reheliteros Rodas e Moyano.

Ainda em 1895, Emílio Bomba apresentou ao nosso público o seu irmão Ricardo Torres Bombita II, rapaz que estava dando os primeiros passos na Arte, e que mais tarde atingiu a celebridade; e Manuel Moursica voltou ao Campo Pequeno, ao lado do seu colega Adelino Raposo e de Emílio Torres Bombita I, para toirear na corrida organizada com o fim de se obterem fundos para a construção do Asilo de Santo António.

Em 1896, Guerrita, Antonio Reverte e Quinito conseguiram tardes de enorme sensação no Campo Pequeno e no ano seguinte registou-se na mesma praça uma grave colhida de Henrique Vargas Minuto.

Foi esta temporada fatídica para os Minutos porque outro Minuto, o bandarilheiro Filipe Aragô, encontrou a morte em resultado dum acidente ocorrido na tarde de 2 de Maio na praça da Covilhã.

Anote-se que na dita época começou a adquirir popularidade na afición portuguesa o célebre peão Patatero da quadrilha de Guerrita.

No ano de 1897 debutaram Parrao (acompanhado do peão El Americano) e Esteban Diaz que se apresentava vestido ao estilo da época de Goya, dava o salto de Martincho e toireava de capa.

Depois de adiada duas vezes, por motivo da chuva, na tarde de 14 de Novembro efectivou-se uma corrida de toiros de Carlos Marques com Antonio Reverte, Quinito, Emílio Bomba e Parrao. Também, nessa época, foi dado admirar a bela estampa do toiro Playero, o antecessor do Capirote.

Em 1898, a empresa realizou uma corrida comemorativa do centenário da Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia. Depois, revestia-se de grande esplendor uma outra, promovida pelo Clube Tauromáquico, em que saíram treze toiros de vários lavradores para os cavaleiros Alfredo Marreca, D. Luís do Rego, conde de S. Martinho e viscondes de Alverca e de Várzea.

Duas grandes corridas se celebraram também, nessa temporada: a do Instituto de D. Afonso e a do Congresso Internacional da Imprensa, havendo, na primeira, toireado os sócios do Clube Tauromáquico, e, na segunda, Algabeño (pai) e os cavaleiros Fernando de Oliveira e Manuel Casimiro que enfrentaram doze toiros de Máximo Falcão.

Causou sensação, em 20 de Agosto de 1899, o espada negro German de leon Facultades, natural do Peru, que fora bandarilheiro de Angel Pastor.

Na ápoca de 1900 estrearam-se os novilheiros Rafael El Gallo, Corcito e Chicuelo (pai) e também a troupe árabe marroquina Has Bragen, cujos elementos, montados em velozes cavalos, executavam uns exercícios próprios da sua raça intitulados «correr pólvora». E era de esperar que os tiros nunca mais acabavam!...

Em 1901, resultou concorrida, no dia 2 de Junho, a corrida em benefício da Assistência Nacional aos Tuberculosos, com doze toiros da Casa Bragança lidados pelos cavaleiros Luís do Rego, Vitorino Fróis, visconde de Alverca e conde de S. Lourenço; bandarilheiros Pedro de Figueiredo, Mário Duarte, D. Luís Lumiares, Simão da veiga (pai), Henrique Freire e Paulo David; forcados José Calazans, Pedro de Oliveira, João Marcelino de Azevedo, Pedro Navarro, Artur dos Santos e D. José Castelo Branco.

Vinda de Algés, onde deu corridas de doze toiros com os espadas Guerrita e Mazzantini e os melhores artistas portugueses, surgiu no Campo Pequeno, na temporada de 1901, a empresa formada por João C. R. Batalha, Artur Teles e Luís Gama, que bons espectáculos realizou, cooperando, numa parte deles, os espadas Emílio e Ricardo Bombita e Faico que obtiveram clamoroso sucesso.

Deve-se à dita empresa o facto de abrir a assinatura, pela vez primeira, nas praças portuguesas.

No dito ano, no dia de Santo António, o público ficou deslumbrado com a serenidade de Don Tancredo Lopez, anunciado como o Rei do Valor.

Nessa tarde estreou-se, também, o novilheiro Palomar Caro que se assutou tanto com o tamanho e hastes dos toiros de Estêvão de Oliveira, de Pancas — animais com os seus cinco anos no lombo — que fugiu para o hotel, havendo Manuel dos Santos, para salvar o mau passo da corrida, de toirear, nos três tércios, os mastodônticos bichos destinados ao espada referido.

No dia 7 de Julho, o popularíssimo toireiro Manuel dos Santos foi colhido pelo 7.º toiro o Esganado, de Faustino da Gama, que lhe ocasionou a fractura da perna esquerda. Seguiu para o hospital de S. José às 7 horas da tarde e ali ficou recolhido no quarto n.º 7!...

A 8 de Maio de 1902 a empresa promoveu um concurso de cavaleiros, com o prémio de 200$000 réis, e ao qual concorreram Fernando de Oliveira, Manuel Casimiro, Joaquim Alves e Simões Serra. Saíu triunfador o primeiro dos aludidos artistas.

O cavaleiro Joaquim Alves fez a sua festa artística em 15 de Junho, incluindo no programa um certâmen de bandarilheiros com um prémio de 200$000 réis para o triunfador. O resultado da votação foi o seguinte: Silvestre Calabaça, 1.298; Manuel dos Santos, 1.208; Jorge Cadete, 1.043; Torres Branco, 939; Tomás da Rocha, 669; José Martins Azeiteiro, 396.

Com o fim de socorrer as vítimas da catástrofe da Martinica, o Clube Tauromáquico realizou um espectáculo com os seguintes elementos: cavaleiros Vitorino Fróis e D. Luís do Rego, marquês de Castelo Melhor e D. Nuno Almada; bandarilheiros Pedro de Figueiredo, Mário Duarte, D. Luís Lumiares e Paulo David; e forcados Pedro de Oliveira, Artur dos Santos, João Marcelino, Luís Pimentel, F. Santos, João Caldas, Carlos Gonçalves (mestre de armas) e D. Rui de S. Martinho. Em 24 de Agosto foi a apresentação de Maria Salomé La Reverte (NOTA: O seu nome era María Salomé Rodríguez Tripiana, aliás "La Reverte"); em 28 de Setembro, a de madame Mayestrick; e também a festa artística de João e Silvestre Calabaça, realizando este o habitual quiebro com os pés metidos num chapéu alto.

Romão Gomes, cronista de toiros muito apreciado nesse tempo, fez-se empresário para realizar, durante o inverno, umas corridas económicas, chegando a apresentar os novilheiros Juan Ripoli Arosco, um valenciano simpático e bom toireiro; Juan Sebastián Chispa, o sevilhano El Tato, Chicorrito, vários cavaleiros amadores e toireiros portugueses profissionais. O negócio resultou ruinoso, em virtude de haver chovido em vários domingos de corrida.

Uma deslumbrante corrida de gala se efectuou em 6 de Abril de 1903 por ocasião da visita do rei de Inglaterra, Eduardo VII, em que entraram os cavaleiros José Bento (de Araújo), Fernando de Oliveira, Manuel Casimiro, Joaquim Alves, Simões Serra e Eduardo Macedo; os bandarilheiros Calabaças, Teodoro, J. Cadete, José Martins, T. Branco, Manuel dos Santos, Tomás da Rocha, e dois grupos de forcados.

Em Junho, a 7, houve um certâmen de ganadarias em que Faico e António Montes e os melhores cavaleiros e bandarilheiros portugueses lidaram toiros de Emílio Infante (pai), F. da Gama, marquês de Castelo Melhor e Correia Branco, de Coruche; e a 14, a da Assistência Nacional aos Tuberculosos, com os cavaleiros D. António de Portugal, Vitorino Fróis, marquês de Castelo Melhor e D. José mascarenhas; os espadas Emílio Bombita e Algabeño I; os forcados Artur dos Santos, J. Marcelino, Luís Pimentel, J. Caldas, Estêvão Pimentel, Carlos Peixoto, C. Gonçalves e Germano Martins, sendo os toiros da Casa de Bragança.

No mesmo ano realizou-se ainda mais o seguinte: a ascensão do balão «Portugal», tripulado pelo famoso aeronauta francês Mr. Emile Carton; a estreia, como novilheiro, de Manuel Bienvenida (pai); e, em 11 de Dezembro, a corrida à antiga portuguesa em homenagem ao rei de Espanha D. Afonso XIII, e cujo cartaz era composto pelos cavaleiros José Bento (de Araújo), Fernando de Oliveira, Manuel Casimiro, Joaquim Alves e Eduardo Macedo; os bandarilheiros Calabaças, Cadete, J. Martins, T. Branco, Manuel dos Santos, Teodoro e Rocha; e dois grupos de forcados. Os toiros eram de Luís Gama.

1903 - José Bento de Araújo na corrida à antiga portuguesa em homenagem ao rei de Espanha
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Em 1904 houve uma data triste, que foi a de 12 de Maio, na qual perdeu a vida o célebre cavaleiro Fernando de Oliveira quando lidava um toiro do marquês de Castelo Melhor. Na corrida também colaboraram José Bento (de Araújo), Joaquim Alves e Simões Serra e os diestros Ricardo Bombita, Chicuelo (pai) que se faziam acompanhar dos afamados peões Antolín, Enrique Alvarez Morenito, Paco Sanchez Currinche e Eduardo Borrego Zocato, que depois foi apoderado de Chicuelo II, seu sobrinho. A propósito deste infausto acontecimento, fazemos uma larga descrição no livro Ao Estribo.

O grande cavaleiro Fernando d'Oliveira
Fonte: Illustração Portugueza, 16 de Maio de 1904

Na tarde de 26 de Março de 1905, efectuou-se uma corrida de grande aparato, quando da visita do Imperador Guilherme II, e no dia 18 de Junho realizou-se a memorável corrida a favor da Assistência Nacional aos Tuberculosos, com Ricardo Bombita e os melhores elementos do Clube Tauromáquico.

Para 30 de Julho estava anunciada a festa do bandarilheiro Silvestre Calabaça e o reclame subiu ao alto da retumbância, porque nessa tarde se estrearia Bahs Lessps, designado o Espada Boer.

(NOTA: O nome correcto do artista é Kregel Bahs Lesseps. O seu perfil pode ser consultado aqui: https://www.diariodecadiz.es/opinion/articulos/Insolitos_0_483852366.html

Eis o resumo da tourada mencionada por Pepe Luís, que foi publicado na revista "TIRO E SPORT", datada de 15 de Agosto de 1905:


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THEATROS, CIRCOS, ARENAS E VELODROMOS

Chronica tauromachica

NA PRAÇA DO CAMPO PEQUENO: — Uma corrida tormentosa — A festa de Torres Branco.

Cheia de episodios a corrida que em festa de Silvestre Calabaça se realisou domingo 30, no Campo Pequeno e que teve uma grande enchente devido certamente á apresentação do pseudo espada boer.

Lidaram-se, ou para melhor dizer sahiram da gaiola dez animaes feios, pequenos e faltos de carnes e que á excepção d'uns tres que não passaram de regulares, nada mais fizeram do que mostrarem-se mansos.

Como acima dizemos o pseudo espada e talvez até pseudo boer Kregel Bahs Lesseps era o principal attractivo da corrida — attractivo este mais proprio de figurar n'um cartaz de Algés ou Sacavem.

Kregel, que tem uma figura sympathica conservou-se o mais tempo que poude dentro da trincheira e só quando o publico o reclamou é que saltando ao ruedo deu uns passes de capote em que logo mostrou os seus fracos recursos. Pegando no capote e na muleta confirmou que nada sabia ao dar uma especie de passes de que sahiu illeso por obra e graça do Espirito Santo.

No touro que competia á sua cuadrilla a qual era composta de Pescaderito que ha muito reside entre nós e d'um completo maleta, o publico reclamou que elle bandarilhasse e como se negasse a isso dizendo-se doente, o sr. major Dias chamou-o ao camarote da auctoridade e fez-lhe, diz-se, o seguinte ultimatum:

— Ou bandarilha ou vae preso.

Não sabemos se isto assim se passou, pois o que apenas vimos foi o pobre boer ser chamado ao camarote da auctoridade, estar ali fallando com o sr. Dias e apparecer depois na trincheira guardado á vista por um chefe de policia e pegar n'um par de bandarilhas com o qual foi para a cabeça da rez, sendo em seguida colhido e levado em braços para a enfermaria.

Não sabemos em que se fundou a auctoridade para obrigar o pobre boer a bandarilhar, pois que nem no cartaz nem no programma ou detalhe da corrida estava marcado que ele bandarilharia. Foi um erro imperdoavel ou um abuso, tal ordem, e portanto perguntamos a quem caberiam as responsabilidades se Kregel tivesse tido uma colhida grave ou que o inutilisasse.

Os cartazes e programmas tambem estavam mal visados, pois que não diziam, como cremos ser obrigatorio, se o espada era matador de touros ou de novilhos.

Mas vamos á corrida e deixemos em paz todas estas trapalhadas.

Em primeiro logar fallaremos do sr. Antonio Nobre Infante que se apresentou como amador mas que nos dizem vae dedicar-se á vida de cavalleiro tauromachico.

Está bem a cavallo e mostra saber algo de equitação, (cousa já rara de ver nos que se dedicam ao toureio a cavallo), tendo tido ferros bem apontados, um dos quaes o primeiro que espetou, e sendo para lastimar que por vezes se atravessasse no caminho do touro, o que é anti-artistico. Um pouco mais de clama e pratica e virá a ser um dos nossos bons artistas.

Manuel Casimiro e Fernando Ricardo Pereira tanto nos touros a sós que cada um teve, como depois no touro a duo, cravaram alguns ferros á meia volta e á garupa, de escasso merecimento.

Dos bandarilheiros ha a notar o bello trabalho de M. dos Santos e Rocha em que brilharam bastante e tiveram bellos pares; um cambio á gaiola e uns pares no quinto touro, do beneficiado; um par magistral de Pescaderito; uma boa gaiola, de Torres Branco; um par de José Martins, etc.).

O toireiro não era boer, mas sim catalão que vivera em França, durante algum tempo e depois, para governo de vida, se lembrara de deixar crescer as barbas até ao peito, e pôs-se a toirear por essas praças. Apesar de o povo propalar que nesse dia acabaria o mundo... fomos aos toiros com o autor dos nossos dias, e encontrámos o Campo Pequeno à cunha. O pior aconteceu quando o loiro catalão, de boa figura, e largo chapéu com a aba esquerda pregada a um lado da copa, estava começando a toirear: o bicho colheu-o com violência, e o espada nunca mais apareceu, sendo o Manuel dos Santos quem carregou com o resto da corrida.


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Outro espectáculo de gala se realizou no dia 28 de Outubro de 1905, em honra de Mr. Loubet, Presidente da República Francesa. Os toiros eram de Castelo melhor; e o pessoal artístico o seguinte: cavaleiros Manuel Casimiro, Ricardo Pereira, Eduardo Macedo e José Casimiro; e os espadas Quinito e Machaquito.

Em 1906 ficaram maltratados, durante a sua actuação, em vários espectáculos, os espadas Gallito e Cocherito de Bilbau, os bandarilheiros João de Oliveira — na tarde da estreia — José Martins Azeiteiro, o picador Angelo Sanchez, e o cavaleiro António Infante no dia do benefício dos toireiros inválidos, em que se apresentara como forcado.

No dia de Santo António de 1906 efectuo-se uma corrida à antiga portuguesa em homenagem ao Clube dos Fenianos, do Porto, promovida pelo Grande Clube de Lisboa que tinha a sua sede na parte do Palácio Foz onde mais tarde funcionou uma popular casa de espectáculos de variedades, com entrada pela Calçada da Glória, que encerrou as suas portas quando dum incêndio que ali irrompeu em 1928.

A 19 de Agosto, seguinte, realizou-se o benefício dos toireiros inválidos João Calabaça, João do Rio Sancho, Manuel Botas e José Santos da Mulateira, e em que os artistas no activo inverteram os papéis. Ferreira Estudante fez de cavaleiro e Cadete de cabo de forcados. Em 1907 tivemos o Manolete, pai do actual fenómeno; num dia de 1908, reapareceu o mestre cavaleiro Manuel Mourisca numa festa de Torres Branco; e na mesma temporada, Morgado de Covas perdeu, em virtude duma colhida, um bom cavalo de combate.

Na temporada de 1909 registaram-se vinte e três corridas — uma delas com o famoso mexicano Rodolfo Gaona —, sendo seis nocturnas. Foi neste ano que o empresário Luís Lacerda se lembrou de levantar uma praça de toiros em Cacilhas que poucos anos funcionou.

Em 1910 o número de corridas subiu a vinte e nove no Campo Pequeno, das quais se contaram dez nocturnas.

Na tarde de 8 de Setembro estreou-se em Lisboa o madrileño do bairro de Vallecas e denodado lutador Augustín García Malla, assim apodado porque o seu avô se dedicava ao fabrico de malhas de variadas qualidades. O referido diestro morreu, vítima duma cornada no estômago, por ocasião duma corrida na praça francesa de Lunel, em 1920.

Na segunda-feira 17 de Outubro foi solenizado o advento da República com uma corrida de cujo programa fizeram parte os cavaleiros Eduardo Macedo e Morgado de Covas e o espada Malla; e no domingo 23, seguinte, outra corrida se verificou, mas com o objectivo de socorrer as vítimas da revolução. Os toiros foram de Emílio Infante e com eles se entenderam sete cavaleiros, oito bandarilheiros e um grupo de forcados, sendo o espectáculo abrilhantado pelas bandas da Armada e de Infantaria I e pela charanga de Artilharia I. Eis a nota do pessoal artístico: cavaleiros João Marcelino, José Bento (de Araújo), Manuel Casimiro, Adelino Raposo, Eduardo Macedo, José Casimiro e Morgado; bandarilheiros, Teodoro, Cadete, Manuel dos Santos, Rocha, F. Xavier, R. Tomé, A. Vieira e João de Oliveira.

In LISBOA DAS TOIRADAS, Pepe Luis, Livraria Popular de Francisco Franco, Lisboa - s.d.

ECOS DOS VELHOS TEMPOS DE LISBOA - AS ESPERAS DE TOIROS E OS COSTUMES QUE SE PERDERAM

 


A entrada do gado, a pé, no dia ou na véspera das corridas, feita com aquela vida, aqueles movimento e vibração próprios dos espectáculos de esplendente, ruidosa e colorida realização, foram, e serão sempre, o motivo de grande atracção no povo português.

Campinos, cavaleiros, toiros e cabrestos, o povoléu que corre e grita, veículos dos mais variados que deslizam nas estradas e nas ruas, as janelas, muros e árvores a abarrotarem de gente que ferve de entusiasmo, tudo isto constitui um quadro de tintas fortes e cambiantes luminosos que a nossa retina fixa a par dos episódios pitorescos que tantas vezes sucedem.

Referimo-nos apenas a esse cortejo, exuberante de cor, que á a entrada dos toiros, e não à largada de cornúpetos de hastes limpas, nas ruas, como número planeado.

As esperas de gado vêm das épocas seculares em que os animais bravios viviam à solta nos campos e rude era a tarefa de conseguir a quantidade destinada aos torneios em que os toiros constituíam importante elemento. E sempre a passagem da manada era motivo de regozijo popular.

O tempo foi rodando e hoje já não existe a necessidade de caçar os toiros bravos, porque são criados em propriedades vedadas e a sua reprodução é feita segundo especiais características de tipo e de sangue.

Em Lisboa, as esperas foram uma das mais surpreendentes diversões da rapaziada do século passado (XIX), muito especialmente no tempo da praça do Campo de Sant'Ana.

Uma chusma de tipóias e cavaleiros dirigia-se na véspera da corrida para as Marnotas, ao encontro dos toiros que ali repousavam desde manhãzinha.

Dali partia o cortejo, seguindo pela Calçada de Carriche, Estrada do Lumiar, Campo Grande, e a manada descansava nas imediações do palácio Galveias, ao Campo Pequeno. Dada a meia-noite, tudo se preparava para tomar rumo para Arroios, Santa Bárbara e Campo de Sant'Ana, e à ordem do maioral lá iam os toiros na ponta da unha, com o ruidoso acompanhamento de campinos marialvas, povo, carruagens puxadas por velozes parelhas enguizalhadas e sempre na mão de hábeis batedores, que ansiavam obter o troféu da bandeirinha branca que se encontrava na porta do cavaleiro da praça de toiros, que existiu onde se ergue hoje a Escola Médica.

O palácio Galveias, no Campo Pequeno, e o frondoso ulmeiro, à sombra do qual tantas vezes descansaram os toiros lidados no Campo de Sant'Ana.

Esse costume lisboeta já se apagou há muito, e a propósito damos a palavra a José Pedro do carmo, que, no livro Toiros — Arte Portuguesa, diz o seguinte:

 «Com a demolição da praça do Campo de Sant'Ana acabaram em Lisboa as saudosas esperas de toiros.

Algumas vezes vieram desenjaulados para o Campo Pequeno os curros destinados a este tauródromo, mas em nada se assemelhava essa condução de gado bravo às que em tempos idos foram as genuínas esperas».

A praça do Campo de Sant'Ana foi demolida em 1889; a do Campo Pequeno inaugurada em 1892, e já em 1896 o erudito aficionado Manuel Ferreira de Barros se queixava:

«Que diriam o conde de Vimioso, o marquês de Castelo Melhor e o conde da Anadia e outros, se vissem os toiros enjaulados!

As guitarras da Severa e de outras figuras chorariam plangentemente a abolição das suas queridas esperas de toiros».

Com a perda de tal costume, calaram-se as guitarras e as vozes do sentimento e da alegria que predominavam nos centros de animação que eram os retiros que havia desde o Senhor Roubado, passando pelo «Colete Encarnado», até o velhíssimo «João do Grão», casa que existiu perto do local onde foi construído o Instituto Bacteriológico.

Dessa velharia mantém-se hoje apenas o «Quebra-Bilhas», no Campo Grande, o «Altinho» no Largo do Mitelo, e pouco mais.

Ainda é principalmente o Ribatejo, com a ardência do espírito da sua gente, que vai resistindo à onda avassaladora que tende ao desaparecimento das festas de características bem nacionais em que figura a espera de gado. Moita do Ribatejo, Vila Franca de Xira — que marca na heráldica com o seu «Colete Encarnado» e correspondente àquele entusiasmo com que Alcochete ostenta o seu «Barrete Verde» e amanhã Santarém erguerá o seu «Pampilho de Oiro».

Na verdade apreciamos as entradas de toiros, mas sem os exageros deploráveis que não oferecem interesse algum.

Lisboa transformou-se; é uma sombra do passado. Apagaram-se tradições dum curioso pitoresco.

E, a propósito, o crítico de Arte e olisipógrafo de grande relevo que foi Nogueira de Brito, queixava-se e com funda razão no prefácio do livro Evocações do Passado de José Pedro do Carmo, publicado há alguns anos:

«Lisboa foi a pouco e pouco perdendo a sua feição de terra despreocupada, onde havia uma ingenuidade da diversão popular que a recomendava, e até a engrandecia, a olhos de nacionais e estrangeiros.

E tudo sofreu o embate, a cilindração do progresso, tornando difícil a expansão das camadas populares condenadas a esse arremedo de europeização.

Subúrbios e até alguns pontos relativamente centrais da Lisboa oitocentista sofreram a derrocada de recantos simpáticos, de usos inofensivos, mas gratos ao povo alfacinha e, como por encanto, a cidade transformou-se.

O camartelo demolidor arrancou das velhas paredes caiadas os sugestivos registos de azulejos, tão nossos, esventrou desalmadamente trechos de carácter citadino tradicional e, tomando conta de tudo, condenou hortas e locandas, arrasou vergéis e recantos floridos e a própria sombra do arvoredo caseiro foi atirada para longe para que, nas paragens onde ela benèficamente protegia gente pacata ou buliçosa, se erguessem caixotes esburacados de janelas uniformes a fingir da grandeza arquitectural.

Acabaram os retiros dos arredores que deixaram de o ser, as guitarras, e os seus cantores e essa Arte a valer, que não era incompatível com as horas alegres do povo, arrebicou-se».

É assim mesmo. E não se pense que a radical transformação, por que Lisboa passou, data de há muito tempo. Não senhores: há uns quarenta anos. Desde então que se está verificando acentuada mutação na fisionomia citadina.

Os costumes, esses então, vêm sofrendo uma modificação considerável. O povo vivia e divertia-se de outra maneira.

Daqui a muitos anos ainda se falará, com saudade, do Suíço, um dos mais típicos cafés taurinos de Lisboa.

No desfiar das recordações de longínquos tempos, acode-nos à memória o Café Marrare, que era um centro do marialvismo e gente de teatro, junto do Hotel Francfort de Santa Justa; a cocheira do Espanhol na Rua dos Correeiros, onde eram alugadas montadas a alguns amadores do toireio e aos passeantes da Avenida, do Campo Pequno e do Campo Grande que transitavam pelas portas do Rego que desapareceram, passando, mais tarde, o maior movimento a fazer-se pela Avenida da República¸as damas de tournure; os cavalheiros de sobrecasaca cintada e chapéu alto; a rapaziada de calça apertadinha e madeixas puxadas para a testa; os janotas do Chiado; os batedores das tipóias cujas parelhas feriam lume nas calçadas, esses clássicos veículos que nos inspiraram um capítulo do livro Fado, Mulheres e Toiros; os bailes de máscaras no Salão da Trindade, nos Teatros de D. Amélia, D. Maria, Real Coliseu e no das Portas de Santo Antão, com as suas habituais cenas de pancadaria de que eram protagonistas brigões enciumados; os retiros instalados em pitorescos rincões sitos fora de portas: «Perna de Pau», «Zé dos Pacatos», «Águia Roxa», «Fonte do Loiro», «O Casaca», perto do local onde fica hoje «Montanha», «Tia Iria», «Caliça», e nestas casas era praxe, em quarta-feira de Cinzas, confraternizarem toireiros e artistas de teatro.

Ali apareciam guitarristas das mais variadas condições sociais, que desferiam notas de cristal nas suas banzas da forma dum coração, para acompanharem, nos seus expressivos fados, o Caixinhas, a Amélia das Laranjas, a Júlia Florista, a Júlia Mendes, a Maria Vitória, etc., que cantavam sem o objectivo de exercerem profissão fadista, mas simplesmente para darem ao ambiente uma feição portuguesa, enternecendo os ouvintes e a si próprios.

Mais nos fala a lembrança dos verdes anos da mocidade: as toirinhas e as cavalhadas; os cafés cantantes — com o virtuoso da guitarra Luís Petrolino, o mestre do Armandinho — o concerto Chat Noir, da Rua do Alecrim, casas em que a juventude folgazã se divertia na época que antecedeu ao aparecimento dos clubes Maxim's, Magestic, Bristol, Palace, Mayer e outros, e para onde debandaram os frequentadores alegres daqueles cafés que eram sucessores dos antigos botequins; as feiras de Alcântara e Belém, derivadas da outra das Amoreiras e seguidas pela de Agosto na Rotunda, e de Santos, e, modernamente, pela que o diário O Século organiza, há quatro anos, no parque José Maria Eugénio — onde há trinta e tantos anos funcionou o Jardim Zoológico e o velódromo —, a favor da sua notável obra de assistência da Colónia Balnear Infantil.

No velódromo de Palhavã assistimos a algumas corridas com Belo de Almeida e a outras do memorável campeonato internacional, a que concorreram o nosso José Bento Pessoa, o ás dos ciclistas portugueses desse tempo, e os franceses Jacquelin e Buisson.

Já que falámos das feiras populares de Lisboa transitemos para o teatro de revista que constituía um prato indispensável e saboroso para o povo que ali buscava horas de distracção. Nesse género de teatro havia escritores da especialidade — autênticos continuadores do Jacobety — o Penha Coutinho, o Baptista Dinis, Celestino da Silva, Lino Ferreira, o Artur Arriegas, nosso inesquecível amigo, que era um poeta romântico — provou-o no seu livro de sonetos Neurasténicos — e que, em certa altura, se dedicou à feitura  de obras de teatro ligeiro e de semanários humorísticos, alguns da sua propriedade, e outros apenas da sua direcção.

O toireiro Manuel dos Santos também meteu no Teatro Chalet, da feira de Alcântara, a revista «Colhido e volteado» que deu uma boa série de representações; porém, uma das mais gritantes que se representaram nas feiras foi a «Zás, trás, pás».

Nesse tempo estavam na berra os artistas dessa classe de teatro: Isabel Tainha, Perpétua Viegas, Júlia mendes, Rebocho, Eusébio de Melo, e outros mais.

As últimas revistas de que nos lembramos nos teatros da feira de Agosto foram: «A Espiga», «Zig-Zag» e «Águas de Bacalhau» e para algumas destas obras compôs música dum popular encanto o devotado amigo, que não olvidamos, o maestro Alves Coelho.

Na voragem destruidora dos costumes de outras eras, foram-se as tardes em que as famílias iam para a Avenida da Liberdade ver passar as equipagens, cavaleiros e amazonas que à toirada se dirigiam; as festas artísticas dos toireuiros; os bandos anunciadores das corridas que tanta vida emprestavam aos bairros populares; os pregões alegres dos mil vendedores de tanta coisa de que se necessita na casa de cada um; os círios da Atalaia; os bailes campestres; as marchas buliçosas que consecutivamente passavam sob as nossas janelas nas noites dos santos populares; campeonatos dos desportos nacionais que eram o jogo de pau e o chinquilho de tão populares tradições; os grupos dramáticos das sociedades de recreio, de onde saíram tantos actores; o próprio Carnaval com o seu frenético movimento, e o bom gosto na apresentação de carros tirados por belas parelhas e guiados por adniráveis mãos de rédea como eram José Libânio, Ribeiro da Silva, João Barral — o tal que mandou construir uma vitória propositadamente para transportar o Guerrita em dias de corrida de toiros —, o Colares, o João Bregaro, o conde de Fontalva, o Anastácio Fernandes, o Dias Amado, das tisanas, etc.; a dança da luta , com as suas acrobacias executadas por homens da Bica vestidos de gladiadores romanos; as cegadas; os batalhões de Alfama e doutros bairros; e os da estudantada que atravessavam a cidade no meio de geral hilaridade, nas vésperas do Entrudo; os marialvas montados em lindos corcéis seguidos dos mestres de equitação Gagliardi, D. José Manuel da Cunha Meneses, António Correia, Miranda, Chaves e, por último, o José Mota e Carlos Telhado. Tudo foi para as regiões misteriosas do olvido!...

Já vão longe as temporadas anuais da ópera em S. Carlos; da alta comédia e da boa zarzuela no D. Amélia, depois República e agora Cine S. Luís; de opereta no Trindade e Avenida; dos cavalinhos no Coliseu da Rua da Palma e depois no das Portas de Santo Antão; de farsa no Ginásio; das peças históricas no D. Maria e dos dramas de faca e alguidar, do género grand-guignol, que fazia chorar as pedras da calçada... no Príncipe Real, hoje Apolo, e das revistas baptistinianas no Rato. E com isto também se foram as caricaturas fustigantes dos costumes e da política que saíam do lápis extraordinário de Rafael Bordalo Pinheiro, Celso Hermínio, Leal da Câmara e Jorge Colaço.

Até desapareceram das ruas desta cidade de mármore e granito esses tipos com quem topávamos constantemente: o rei da madureza, sapateiro e poeta; o José Augusto, dos sermões; as manas Perliquitetes; o Gaspar da Viola; o Anão dos Assobios; o Sr. Daupiás; o Santa Casa está roubada; o Luciano das ratas; o Homem dos abat-jours que apregoava o seu artigo com voz de tenor; a tarinta réis e a pataco... b... a... ra... a... to... o... o! e que pelo saudoso empresário Taveira, da Trindade, foi aproveitado para uma revista de Eduardo Schwalbach; o Tim das flores; o Vertical; o Comboio das onze — que ainda não há muito tempo o vimos, sempre a nove, cosido com as paredes a conversar consigo próprio; o Ravachol, o palrador que estava plantado num estrado, à entrada dos teatros das feiras populares, a chamar gente; o Pálidas Madrugadas; o Oportuno, com o seu bonèzinho de pala e que era um alho para descobrir namoros e oferecer os seus serviços na troca de correspondência dos bem-amados, sim, porque nesse tempo não havia telefones! Os comunicados eram todos feitos à força de missivas perfumadas!

Também tivemos o Burnay, um boémio incorrigível, muito delgadinho, como os cigarros que chupava, sempre altivo, e espirituoso na conversação; e subia e descia diàriamente o Chiado em busca de amigos e conhecidos a quem pedia emprestada aquela coisa com que se compram os melões, e por tal razão lhe chamavam o Precurador Geral das Coroas! Foi-se o Tremidinho, e hoje temos o Zé Maria, o Cauteleiro fardado, que se expressa em latim como fosse formado nalguma faculdade, o que não é de admirar, dada a quantidade de anos que esteve empregado numa casa de comidas, em Coimbra, muito frequentada pelos estudantes da Universidade. «Hoc opus hic labor est», exclama ele agora para vender as várias fracções de lotaria, o que lhe já vai sendo difícil pelo peso dos anos que lhe está quebrando o desembaraço.

Os anos passam, a idade derrota a vida, e todos seguem o caminho das malvas — passe o plebeísmo — não há dúvida. Mas o certo e que a esses tipos não se seguiram outros com o mesmo espírito, com aquele pitoresco e originalidade que dão carácter a determinados ambientes.

Mas apareceu o fado industrializado, à sombra do qual algumas damas se apresentam nos tablados recamadas de jóias, envergando sedas e a cantar sambas, tangos e o «Antonio Vargas Heredia» num flamenco... estilo mascavado!

O modernismo arrasou o melhor que o passado nos legara.

Várias vezes ouvimos pela radiotelefonia a transmissão de diversos serões festivos. Pois uma coisa nos produz estranheza: é que as ovações mais calorosas, que afogam as goelas dos difusores, estalam depois de se ter ouvido um swing, um fox... Uma loucura!

E dizem-nos que isto são expansões da rapaziada e da raparigada que frequentam os bailes. É sintomático. Precisamente à juventude é que se torna necessário dizer que o nosso país possui música linda que não deve ser preterida pela dos sertões!

O progresso desfez tantos e tão interessantes costumes da nossa terra, mas, em substituição, trouxe-nos os cabeleireiros de senhoras e bares para as acanhadas ruelas da Moiraria e Alfama e outros bairros de gente do povo; as damas pintadas das pontas dos cabelos às unhas dos pés; o êxodo do ambiente familiar, etc. E depois ribomba, constantemente, o trovão da vida cara!

Por muito tempo que vivamos, sempre se nos apresentará a visão dos quadros típicos do povo da terra lisboeta e as colinas recamadas de casinhas com os seus telhados vermelhos e de roupa branquinha às janelas.

Não esqueçamos o pitoresco e o ar castiço da velha cidade «cuja graça é Lisboa», ainda não há muito cantada pelo nosso estimado amigo de muitos anos e excelso escritor Bourbon e Meneses, em prosa cristalina tecida com mão de mestre na sua tebaida onde entra o perfume das florinhas que, enamoradamente, cultiva, ali, na vertente do Castelo, mui pertinho da portuguesíssima Rua da Saudade, nossa vizinha há cerca de meio século.

In LISBOA DAS TOIRADAS, Pepe Luis, Livraria Popular de Francisco Franco, Lisboa - s.d.

1 DE ABRIL DE 1888 - LISBOA: O CAVALEIRO JOSÉ BENTO DE ARAÚJO NA ÚLTIMA CORRIDA DA PRAÇA DO CAMPO DE SANT'ANNA


 

A PRAÇA DE TOIROS DO CAMPO DE SANT'ANNA



A antecessora do actual Campo Pequeno levou um ano a construir e teve meio século de doirada existência

Está provado que a primeira praça de toiros que houve em Lisboa, e de certa duração, foi a da Junqueira, inaugurada a 8 de Julho de 1738, com os cavaleiros duque de Cadaval, marquês de Alegrete, marquês de Távora e Manuel Sampaio de Melo, que toireavam a rojão, auxiliados por quatro «capinhas» ou «toireiros volantes».

Tudo isto foi devido à ideia de se manter os espectáculos de outrora, em que prevaleciam a elegância e o arrojo de titulares, que bem cavalgando, cravavam garrochões no alto do cachaço de bravas e corpulentas reses.

As toiradas da Junqueira eram alternadas com jogos de cavalaria, em especial as canas e alcanzias, todos eles constituindo manifestações de destreza, com formidáveis alardes de equitação, em que os portugueses sempre foram primorosos.

Nas corridas de toiros realizadas na dita praça, na primeira metade do século XVIII, vigorava a usança de o cavaleiro se apear quando era desfeiteado pelo toiro em rude arremetida, para valentemente, em luta arriscada, cravar o estoque ao adversário, que tombava vergado ao ímpeto vigoroso dum esforço.

Dos cavaleiros aristocratas de então havia um que sobrelevava todos: o 3.º duque de Cadaval, que ocupou o lugar de estribeiro-mor da corte de D. João V e foi habilíssimo no toireio a cavalo e também no de pé, que nos terreiros e praças estava alvorecendo.

Na segunda metade do século XVIII, cerca de 1763, foi edificada, no local onde está hoje o Jardim da Estrela, uma praça de toiros, efectuando-se ali corridas com a antiga pompa, e uma se recorda que foi a comemorativa do natalício do príncipe da Beira, o filho de D. Maria I.

Toirearam exímios cavaleiros portugueses; um espada, peões auxiliares (capinhas) e picadores espanhóis; e cooperando também na função robustos moços de forcado, todos rapazes da Borda d'Água.

Noutros brincos de toiros se salientaram o cavaleiro João Gambeta e capinhas espanhóis.

No Campo de Sant'Ana houve, por volta de 1767, uma praça na qual deram nota destacada os cavaleiros António José de Araújo Gramato e José Soares Maduro; e o intervaleiro «Coxo de Benavente».

À roda do ano de 1771 realizaram-se toiradas nos terrenos juntos ao palácio do marquês de Louriçal, cerca do actual Largo da Anunciada, e onde, mais tarde, existiu o Passeio Público que precedeu à parte da entrada da Avenida da Liberdade.

De 1790 a 1830 realizaram-se toiradas na praça do Salitre, que existiu a meio da actual Avenida da Liberdade, defronte da entrada da rua que deu o nome ao circo referido, o qual teve na sua inauguração a presença do príncipe D. João — que mais tarde subiu ao trono sob o título de D. João VI —, da sua comitiva completa e do famoso intendente Pina Manique. No Salitre ficou memorável a actuação dos cavaleiros Gambeta, Sousa Belo, Máximo Veloso e João Grilo, os espadas portugueses Faria, Joaquim Grilo, Roquete, Mendonça, Bacharel, que estoquearam de verdade; e capinhas, os primitivos Calabaças e Cadetes.

A referida praça terminou os seus dias adaptada a espectáculos de teatro e de circo.

No Poço dos Negros, perto do Beco do Carrasco, em 1818, foi levantada também uma praça de toiros, de que era proprietário José Pimentel Bettencourt.

Apeada a referida praça do Campo de Sant'Ana, uma outra foi erguida no local onde está hoje a Escola Médica e que constitui berço artístico de muitas figuras da tauromaquia nacional. Então as corridas tinham doze e treze toiros, alguns mastodônticos, dizem as folhas do tempo. Um documento curioso afirma que nas primeiras fases do Campo de Sant'Ana toireava-se de lenço atado na cabeça e de cigarro na boca, e o neto era alvo de todas as chufas e o mais apupado depois da autoridade. Não havia inteligente e os toireiros sabiam menos, mas trabalhavam mais!...

O traje de luces e a montera, marcando a elegância do lidador de pé, só apareceram no penúltimo quarto do século passado e a ciência taurina progrediu a par do luxo da indumentária.

A histórica praça de toiros, de que ainda hoje tanto se fala, foi aquela que se seguiu à que no mesmo local deixou de existir por volta da primeira década do século XIX. É da segunda praça que nos vamos ocupar, embrenhando-nos nas crónicas da época e servindo-nos também das narrativas a que desde rapaz os nossos ouvidos se habituaram.

Os entusiasmos que se notavam na deficiente praça do Salitre muito concorreram para o nascimento dum tauródromo de construção mais perfeita e dentro das possibilidades de então; e daí a razão por que D. Miguel, que o povo cognominara de «príncipe-toireiro», bastante influiu para que fosse lavrado um decreto autorizando a Real Casa Pia de Lisboa a proceder às obras, revertendo exclusivamente o rendimento da praça para aquele estabelecimento, que procura recursos para a manutenção de órfãos sem aparo que ali têm asilo carinhoso e educação.

A respeito da fundação da última praça de Campo de Sant'Ana, conta-se que, certo dia, D. Miguel determinou dar uma toirada de beneficência, e soube que o empresário da velha praça do Salitre levantava dificuldades e regateava o preço do aluguer.

Mandou chamar o seu amigo Sedvem, cavaleiro célebre, encarregou-o de dirigir a obra de construção imediata de uma praça de toiros, sem olhar a despesas, e fez publicar um decreto que dava à Real Casa Pia o privilégio da receita daquela e doutras praças nalgumas léguas em redor. Ficou o D. José Serrate, explorador do Salitre, encerrado em sérios apuros e o público, contentíssimo com um circo taurino melhor, também gozou com a pirraça feita ao onzeneiro empresário.

Nasceu assim a praça do Campo de Sant'Ana.

A construção durou um ano e na tarde luminosa e quente de 3 de Julho de 1831 realizou-se a corrida da inauguração, com a assistência de D. Miguel e sua irmã, a infanta D. Maria da Assunção, e de tudo que havia de mais representativo na sociedade lisboeta.

Os cavaleiros F. Grilo e Veloso abateram toiros a rojão e nas quadrilhas dos «espadas» Sebastián García e Pedro José Rodriguez figurava o português José Mendonça, ex-aluno da Casa Pia, que um dia abalara para Espanha com o fim de se dedicar à profissão de toireiro, no que adquiriu certa fama.

Houve toiros lidados a pé, por bandarilheiros portugueses, entre eles António Roberto, Joaquim Grilo, Roquete e Bacharel, e o grupo de forcados compunha-se de dez elementos. Intervieram no espectáculo quatro intervaleiros pretos, cães de fila largados aos toiros mansos, e também se verificaram os duelos a que a arte sujeitava os cavaleiros quando o seu trabalho corria irregularmente.

Esse acontecimento marcou o início de capítulos brilhantes da tauromaquia nacional com os seus episódios de heroísmo, arte e deslumbramento, em que os nomes do conde de Vimioso e D. João de Meneses aparecem como legítimos herdeiros daquelas virtudes destacadas do marquês de Marialva, o estribeiro-mor do rei D. José I.

Seguiram-se outros fidalgos no cultivo da nobre arte do toireio equestre, que luziram em corridas de gala, para as quais a praça do Campo de Sant'Ana era decorada com panos de veludo e damasco, guarnecidos de franjas de oiro reluzente. Havia riqueza na decoração e gosto e elegância na indumentária dos cavaleiros e dos toireiros de pé, alguns deles também aristocratas.

O mundanismo fazia ali centro de reunião, para aplaudir a fina flor do amadorismo.

A magnificência subiu a alto grau por ocasião das corridas efectuadas quando do casamento de D. Luís I e da visita do rei de Espanha, Afonso Xii, em 1882, sendo a segunda promovida pelo conde de Fontalva, que nela toireou a cavalo, com Carlos Relvas e D. António de Portugal, da família Vimioso.


Durante os cinquenta anos de vida que teve a praça do Campo de Sant'Ana, no seu redondel desfilaram ganadarias de fama, como foram as de D. Rafael José da Cunha, Dr. Máximo Falcão, Roquete, conde de Sobral, Emílio Infante (pai), Dr. Laranja, D. Caetano de Bragança, Palha Blanco, Estêvão de Oliveira, etc.

A antiga praça do Campo de Sant'Anna, em Lisboa.
Foto: Arquivo da CML

Enriqueceram também os pergaminhos da história daquela praça (durante os seus 50 anos de vida), entre tantos nomes prestigiosos, os seguintes cavaleiros: Mourisca, marqueses de Belas e Castelo Melhor, Galveias, Batalha, D. Luís do Rego, Tinoco, os Monteiros, José Bento (de Araújo), Manuel Casimiro e Fernando de Oliveira, havendo os dois últimos ali tido auspiciosa estreia; os espadas: Cuchares, Frascuelo, Lagartijo, Fernando Gomez Gallo —  o pai do genial Rafael e do inesquecível Joselito —, Cara Ancha, Pescadero, Mazzantini, Punteret, que trouxe na sua quadrilha o bandarilheiro Filipe Aragô Minuto que ficou por cá alguns anos e foi encontrar a morte numa corrida na praça da Covilhã.

(...)

Mais elementos que muito se celebrizaram na velha praça: os três irmãos Pina Manique, os Caldeiras, Botas, os Robertos, José Cadete, os Peixinhos, Sancho, Calabaça, Caixinhas, Pontes, Poeira; os forcados Galache, Rafoa, Silva Lisboa, etc.

O cavaleiro José Bento de Araújo a actuar mais tarde na praça do Campo Pequeno, em Lisboa.
Foto: Arquivo da CML

Como não cabe aqui a história completa do toireio desse tempo, a lista não é mais extensa.

Antes, porém, de terminar estas linhas de evocação, salientemos as festas artísticas que eram espectáculos deslumbrantes; a banda dos cegos da Casa Pia que abrilhantava as corridas; as esperas de gado em buliçosas madrugadas; os bandos anunciadores das corridas, que eram cortejos garridos que atravessavam a cidade de lés a lés; a aura de que desfrutava o festejado dramaturgo e cronista taurino Salvador Marques que possuía o célebre semanário O Toireiro, que já em 1876 se queixava dos «toiros pequenos, raquíticos e linfáticos que comprovavam a decadência das raças!...»; a velocidade de seta dos azougados andarilhos Jorge Cadete e Manuel dos Santos, que mais tarde foram populares toireiros; os balões do capitão Martinez e de Mr. Bitard, que, saindo do Campo de Sant'Ana, caíram em vários pontos da cidade e arredores.

O espanhol pousou numa água-furtada cerca da Mouraria e enfiou pela janela que mais perto encontrou.

As locatárias, umas pobres velhotas, vendo entrar aquela avantesma vestida de encarnado, julgaram ter na frente o diabo!... Não ganharam para o susto!

(...)

Em 1878 terminou o velho hábito de as cortesias serem repetidas no final das corridas.

O primeiro espectáculo nocturno realizou-se em 1880 e, para isso, foi construído um dispositivo semelhante a um aracnídeo, de cujas pernas saíam bicos de gás. O povo ainda hoje chama «aranha» à instalação eléctrica que ilumina a arena do Campo Pequeno e tem o valor duma grande jóia cravejada de pedras preciosas... conforme se rumoreja.

Bilheteira da nova praça do Campo Pequeno, em Lisboa.
Foto: Arquivo da CML

Os últimos empresários daquela praça foram Alegria, Vitorino Marques — que também dirigia as corridas —  e Costa Guerra, homens inteirados no complicadíssimo mister de organizadores de espectáculos, sujeitos à mais rigorosa crítica, particularmente dos que nada perdoam.

A última corrida no Campo de Sant'Ana foi realizada sob a vigência da empresa Guerra & C.ª, que tinha como elementos principal o velho e competente Costa Guerra, o mais espanhol dos aficionados portugueses — assim o classificou Joaquim Sette que na Vida Ribatejana forneceu também esta pormenorizada notícia:

«A aura de pompa e de felicidade adejava sobre os seus propósitos; as temporadas foram das mais belas para a conquista de prosélitos.

Esse empresário proporcionou ao público os melhores carteles que se fixaram nos umbrais daquele circo. Tardes de emoção comunicativa avasslavam as massas.

Riscos iminentes atraíam a sentimentalidade. E as filigranas, prodígio de um estilo celso, arvoravam em ídolos os toireiros audazes. Mas... como o que é bom dura pouco, após quatro anos de exploração, Costa Guerra fazia anunciar para 27 de Novembro de 1887 a despedida da Empresa. Data que a chuva  fez transferir para 4 de Dezembro, e que pelo dito motivo só se efectuou em terça-feira, 6.

Apesar da época, a corrida, que começou às 2 ½ da tarde, foi magnífica. O curro, de Roberto & Irmão, saiu nobre e voluntário, tendo havido toiros bravíssimos, que pareciam ter tido a noção do festival.

Foram lidados a primor pelo saudoso grupo de artistas que trabalhou com o seguinte detalhe:

1.º para Casimiro Monteiro; 2.º para irmãos Robertos; 3.º para José e Rafael Peixinho; 4.º para José Bento (de Araújo); 5.º para Sancho e João Roberto; 6.º para João Calabaça e Minuto; Intervalo. 7.º para A. Tinoco; 8.º para irmãos Robertos; 9.º para José Peixinho e Minuto; 10.º para D. Luís do Rego; 11.º para João Roberto e José da Costa; 12.º para Calabaça e Rafael.


A apraça do Campo de Sant'Anna foi demolida em 1889.
Foto: Arquivo da CML

Tudo se organizou para a inauguração ser em Domingo de Páscoa, 1 de Abril de 1888; mas a vistoria dos peritos, ordenada a todas as casas de espectáculo, em virtude da catástrofe do teatro portuense Baquet, condenando o edifício, fez ficar nula toda a organização.

Eis porque a toirada de despedida da empresa Guerra & C.ª foi a derradeira no tauródromo das melhores tradições taurinas de Portugal».

In LISBOA DAS TOIRADAS, Pepe Luis, Livraria Popular de Francisco Franco, Lisboa, s.d. (provavelmente nos anos 40).


NOTA: A praça do Campo de Sant'Ana foi demolida em 1889. A do Campo Pequeno foi inaugurada em 1892.