Nunca fiando, fui (quase um século depois dos factos e da notícia) confirmar
a informação ao cemitério dos Prazeres. Ia o Maio fora.
O cavaleiro José Bento de Araújo, ao contrário do que
narrou o jornal «A CAPITAL», não está nem nunca esteve ali enterrado.
Os
registos manuscritos do ano de 1924, disponíveis no Cemitério dos Prazeres, não deixam margem para dúvidas.
Estaquei à porta da Secretaria, mesmo à esquerda do portão principal do cemitério, decidido
a perceber.
— Aqui é que ele não está! — proferiu o voluntarioso
funcionário municipal que se acercara do balcão.
— E... E...
Ele não me deixou terminar a frase.
— Pelo nome da igreja de onde abalou o funeral e pela morada da casa dele, é capaz de ter ido
para o Cemitério do Alto de São João... — arriscou o homem, mercê da sua
experiência.
Prestei-lhe ouvidos.
É certo que o cavaleiro José Bento de Araújo
residia na rua da Sociedade Farmacêutica e que o corpo esteve exposto na Igreja
do Coração de Jesus. Estes dois locais ficam mais perto do cemitério do Alto de São João, na zona oriental de
Lisboa.
A IGREJA DO SANTÍSSIMO CORAÇÃO
DE JESUS
A igreja paroquial do Santíssimo Coração de Jesus era uma das mais
modestas da capital. Ficava no local onde está, hoje, implantado o Instituto Cervantes, perto da UAL. Era um edifício do risco do arquitecto Manuel Caetano de
Sousa, que datava de 1780.
«A freguesia eclesiástica, desanexada das de S. José,
Pena e S. Sebastião, foi criada em Fevereiro de 1770, sob a denominação de
Santa Joana, instalando-se no convento de Santa Joana, do qual passou, em 1780,
para a igreja do Hospício dos Religiosos de Nossa Senhora do Carmo do Rio de
Janeiro, na esquina da rua de Santa Marta para a rua do Loureiro, passando
então a freguesia a chamar-se simplesmente do Coração de Jesus.»
Foto cedida graciosamente pela Igreja Paroquial do Sagrado Coração de Jesus
«Entretanto ia-se construindo o templo próprio
paroquial, em terreno cedido por Cristóvão de Sousa da Silva d'Alte, correndo
as despesas pela Irmandade do Santíssimo da qual fazia parte o 12º Conde de
Redondo, D. Francisco de Sousa Coutinho. A transferência da freguesia para a sua
igreja do Coração de Jesus realizou-se em 30 de Maio de 1790. Entre 1877 e 1880
a igreja recebeu grandes obras de restauro, estando o culto então suspenso.
Está projectado um novo templo nas imediações, mais vasto e de melhor arquitectura» - (Fonte: CML).
Uma nova igreja com a mesma invocação, denominada hoje «Igreja Paroquial do Sagrado Coração de Jesus», foi edificada na rua de Santa Marta nos anos 60 do século passado.
A nova igreja foi construída a escassas centenas de metros da antiga
FOTO: Rui Araújo
A
igreja (construída noutro espaço) foi
inaugurada no dia 19 de Junho de 1970. Hoje, conta com duas missas
diárias. O nome foi, entretanto, alterado em 2021 por questões meramente
burocráticas (registo nas Finanças).
«O
complexo paroquial é composto por 3 corpos articulados por um pátio central,
que estabelece uma ligação pedonal com a Rua de Sta. Marta. O corpo principal destina-se
à igreja, enquanto que os outros acolhem serviços de apoio social e educativos.
A igreja, organizada por pisos, apresenta no topo o espaço principal, por baixo
deste a cripta e o cartório e na base o salão paroquial e a capela mortuária. O
espaço da igreja, uma ampla nave trapezoidal de altura considerável, com o
santuário iluminado por claraboia elevada, surge envolvido por uma galeria
superior formando balcão. Uma capela saliente junto à entrada, destinada ao
batistério, é dedicada atualmente ao Coração de Jesus.
A igreja, com uma
excelente acústica, possui um orgão de fabrico inglês, colocado sobre a tribuna
lateral onde se situa o coro.» — indica
a CML no seu sítio internet.
A única estátua da nova igreja
FOTO: Rui Araújo
Ainda
não eram as 10 da manhã quando o amável sacristão da paróquia, Paulo Lopes, me
levou para uma sala atrás do átrio. Foi buscar os «Assentos de Obitos» da «Freguezia
do Coração de Jesus» relativos aos «anos de 1924 a 1925». Ausentou-se menos de
um minuto e volveu com um livro aberto nas mãos.
—
Página 36. Está tudo aqui...
Assim, nem o Diabo nos agarrava...
FOTO: Rui Araújo
Os meus olhos correram o assento 160 de uma ponta à outra. Lentamente. Era mesmo
aquilo que eu procurava: «Bento Jose
d'Araujo ou Jose Bento d'Araujo».
FOTO: Rui Araújo
«Bento Jose d'Araujo ou Jose
Bento d'Araujo». Li e reli aquelas linhas porventura com algum pudor,
envergonhado com a devassa da morte alheia.
A Igreja cuidava das leis dos homens, das leis divinas e dos registos civis.
FOTO: Rui Araújo
Em dois de
Setembro de mil novecentos vinte e quatro, ás dezassete horas, na rua Sociedade
Farmaceutica, onze (NOTA: O número
correcto é 6, 6ª e 6B), res do chão, desta freguesia do Santissimo Coração de Jesus,
de Lisboa, falleceu um individuo do sexo masculino = Bento Jose d'Araujo que
tambem usava o nome de Jose Bento d'Araujo = de setenta e dois anos,
industrial, natural da freguesia d'Ajuda, desta capital, morador na referida
residencia, casado em segundas nupcias com Dona Carolina Infantes Fonseca
Araujo e filho legitimo de Domingos Jose de Araujo e Dona Custodia de Jesus. (???) E foi sepultado no cemitério publico oriental desta cidade (NOTA: Cemitério do Alto de São João),
em jazigo. E ignoro os demais esclarecimentos. Do que lavrei este, que assigno.
O Coadjutor - Joao
Nunes Monteiro
A CASA DE JOSÉ BENTO DE ARAÚJO
O cavaleiro tauromáquico residia no número 6 da rua da
Sociedade Farmacêutica (a escassos
metros de uma entrada lateral do Hospital dos Capuchos).
IMAGENS: Google Earth
José Bento de Araújo era o proprietário de um edifício que ainda hoje ostenta
na frontaria as suas iniciais (J.B.A.), uma
carranca (cabeça de cavalo) e um grande painel de azulejos (com José
Bento de Araújo, montado num alazão na praça do Campo Pequeno, em Lisboa) no
centro.
O CEMITÉRIO DO ALTO DE SÃO JOÃO
«Em 1833, a crescente mortalidade da população lisboeta, causada por um
surto epidémico de cólera, levou à criação do Cemitério do Alto de São João
para suprir as necessidades da zona oriental da cidade, na altura situado “fora
de portas”, zona rural de grandes quintas. Aqui podemos conhecer um pouco da nossa
história desde o século XIX até aos nossos dias.
O reboliço ou o alvoroço do (outro) mundo não chega aqui nem por sombras...
FOTO: Rui Araújo
O edificado arquitectónico é tanto de autoria desconhecida como de
arquitectos ou canteiros conceituados. Temos, por exemplo, na entrada do lado
esquerdo o Jazigo dos Beneméritos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, do
arquitecto Adães Bermudes e, à direita, o Jazigo dos Viscondes de Valmor,
mecenas das artes e criador do Prémio de Arquitectura com o seu nome, do
arquitecto Álvaro Machado, ladeado por quatro estátuas dos escultores Costa
Mota, Fernandes Sá, Tomás Costa e Moreira Rato (sobrinho) que representam
respectivamente a Arquitectura, a Escultura, a Gravura e a Pintura.
A mesma solidão de sempre e para sempre - não se enxerga vivalma
FOTO: Rui Araújo
Os heróis da implantação da República são também objecto de homenagem,
nomeadamente, Cândido dos Reis, Miguel Bombarda, Elias Garcia, António José de
Almeida, Machado Santos, Heliodoro Salgado, Borges Grainha, entre outros.
A eternidade é capaz de ser demasiado longa...
FOTO: Rui Araújo
De realçar o jazigo de homenagem aos Beneméritos da Cidade e os dois
talhões privativos, um destinado aos Bombeiros Voluntários, o outro aos
Combatentes, bem como a cripta dos Combatentes, a cargo da Liga dos
Combatentes.
Cá se fazem e lá se pagam?
FOTO: Rui Araújo
Entre jazigos e sepulturas onde repousam figuras de destaque nas mais
variadas áreas, das letras às artes, da ciência à política, lado a lado com
cidadãos anónimos, encontramos os túmulos de figuras femininas que se
destacaram na vida social e política como republicanas e activistas, percursoras
de movimentos pacifistas e femininos, nomeadamente, Ana de Castro Osório,
Adelaide Cabete, Angelina Vidal e Maria Veleda.
Arrenegar e Demónio e, por vezes, os vivos, também...
FOTO: Rui Araújo
Em 1925, foi aqui construído o primeiro forno crematório do país
desativado onze anos depois, por motivos políticos e retomado o seu
funcionamento em 1985.
A entrada principal do cemitério do Alto de São João
FOTO: Rui Araújo
José Saramago, Prémio Nobel da Literatura, falecido em 18 de Junho de
2010, foi uma das figuras públicas aqui cremada, bem como Álvaro Cunhal,
político antifascista e ministro nos primeiros quatro governos provisórios,
falecido em 13 de Junho de 2005, cujas cinzas foram depositadas, num dos
cendrários existentes: Oriente, Jardim da Saudade e Jardim da Memória, este
último inaugurado em Abril de 2013.»
O RESTO DA HISTÓRIA
Fui, portanto, ao cemitério do Alto de São João à procura do meu tetravô cavaleiro. Eram 2 da tarde. Àquela hora não se enxergava vivalma. Apesar de tudo (dos mortos e do sofrimento dos que cá ficaram) aquela terra era perfeitamente desinfeliz para mim...
O alvoroço de existências passadas ou tão simplesmente o caos imaginado
FOTO: Rui Araújo
Benzi-me, acocorado como quem não quer a coisa, diante de uma campa sem vultos ou sombras negras. Era preciso arrenegar o demónio. Sempre. Era como lutar. Crenças e gestos que
o hábito tecia...
Na Secretaria, fui atendido por um funcionário amável
que me cedeu o livro dos «Registos dos Enterramentos» da CML relativo ao
período «4 de Abril a 19 de Dezembro de 1924».
Li a prosa lavrada em letra redonda.
3 DE SETEMBRO DE 1924
Número de ordem: 4445
Número do boletim ou guia: 288 da paróquia de Camões.