Arre-Diabo! Regouguei. Lamentei-me. Os jornalistas safardanas de outrora eram iguais aos de hoje. Era fartar vilanagem. E raramente prestavam o flanco. Fechavam-se em copas, não fosse o Diabo tecê-las...
O vespertino lisboeta «A CAPITAL» publicou na quinta-feira, 3 de Setembro de 1924, a notícia do funeral do cavaleiro José Bento de Araújo.
OS QUE MORREM
José Bento de Araujo
«Pelas 16 horas, realizou-se o funeral do conhecido cavaleiro tauromaquico José Bento de Araujo.
O prestito funebre saiu da igreja do Coração de Jesus para o cemiterio dos Prazeres. No acompanhamento viam-se muitos artistas e aficcionados da arte de Montes.
Sobre o ataude foram depostos grande numero de coroas e ramos de flores naturais.
Fizeram-se representar no funeral as Associações dos Toureiros, Proprietarios de Trens de Aluguer, Empresa do Campo Pequeno, etc.
No cemiterio foram organizados varios turnos.»
Nunca fiando, fui (quase um século depois dos factos e da notícia) confirmar a informação ao cemitério dos Prazeres. Ia o Maio fora.
O cavaleiro José Bento de Araújo, ao contrário do que narrou o jornal «A CAPITAL», não está nem nunca esteve ali enterrado.
Os registos manuscritos do ano de 1924, disponíveis no Cemitério dos Prazeres, não deixam margem para dúvidas.
Estaquei à porta da Secretaria, mesmo à esquerda do portão principal do cemitério, decidido a perceber.
— Aqui é que ele não está! — proferiu o voluntarioso funcionário municipal que se acercara do balcão.
— E... E...
Ele não me deixou terminar a frase.
— Pelo nome da igreja de onde abalou o funeral e pela morada da casa dele, é capaz de ter ido para o Cemitério do Alto de São João... — arriscou o homem, mercê da sua experiência.
Prestei-lhe ouvidos.
É certo que o cavaleiro José Bento de Araújo residia na rua da Sociedade Farmacêutica e que o corpo esteve exposto na Igreja do Coração de Jesus. Estes dois locais ficam mais perto do cemitério do Alto de São João, na zona oriental de Lisboa.
A IGREJA DO SANTÍSSIMO CORAÇÃO DE JESUS
A igreja paroquial do Santíssimo Coração de Jesus era uma das mais modestas da capital. Ficava no local onde está, hoje, implantado o Instituto Cervantes, perto da UAL. Era um edifício do risco do arquitecto Manuel Caetano de Sousa, que datava de 1780.
«A freguesia eclesiástica, desanexada das de S. José,
Pena e S. Sebastião, foi criada em Fevereiro de 1770, sob a denominação de
Santa Joana, instalando-se no convento de Santa Joana, do qual passou, em 1780,
para a igreja do Hospício dos Religiosos de Nossa Senhora do Carmo do Rio de
Janeiro, na esquina da rua de Santa Marta para a rua do Loureiro, passando
então a freguesia a chamar-se simplesmente do Coração de Jesus.»
«Entretanto ia-se construindo o templo próprio paroquial, em terreno cedido por Cristóvão de Sousa da Silva d'Alte, correndo as despesas pela Irmandade do Santíssimo da qual fazia parte o 12º Conde de Redondo, D. Francisco de Sousa Coutinho. A transferência da freguesia para a sua igreja do Coração de Jesus realizou-se em 30 de Maio de 1790. Entre 1877 e 1880 a igreja recebeu grandes obras de restauro, estando o culto então suspenso. Está projectado um novo templo nas imediações, mais vasto e de melhor arquitectura» - (Fonte: CML).
Uma nova igreja com a mesma invocação, denominada hoje «Igreja Paroquial do Sagrado Coração de Jesus», foi edificada na rua de Santa Marta nos anos 60 do século passado.
A igreja (construída noutro espaço) foi inaugurada no dia 19 de Junho de 1970. Hoje, conta com duas missas diárias. O nome foi, entretanto, alterado em 2021 por questões meramente burocráticas (registo nas Finanças).
«O complexo paroquial é composto por 3 corpos articulados por um pátio central, que estabelece uma ligação pedonal com a Rua de Sta. Marta. O corpo principal destina-se à igreja, enquanto que os outros acolhem serviços de apoio social e educativos. A igreja, organizada por pisos, apresenta no topo o espaço principal, por baixo deste a cripta e o cartório e na base o salão paroquial e a capela mortuária. O espaço da igreja, uma ampla nave trapezoidal de altura considerável, com o santuário iluminado por claraboia elevada, surge envolvido por uma galeria superior formando balcão. Uma capela saliente junto à entrada, destinada ao batistério, é dedicada atualmente ao Coração de Jesus.
A igreja, com uma excelente acústica, possui um orgão de fabrico inglês, colocado sobre a tribuna lateral onde se situa o coro.» — indica a CML no seu sítio internet.
Ainda
não eram as 10 da manhã quando o amável sacristão da paróquia, Paulo Lopes, me
levou para uma sala atrás do átrio. Foi buscar os «Assentos de Obitos» da «Freguezia
do Coração de Jesus» relativos aos «anos de 1924 a 1925». Ausentou-se menos de
um minuto e volveu com um livro aberto nas mãos.
— Página 36. Está tudo aqui...
«Bento Jose d'Araujo ou Jose Bento d'Araujo». Li e reli aquelas linhas porventura com algum pudor, envergonhado com a devassa da morte alheia.
O Coadjutor - Joao Nunes Monteiro
A CASA DE JOSÉ BENTO DE ARAÚJO
O cavaleiro tauromáquico residia no número 6 da rua da Sociedade Farmacêutica (a escassos metros de uma entrada lateral do Hospital dos Capuchos).
José Bento de Araújo era o proprietário de um edifício que ainda hoje ostenta na frontaria as suas iniciais (J.B.A.), uma carranca (cabeça de cavalo) e um grande painel de azulejos (com José Bento de Araújo, montado num alazão na praça do Campo Pequeno, em Lisboa) no centro.
O CEMITÉRIO DO ALTO DE SÃO JOÃO
«Em 1833, a crescente mortalidade da população lisboeta, causada por um surto epidémico de cólera, levou à criação do Cemitério do Alto de São João para suprir as necessidades da zona oriental da cidade, na altura situado “fora de portas”, zona rural de grandes quintas. Aqui podemos conhecer um pouco da nossa história desde o século XIX até aos nossos dias.
O edificado arquitectónico é tanto de autoria desconhecida como de
arquitectos ou canteiros conceituados. Temos, por exemplo, na entrada do lado
esquerdo o Jazigo dos Beneméritos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, do
arquitecto Adães Bermudes e, à direita, o Jazigo dos Viscondes de Valmor,
mecenas das artes e criador do Prémio de Arquitectura com o seu nome, do
arquitecto Álvaro Machado, ladeado por quatro estátuas dos escultores Costa
Mota, Fernandes Sá, Tomás Costa e Moreira Rato (sobrinho) que representam
respectivamente a Arquitectura, a Escultura, a Gravura e a Pintura.
De realçar o jazigo de homenagem aos Beneméritos da Cidade e os dois
talhões privativos, um destinado aos Bombeiros Voluntários, o outro aos
Combatentes, bem como a cripta dos Combatentes, a cargo da Liga dos
Combatentes.
Entre jazigos e sepulturas onde repousam figuras de destaque nas mais
variadas áreas, das letras às artes, da ciência à política, lado a lado com
cidadãos anónimos, encontramos os túmulos de figuras femininas que se
destacaram na vida social e política como republicanas e activistas, percursoras
de movimentos pacifistas e femininos, nomeadamente, Ana de Castro Osório,
Adelaide Cabete, Angelina Vidal e Maria Veleda.
José Saramago, Prémio Nobel da Literatura, falecido em 18 de Junho de 2010, foi uma das figuras públicas aqui cremada, bem como Álvaro Cunhal, político antifascista e ministro nos primeiros quatro governos provisórios, falecido em 13 de Junho de 2005, cujas cinzas foram depositadas, num dos cendrários existentes: Oriente, Jardim da Saudade e Jardim da Memória, este último inaugurado em Abril de 2013.»
O RESTO DA HISTÓRIA
Fui, portanto, ao cemitério do Alto de São João à procura do meu tetravô cavaleiro. Eram 2 da tarde. Àquela hora não se enxergava vivalma. Apesar de tudo (dos mortos e do sofrimento dos que cá ficaram) aquela terra era perfeitamente desinfeliz para mim...
Na Secretaria, fui atendido por um funcionário amável que me cedeu o livro dos «Registos dos Enterramentos» da CML relativo ao período «4 de Abril a 19 de Dezembro de 1924».
Li a prosa lavrada em letra redonda.
3 DE SETEMBRO DE 1924
Número de ordem: 4445
«Bento José de Araujo, ou José Bento de Araujo, filho de Domingos José de Araujo e de Custodia de Jesus, natural de Lisboa, com 72 anos de idade, casado, comerciante, residente na Rua Sociedade Farmacêutica, 18 r/c, faleceu no dia 2 de Setembro de 1924 às 17 h.»
Causa da morte: «doença cronica».
Caixão de chumbo.
«Dia e hora do enterramento: 3 de 9 – 17 h», tendo sido sepultado no jazigo 3362.
Fui no encalço do afável funcionário.
— É possível saber a quem pertencia o jazigo 3362? — indaguei com voz gutural.
O homem abanou a cabeça a dizer-me que não.
— As primeiras folhas do processo desse jazigo desapareceram. Só há informação a partir de 1930 e muitos...
Deixá-lo.
Mesmo assim, apesar do sentimento de impotência, fui ver o jazigo 3362.
Duas senhoras muito bem postas entraram comigo na carrinha do cemitério. Fui o primeiro a apear-me. O dedicado motorista municipal, o Senhor Rui (que trabalha aqui há uma
eternidade), propôs ir buscar-me depois, mas recusei. Gosto de cemitérios e de caminhar...
Um pouco mais tarde, noutro lugar e já na presença de outras gentes, mergulhei nas fotos do «REGISTO GERAL DOS ENTERRAMENTOS".
Afinal em 5 de Dezembro de 1924 (NOTA: pouco mais de dois meses após o funeral!) o cavaleiro José Bento de Araújo foi «trasladado para o jazigo 1283». Era esse o destino definitivo!
De acordo com a página 43 do documento relativo ao jazigo 1283, sito na Rua N.º3 lado esquerdo, o proprietário inicial foi Joaquim Antonio d’Almeida Carvalho. Foi antes de 1871, pois em 28 de Fevereiro desse ano foram aí depositados os caixões de chumbo de D. Margarida Pinto dos Reis Carvalho e de D. Maria Henriqueta.
«Em 5 de Dezembro de 1924 foram depositados os restos mortais de Bento José d'Araujo ou José Bento de Araujo, que estavam no jazigo nº 3362 em caixão de chumbo, chapa nº 24 497, prescrito em 5 de Dezembro de 1926.»
Acabei por apurar alguns factos sobre a morte do valente
e alegre cavaleiro José Bento de Araújo. Alguns…
Só me falta descobrir quem era Joaquim Antonio d’Almeida
Carvalho, o amigo generoso que acolheu os restos mortais do meu tetravô sem
perdas nem lucros. Eu quase apostava que a solução do enigma começa pela segunda
letra do alfabeto. B como Brasil...
Tentarei também saber mais coisas sobre as mulheres que marcaram a sua vida. Temas para as minhas próximas crónicas sobre José Bento de Araújo.
NOTA FINAL
O meu bem-haja aos anónimos que me ajudaram: os homens e as mulheres dos cemitérios dos Prazeres e do Alto de São João, do Arquivo Fotográfico da CML, e o sacristão da igreja do Coração de Jesus. Pelo menos esses…