1 DE AGOSTO DE 1909 - LISBOA: A HISTÓRIA DA PRAÇA DE TOUROS DO CAMPO DE SANT'ANNA



Arquivo Municipal de Lisboa

CAMPO DE SANT'ANNA

Recordações de então


Poucos são os aficionados de hoje que se recordam da primeira geração de artistas que pisaram a arena da praça do Campo de Sant'Anna. Por esse motivo, parece-nos interessante lembral-os em poucas linhas, antes de nos occuparmos da gente que formou a segunda geração, mais nossa conhecida.


João Ferreira Grillo e Antonio Maximo de Amorim Vellozo, foram os dois cavalleiros que inauguraram esta praça, tendo um e outro já feita a sua reputação, sellada em successivas tardes de gloria na praça do Salitre.

Do primeiro só se sabe que era um artista de raro valor; do segundo affirma-se que era o cavalleiro da moda no seu tempo, em que, como bandarilheiros, se distinguiam os irmãos Alegria, Perico e Francisco, este ultimo conhecido por C. de Chumbo.

João dos Santos Sedvem já por nós foi apresentado como um bom cavalleiro. Tendo exilado com D. Miguel para Italia, alli casou com uma genoveza, regressando mais tarde a Portugal, e vindo a trabalhar no Campo de Sant'Anna com Mesquita e Bittencourt. Equitador eximio, era tenente picador da guarda municipal, motivo porque nenhum collega o avantajava na arte da picaria.

Manoel José de Figueiredo foi tambem um dos cavalleiros que alternaram no Campo de Sant'Anna, mas nunca passou de artista mediocre.

Da gente de pé, portugueza, foram Joaquim Ferreira Grillo, Antonio Bacharel, Joaquim Emygdio Roquete, Antonio Roberto e José Maria Mendonça os que inauguraram a praça do Campo de Sant'Anna. Dos tres primeiros, a historia do toureio só nos transmittiu os seus nomes; de Antonio Roberto, que foi um artista muito valente, já tivemos occasião de falar.

José Maria Mendonça partiu para Hespanha pouco depois de sahir da Casa Pia, onde foi educado. Foi alli que se dedicou á arte de tourear.

Era de pequena estatura mas valente com os touros, e artista bastante apreciado do publico. Muito dado ao que nós hoje chamamos alegrias tauromachicas, executava o salto de Martincho com grilhões de folha collocados nos tornozellos, e passava os touros com um chapéu de sol, sorte em que era eximio.

Antão da Fonseca, irmão de Antonio Roberto, poucas vezes toureou no Campo de Sant'Anna. Tinha outro irmão, de nome Luiz Antão, mas este ainda menos vezes do que elle veiu á velha praça de Lisboa.


Quer um quer outro alargaram mais a sua esphera de acção pelas praças sertanejas, onde o publico de ordinario é menos exigente.

João Pedro da Herra foi um peão distincto e muito estimado, mas só se evidenciou como bandarilheiro; raramente utilisava as mãos para saltar a trincheira. Em compensação, Joaquim Russo, se se destacou menos com as bandarilhas, sobresahia quasi sempre no manejo do capote.

Manoel Calabaça (pae de João da Cruz Calabaça) foi um bandarilheiro de valor.

Um irmão d'aquelle, de nome Sebastião Garcia Calabaça, foi espada da praça do Salitre, e o melhor toureiro que Lisboa teve na sua época. D. Miguel era muito seu amigo, dando-lhe até uma mezada.

Quando este principe partiu para o exilio, Sebastião Calabça acompanhou-o até Santarem; e alli, organisando D. Miguel uma brincadeira n'um pateo, sahiu o intelligente toureiro com duas canas para um touro, mas quando ia a fugir por uma janella, um campino fechou-lhe as portas, dando em resultado o animal feril-o gravemente, feridas que lhe vieram a dar a morte no hospital de Santarem.

Francisco Lasca, de Aldegallega, e um tal Maia, de Coruche, onde era oleiro, não chegaram a alcançar celebridade, apesar de terem toureado muito como bandarilheiros. O primeiro, muitos annos depois de retirado do toureio, ainda veiu ao Campo de Sant'Anna, a um beneficio de José Cadete, que tambem já não trabalhava, bandarilhar conjunctamente com este um bezerro, visto que a avançada edade já não permitia a um nem ao outro entenderem-se nem mesmo com um garraio.

Uma nota curiosa: José Cadete, que foi um dos toureiros que mais abusaram com os touros, terminou a sua brilhante carreira artistica lidando um bezerro! Elle, que bastas vezes saltava a trincheira sem lhe tocar com as mãos, atirando-se até em muitas occasiões, de um salto, para as primeiras filas das bancadas do publico, tambem teve, como o seu companheiro d'essa tarde, que utilisar os esconderijos armados em volta da arena para melhor se defender do quasi inoffensivo animal!

No que se transforma a existencia!...

José Antonio de Lima, cujos primeiros principios foram de cocheiro, veiu a trocar esta profissão pela de bandarilheiro. Tinha um publico seu, e chegou a fazer boa figura lidando rezes bravas. Ao fim de alguns annos, porém, escassenado-lhe as faculdades, começou a tourear a cavallo, sendo contractado para ir ao Havre, onde levou Sancho em sua companhia.

Terminamos este artido com os perfis de dois artistas - Manoel Botas e Diamantino Pontes - que mais ou menos enfileiraram na época que vimos acompanhando, e que são actualmente os unicos representantes d'essa geração de toureiros que ainda é bem recordada por nosso paes, e que assignala uma época na qual o espectaculo contava os mais encarniçados enthusiastas, desde a nobreza até ao povo.


Manoel Antonio Botas é contemporaneo dos grandes vultos da tauromachia, desde Sedvem ao Moursica, desde Antonio Roberto ao Caixinhas. Com todos trabalhou.

Ha uns sessenta annos, ahi por 1848 ou 1849, houve na Alhandra uma corrida de touros para os curiosos da terra. Entre os bichos appareceram dois tão grandes, que o emprezario - o lavrador Domingos de Carvalho - receiou algum desastre, e pediu aos bandarilheiros Manoel Vargas e Manoel Calabaça para os lidar. Accederam estes, mas levaram em sua companhia a um rapazote, vendedor ambulante de coisas diversas, para que toureasse tambem. Esse rapazote era Manoel Botas, o velho de hoje.

Tão boa figura fez n'essa tarde, e desejoso de seguir a carreira de capinha, que logo no domingo seguinte veiu ao Campo de Sant'Anna, para o touro da embolação, e alli mesmo, pegando em quantas bandarilhas poude agarrar, deitou-se a amolar-lhe os ferros cpm um tijollo. Tão boa sorte teve que as empregou todas e com habilidade.

Dois domingos depois, José Cadete - que vindo de Evora, ficara preso em Aldegallega - faltou á corrida no Campo de Sant'Anna, e o emprezario Alegria, vendo alli ao novel curioso, agarrou-o, e saltando com elle para cima do curro, foi mostrar-lhe os touros de Rafael da Cunha, que deviam ser lidados n'essa tarde, dizendo-lhe:

- Te vás a toreá... Y anda que si los toreá, toreas hasta lo toro é Maria Santisima!...

Tão bem se sahiu Botas do encargo, que no final da corrida, quando foi receber a importancia do seu trabalho ao escriptorio da empreza, o velho Alegria teceu-lhe grandes elogios, assim como um outro entendido aficionado, o João Barbeiro.

Foi uma tarde de gloria!... Recebeu 2#400 réis!!...

O primeiro passo estava dado e logo lhe appareceram diversos contractos, entre elles um de João Sedvem, para ir a Almada tourear em companhia de quatro rapazes da mesma edade. Foi e continuou agradando muito.

O emprezario que via n'elle já um engodo ao publico, convidou-o para a corrida seguinte, mas Manoel Botas, conscio do seu valor, respondeu que não iria menos de trez quartinhos! O resultado foi apanhar um tremendo pontapé do emprezario - pelo atrevimento! - e ter que deitar a fugir!... para não levar mais.

Hoje, qualquer rapazote que use calça larga e sombrero ancho, se o chamam para tourear pede logo... a sorte grande Hespanha, e mais alguma coisa...

Mas... voltemos ao Botas.

Poucos dias depois o Sedvem mandou-o chamar e lá combinaram a historia dos trez quartinhos, porém... isso seria um segredo que morreria com os dois!

Tambem, como muitos dos seus collegas, toureou em Hespanha. Foi a Badajoz, e em Caceres, uma tarde em que se desembolára um touro de cavallo, o publico pediu aos capinhas que o lidassem, sendo extraordinaria a ovação que todos ouviram - Manoel Botas, João Calabaça e Manoel Cadete.

Com João Calabaça, visitou a ilha Terceira, e alli, na praça de S. João Baptista, em Angra, toureou com muito agrado, fazendo tão boa figura que ainda hoje o seu nome é lembrado, contando bastantes amigos entre os antigos aficionados.

Poucas colhidas teve. A mais grave foi em Villa Franca, onde um touro o feriu de maneira a romper-lhe o escroto. Operou-se a si proprio, porque n'esse tempo não havia enfermarias nem medicos nas praças!

Eis a historia de Botas, como toureiro, o sympathico velho a quem todos os aficionados respeitam - pela edade e pelos conhecimentos que possue da arte.

Diamantino Pontes é actualmente o decano dos cavalleiros portuguezes, tendo alternado com todas as summidades do seu tempo. Nasceu em Lisboa a 16 de maio de 1833, no predio n.º 12 do largo de S. Paulo.

Os seus primeiros passos na tauromachia foram dados na praça de Almada, n'uma corrida de beneficiencia promovida pelo conde de Vimioso a favor de alguem que protegia. Tinha então quinze annos. N'essa tarde trabalhou como bandarilheiro ao lado de Pereira Nunes, Callado, Cazuza, e outros amadores consumados.

Foi ahi por 1862, tambem instado pelo conde de Vimioso, que decidiu dedicar-se ao toureio a cavallo. Diamantino, bom conhecedor dos segredos da equitação, sobresahiu sempre pela valentia, mostrando-se e expondo-se aos touros como faziam os toureiros de outras éras.

Um exemplo. Para certa corrida de beneficio no Campo de Sant'Anna, tratava o promotor de reunir attractivos, mas attractivos a valer. Já contava com algumas novidades de Batalha, Mourisca, e outros. Faltava consultar Diamantino, que tambem estava falado para entrar na festa. Foi encontrado no Montanha.


- Olhem - disse Diamantino, rindo-se, depois de saber ao que iam - um attractivo, só se fôr tourear um touro, montado n'um cavallo em pêllo, levando para governo uma simples corda!...

O dito sahiu da bocca de Diamantino simplesmente por graça, mas o promotor da corrida não se importou com isso, e no dia seguinte já vinha a noticia nos jornaes, acompanhada dos nomes de quem tinha ouvido a conversa.

Diamantino nem por isso deixou de cumprir a palavra, contribuindo assim para uma enchente completa; e o publico cobriu-o de applausos, pois foi felicissimo, como nunca suppôz, ao ter que tomar o dito a sério.

CARLOS ABREU

In SERÕES - REVISTA MENSAL ILUSTRADA, Lisboa - 1 de Agosto de 1909