12 DE MAIO DE 1904 - CAMPO PEQUENO : O CAVALEIRO JOSÉ BENTO DE ARAÚJO ASSISTE À MORTE DO SEU AMIGO FERNANDO DE OLIVEIRA DURANTE A CORRIDA EM QUE PARTICIPAM




A morte do cavaleiro Fernando de Oliveira

Alguns pormenores da tragédia que enlutou a tauromaquia nacional.

            A corrida, que ficou registada na história das corridas de toiros em Portugal como uma página das mais dolorosas, realizou-se numa quinta-feira da Ascensão, que o povo denomina quinta feira da Espiga, em que se festeja a abundância dos trigais, o que significa a promessa de uma boa colheita de pão.

            Foi para essa tarde de 1904 que a empresa exploradora do Campo Pequeno anunciou a lide de dez toiros, cinco do marquês de Castelo Melhor e cinco de Vitorino Fróis, que naquele dia se estreava como ganadero.

            A cavalo haviam de toirear José Bento (de Araújo), Fernando de Oliveira, Joaquim Alves e Simões Serra e a pé os espadas Ricardo Bomba Bombita-Chico e Manuel Jimenez Chicuelo (pai), acompanhando estes matadores as quadrilhas formadas por Manuel Antolín, Enrique Alvarez Morenito, Francisco Sanchez Currinche, e Eduardo Borrego Zocato — tio e depois também apoderado de Chicuelo (filho), toireiro este que ainda vive, felizmente.

            A propósito do infausto acontecimento, o magnífico semanário Dígame publicou há tempos estas judiciosas considerações.

            «¿Ofrece peligros el arte del rejoneo? Para el caballo, sí, es la respuesta que se suele dar a esta pregunta.

            Empero, el toreo a la jineta no está exento de riesgos para el caballero, que si no expone tanto como el infante, lucha con las iniciativas del caballo difícil de dominar cuando su instincto defensivo supera a los mandos.

            Triste recuerdo dejó en la historia de la tauromaquia portuguesa la corrida efectuada en Lisboa el 12 de mayo de 1904. En aquella tarde aciaga salió del ruedo en brazos de las asistencias, mortalmente herido, uno de los más populares y admirados rejoneadores lusitanos : Fernando de Oliveira.

            El toreo a caballo, en Portugal, conservó siempre las características señoriales del medievo. Son sus intérpretes grandes señores descendientes directos de aquellos nobles que se jugabon la vida por una sonrisa de su dama, en singulares torneos y en fiestas de cañas y lanzas.

            Atuendo magnífico, riquezas en los jaeces, seda y oro, pomposas casacas de terciopelo o raso y el sombrero de tres candiles emplumados. Gallardía y donosura, reverencias, arte y arrojo... Fernando de Oliveira, con Casimiro, con (José) Bento de Araujo, condensaba entonces la más pura expresión del rejoneo.

            Nadie pudo pensar que aquel eximio artista, tan lleno de vida y tan pletórico siempre de voluntad, con su inagotable sabiduría y afición, dejara de existir momentos después de una cogida a la que, en un princípio, no se le dió la debida importancia.

            Fernando de Oliveira cayó para no levantarse más, para no volver a presentarse ante su público que tanto lo quería, que tan cariñosamente le ofrecía los más calurosos aplausos y que reconocía, en él, en fin, un artista de verdadero mérito, de indiscutibles aptitudes y conocimientos.»

«Fernando de Oliveira no seu cavalo Bacelar, num conjunto admirável de correctíssima estética»
FOTO : "Ao Estribo" - Pepe Luiz.

            É da seguinte maneira que o ilustre escritor e jornalista Norberto de Araújo, nome destacante da olisipografia, fez, com o brilho da sua pena, a descrição da tragédia :

            «Fernando de Oliveira, nessa manhã, saiu mal humorado de casa, pela banda do Arco do Cego, atrás dos seus dois cavalos de combate que o «Chico» trazia à arreata — Joaquim Alves, que já lá estava, empoado, levemente irónico, alheio àquilo tudo dos «semanários», quase fidalgo, numa casaca negra que lhe ia bem, observou :

            — Vens pensativo, compadre...

            Era de mau agoiro. Já na embolação lhe tinha dito, depois de convidar Fernando para o almoço :

            — É preciso ter o estômago cheio porque logo talvez tenhas que rebolar...

            Fernando — uns quarenta e cinco anos picados de alguns cabelos brancos, toireiro de uma cultura invulgar em toireiros, e de um trato lhano e correcto — olhou o Alves, que o encarara pensativo, e retorquiu com um sorriso.

            Enfiou a casaca vermelha, bordada a prata fosca, e com a palma enluvada acariciou a anca do Azeitona, que era novo e vinha provando bem.

            A praça estava cheia. Não era uma enchente real. Era uma linda casa. Os aficionados formigavam ainda pelos pátios e pelos corredores térreos. A Banda Marcial executava um «pase-calle» de Chueca...

            As Majestades chegaram à hora. D. Carlos, que já tinha preparado o seu iate para seguir no outro dia para o Oceano, trazia o seu belo sorriso Coburgo, que desenhava interrogações na espiral do fumo azul. Como D. Afonso, trazia o pequeno uniforme militar. A política andava calma. A questão dos tabacos mal se desenhava ainda. Preparavam-se eleições no Terreiro do Paço. Os jornais não agitavam a opinião. Apenas o Popular na antevéspera atirara um remoque duro a José de Alpoim, que estava ausente do jornalismo político, e viera à estacada, no Dia, com quarenta linhas espirituosas, levemente tocadas de desdém literário. Sua Majestade a Rainha trazia uma linda toilette, de estação, creme, com aplicações de bordado branco a ponto real, chapéu adornado de rosas brancas, e sombrinha rosa. Visitara antes, com D. Maria Francisca de Meneses e com Vasco Belmonte, as Belas-Artes, onde António Ramalho, um lindo sorriso plebeu de pintor predestinado, a recebera, ao lado do visconde de Atouguia.

            D. Luís Filipe e D. Manuel vinham à inglesa ; eram dois rapazes de 16 e 14 anos, para quem o bulício da toirada tinha encantos.

            Pelos camarotes — a aristocracia, a fidalguia, a lavoura rica, a distinção, a burguesia do tempo : os de Penafiel, de S. Lourenço, do Faial, de Galveias, de Caria, do Restelo, de Castelo Melhor, de Azarujinha, de Figueiró, de Santar, de Almedina. As famílias Gama, Sousa Coutinho, Vitorino Quintela, Viana, Maiorca, Tojal, Sousa Holstein, Rebelo da Silva, Meneses, Verride, Mesquitela... Nos fauteuils — a flor dos ganaderos.

            O conde de Sabrosa, que era governador civil — proibira o hino da Carta nas cortesias. Quando os quatro cavaleiros despontaram ouviram-se as palmas da multidão irrequieta. A banda recebeu-os... com a marcha do conde de Arcos — assim chamada porque foi com ela que abriu a última famosa corrida de Salvaterra.

            Fernando de Oliveira não deu por isso. E aquela era também para ele a última corrida.

            O gado era de Castelo Melhor e de Vitorino Fróis. Trazia fama. Os ganaderos, por cima do curro, ao sair para José Bento (de Araújo) o primeiro bicho, que era do Vitorino, abanto, negro e desconfiado — torceram o nariz. José Bento (de Araújo), toireando  alegre, cravou mal, e Teodoro e Manuel dos Santos — que estava em plena glória — só pincharam de relance.

O cavaleiro José Bento de Araújo quando era novo.
FOTO : "Ao Estribo" - Pepe Luiz

            Saiu o segundo. Era um Castelo Melhor, de cruzamento espanhol ; um toiro de pêlo castanho, torrado no quarto dianteiro, com bragas no ventre, gravito de armação, corpulento e de muito poder. Era o n.º 30 no ferro do lavrador, e chamava-se Ferrador. Fernando de Oliveira, que recebera a farpa da mão do espanhol Currinche, um bandarilheiro castelhano e medíocre, passa pelo sector 1, onde os amigos, debruçados sobre as capas, azul uma, branca outra, de Manuel dos Santos e Tomás da Rocha, o aplaudem ; sorri vagamente a Bombita Chico, depois o famoso Ricardo Bombita, que da trincheira, ao lado de Chicuelo, segue a jornada do cavalo ; saúda com mal disfarçado respeito as Majestades que olham o redondel distraidamente — e toma à esquerda o lugar para a gaiola. O Ferrador endireitou ao vulto do capote de Teodoro, e a gaiola falhou para o cavaleiro.

            A praça anseia, anda de mão em mão um folhero, Resposta à letra, assinado por aficionados admiradores de Fernando, e que o desafrontam das críticas e manifestações dos seus adversários. Na barreira da sombra há quem — gritando, bulhando — declare confiar na intrepidez e no brio do cavaleiro de Benavente.

            E que lindo vai agora o Azeitona, numa meia volta que Fernando de Olveira remata com o seu brilhantismo peculiar ! Mas o toiro é tardo e difícil. Fernando já saiu em falso duas vezes... É preciso apertar. Das barreiras, dos sectores de sombra e sombra-sol incitam-no. Há um pequeno silêncio no circo. Vai outra meia volta, e adivinha-se perigosa.

            O toiro está nos tercios, em frente do sector 6, sombra-sol, e Morenito, um espanhol de Bombita, atira-lhe o capote. O toiro coloca-se, ainda que apertado. Fernando dá então uma sacudidela ao cavalo, que larga, enquanto a voz possante do cavaleiro incita o bicho — que se volta à sorte. O cavaleiro, corajosamente, remata, mas remata consentindo, isto é, deixando o toiro entrar muito. Cravou o ferro. Há um frémito, agora... O toiro colhera o ginete pela anca e, na violência da pancada, o Azeitona tombou, desequilibrou-se, foi ao solo. Já grita a praça em peso, aos capotes. Correm os espanhóis, porque tudo fora num segundo, pouco mais que num segundo. O cavaleiro saíra pela cabeça do cavalo, e está agora debaixo da montada, aquela montada gentil e donairosa, esperança do cavaleiro para breve, e que o toiro carrega, numa fúria, numa violência.

            Por momentos está tudo de pé, nos sectores. Os capotes são inúteis ; quase é preciso puxar o bicho, que alfim deixa a presa, já quando Fernando de Oliveira, sangrando da cabeça, com as abas da casaca vermelha voltadas sobre as costas — não dava acordo de si. O cavalo, sem governo, corre desordenadamente a praça. Todos os capotes estão agora em cena. Fernando é levado para a enfermaria. Pela praça vai um frio de morte.

            Fernando de Oliveira, rodeado de médicos — o Carlos Tavares, o Artur Ravara, o Fernando de Almeida, irmão de Manuel Casimiro, o Archer da Silva, o Gonçalves Marques — agoniza na enfermaria da praça. É preciso conter a multidão. À porta da sala improvisada de operações assoma a figura discreta do conde de Tarouca. Suas Majestades, impressionadas, retiram e perguntam pelo ferido. «O ferido morre...»

            No hospital, para onde partiu a cavalo o Dr. Sanguinetti a preparar tudo, espera o agonizante o Dr. Francisco Gentil, numa nuvem de assistentes, enfermeiros, amigos do artista. Fernando vinha já morto, podia dizer-se. Minutos depois, ainda vestido o seu colete de seda branca, com flores e borboletas bordadas a matiz — coberto com um lençol — o toireiro era recolhido na sala das operações, para descansar alfim.

            Uma mulher, rodeada de gente amiga, chorava convulsivamente : Angela Pinto. (NOTA : A famosa actriz é mencionada, por exemplo, no «FADO ANTIGO», cantado, designadamente, pela grande fadista Berta Cardoso. Ver : https://corridasportugalespanafrance.blogspot.com/2016/09/fado-e-jose-bento-de-araujo.html ) Na Praça ficara outra chorando, sem ninguém ao lado : o seu nome não cabe agora na crónica.

             O enterro realizou-se dois dias depois : foi a última parada de forças da afición.

            Sete meses depois, num lúgubre leilão da Boa-Hora, feira da ladra das recordações íntimas, dispersa a sua vida em cada saudade de uma pérola ou de um bibelot — Fernando de Oliveira acabou definitivamente.

            Dele se lembram hoje, apenas, uma roda de amigos (NOTA : Referência à Comissão que promoveu a colocação da lápide que se encontra ao fundo da entrada principal da Praça do Campo Pequeno, e em cujo acto do descerramento — 12 de Maio de 1924 — discursou o Dr. Ramada Curto.) — aqueles que andam agora empenhados em recordar o seu nome, como um dos mais brilhantes da plêiade de toireiros que deram alguma coisa, a própria vida ! para a magnificência de cor, de alegria, de beleza, de carácter — das antigas toiradas de Portugal.»

            A lira popular também se manifestou, expandindo a sua angústia pela morte de Fernando de Oliveira.

            Entre as várias produções que durante muitos anos apareceram e que inúmeras gargantas cantaram, acompanhadas à guitarra, em momentos de evocação e saudade, conta-se esta que o poeta Fernando Teles — que então era um dos poetas preferidos pela gente humilde — dedicou ao amigo e apaixonado da canção do povo, Júlio Pires :

Recordando a morte de Fernando de Oliveira


VINTE ANOS DEPOIS


Com todo o seu esplendor

o sol aquece o terreiro...

— Alheio, impávido, assiste

à morte do cavaleiro.

 

Tarde de Maio, estival,

olente, calma, doirada...

E tem começo a toirada

na praça monumental

No camarote real

há dos Braganças a flor,

e nos outros, em redor,

mulheres, — lindos tesoiros !

— Enfim : — é tarde de toiros

com todo o seu esplendor !

 

Vibram notas musicais

da Marcha de Salvaterra.

— O destino que não erra

tem coincidências fatais !

Em volteios magistrais

farpeia (José) Bento (de Araújo) o primeiro

— um toiro abanto, matreiro, —

pertença de Vitorino... (NOTA : Vitorino Fróis)

e nesse momento, a pino,

o sol aquece o terreiro.

 

Instante supremo e belo !

Entra na arena Fernando,

que, garboso, cavalgando,

cita um toiro de Castelo (NOTA : Castelo Melhor).

Trava-se cruento duelo ;

a fera, rápida, insiste,

a montada não resiste

a esse choque brutal !

— Só o sol a cena tal

alheio, impávido, assiste !

 

Ecoa no espaço um brado,

tremendo, da multidão !

Capotes rojam o chão

num anseio desesperado !

Mas todo o esforço é baldado.

Ei-lo à morte prisioneiro !

— Brotam pranto verdadeiro

olhos que a amar o fitaram,

pois duas mulher's choraram

à morte do cavaleiro !

 

Fernando Teles

12 de Maio de 1924


NOTA : Ver também : https://corridasportugalespanafrance.blogspot.com/2025/02/12-de-maio-de-1904-lisboa-morte-do.html


In AO ESTRIBO, Pepe Luiz (NOTA : Pseudónimo de José Luis Ribeiro), Livraria Popular de Francisco Franco, Lisboa, 1946.