3 DE MAIO DE 1888 - LISBOA : A PROPÓSITO DE TOURADAS E POLÍTICA...

 


Biblioteca nacional de Portugal

Por ahi...

            Hontem, no Rocio, o homem dos cartazes tinha acabado de pregar um.

            Um cartaz, está entendido.

            Quando o homem dava a ultima pincelada, parou uma pessoa para lêr o cartaz.

            Depois parou outra.

            Depois parou mais outra, e assim foram parando todas as pessoas que passavam. E o mais extraordinario é que não paravam só as que passavam ao pé do cartaz : as que transitavam a distancia acercavam-se tambem logo, a passo estimulado, apenas bispavam lá de longe uma grande cabeça de toiro, impressa ao centro do papel e em dimensões sufficientes para não passar desappercebida mesmo á vista desarmada.

            Depois, as mesmas pessoas começaram a retirar a uma a uma, pela mesma ordem chronologica porque tinham chegado, ao passo que vinham vindo outras a tomar-lhes o logar, attrahidas lá de longe pela tal cabeça de toiro em que já tivemos a honra de fallar, e que era assim, mal comparado, como o santelmo misericordioso da esperança, que vem incutir animo no espirito desorientado dos nautas semi-perdidos.

            Para o caso presente, os nautas semi-perdidos são os afficionados da Praça do Campo de Sant'Anna.

            O mais curioso, porém, era que todos os que liam o cartaz se affastavam desanimados, abanando tristemente a cabeça, ao passo que os que se acercavam para lêr, traziam nos labios um sorriso de contentamente intimo e no olhar a centelha rutilante de fogo que illumina as almas esperançadas.

            Acercámo-nos tambem, lançámos um olhar sobre os caracteres de variadas côres, e tudo de prompto comprehendemos !

            O cartaz annunciava uma toirada qualquer ahi para fóra de Lisboa e o que todos imaginavam, ao vêr de longe a tal cabeça de toiro enganadora, era que se tratava d'uma toirada na praça do Campo de Sant'Anna.

            Á noite, o café Marrare, que é o grande oriente dos amadores tauromachicos, tinha o aspecto grave da ante-camara d'um enfermo illustre em seguida ao desideratum da junta medica haver lavrado a fatal sentança anniquilando as derradeiras esperanças !

            — Está tudo acabado ! murmurava-se baixinho, n'aquelle tom de receio que precede as grandes esplosões de dôr ; está tudo acabado na praça do Campo de Sant'Anna ! Não mais toiros de Emilio Infante ! Não mais sortes de gaiola dos Robertos ! Não mais saltos de garrocha do José Peixe ! Não mais navarras do Sancho ! Não mais ferros curtos do José Bento (de Araújo) ! Não mais berratas do Seis Dedos ! Não mais descomposturas no intelligente Botas !

            — Oh ! Botas da minh'alma ! oh ! Botas do meu coração ! oh ! Botas das minhas entranhas !

            E cahiam todos na tal explosão de dôr, chorando nos braços uns dos outros, regando-se mutuamente as golas dos casacos de lagrimas ardentes, que sulcavam — pela primeira vez — aquellas faces bronzeadas pelo sol de mil combates... tauromachicos !

            E é que a attenção publica está decididamente virada para este caso das toiradas.

            Nem as sessões do parlamento, nem o movimento agricola do paiz, nem o augmento do preço da carne nos talhos municipaes, nem a segurança dos theatros, (NOTA : Este artigo foi publicado poucos dias depois do incêndio do Teatro Baquet no Porto, que na madrugada de 20 para 21 de Março de 1888 fez dezenas de vítimas e deixou a cidade de luto) nem a questão bancaria, nem o Coquelin, (NOTA DA MESMA EDIÇÃO DO JORNAL: «Está a chegar a Lisboa o celebre actor Coquelin, uma das glorias mais brilhantes do theatro frances e que o nosso publico teve já occasião de apreciar e festejar como elle tão justamente merece. D'esta vez Coquelin demora-se entre nós um curto espaço de tempo, dando apenas tres recitas, mas isso será o bastante para que possamos patentear-lhe a grande admiração que temos pelo seu talento e a grande sympathia que nos merece o seu caracter, de cuja largueza Coquelin dá uma prova, anuindo como anuiu da melhor boa vontade a ir de proposito ao Porto tomar parte no espectaculo que alli se realisa em beneficio do tão intelligente como desventurado artista Cyriaco de Cardoso.» NOTA : Domingos Cyriaco de Cardoso - 8 de Agosto de 1846-16 de Novembro de 1900. A história do «insigne artista tripeiro, um dos maiores artistas na nossa raça» pode ser consultada aqui: https://bibliotecacasadoinfante.cm-porto.pt/sh_tripeiro/online/trip/t21031.pdf ) nem o governo, nem a politica, nem o lausperenne, nem o Oliveira Mattos lhe importam agora absolutamente para nada !!!

O Teatro Baquet ficava na rua de Santo António, hoje denominada rua 31 de Janeiro.
FOTO : Internet

            No que ella pensa é em toiradas, com o que ella se preoccupa é com toiradas, o que ella quer é as toiradas. Déem-lhe toiradas e uma cabana — ou a morte !

            Interroguem os velhos, perguntem ás mulheres, inquiram (mas sem levantar inquerito, pelo amor de Deus...) inquiram das creanças, syndiquem (mas sem formarem syndicato, pelas cinco chagas do Nosso Senhor Jesus Christo...) syndiquem dos interditos, e verão como todos lhes respondem a uma só voz, como uma grande massa coral rigorosamente ensaiada pelo maestro (NOTA : maestro de coros)  António Duarte — que tambem é distincto amador tauromachico :

            — Queremos toiradas ! venham toiradas ! salta toiradas !

            O caso é de tão grave importancia que chega até a affirmar-se ter sido por causa das toiradas que sahiu do governo civil o nobre marquez de Pomares, o mais illustrado, o maior esmoler e o mais respeitavel de todos os governadores civis — não desfazendo em quem está presente, como é uso dizer entre pessoas finas.

            E nós acreditamos que assim fosse, em parte, sendo effectivamente essa demissão produzida pelo natural embaraço em que s. ex.ª se encontrou tendo a revogar uma ordem que anteriormente dera.

            E essa resolução formal não significa por modo algum a insistencia caturra d'um espirito vaidoso que não quer dar o seu bracinho a torcer, senão antesm a presistencia (persistencia) sensata de quem, tomando uma resolução firmada no voto officialmente reconhecido como competente, entende não dever revogar tal resolução para não desconsiderar esse mesmo voto.

            Os peritos tinham dado a sua opinião ; o sr. marquez resolveu conforme a opinião dos peritos. Os protestos da opinião publica vieram contrariar a opinião dos peritos e o sr. marquez, reconhecendo talvez razão á opinião publica, mas não querendo desfeitar a opinião dos peritos, isto é, collocado entre o Scylla do seu bom sendo de homem illustrado e o Carybdes da sua lealdade de fidalgo brioso, optou pela unica das soluções dignas : demittir-se, para não descontentar nem a opinião do publico nem a opinião dos peritos.

            Este acto, como outros do sr. marquez, assumindo pessoalmente a inteira responsabilidade de quanto praticam os seus subordinados, define bem a lealdade do seu caracter e está perfeitamente d'accordo com as tradicções da velha aristocracia, lembrando a isenção briosa dos velhos fidalgos, que acolhiam e deffendiam quantos lhes transpunham as muralhas do solar pedindo coito, sem que buscassem sequer indagar-lhes a proveniencia.

            A resolução do sr. marquez de Pomares faz-nos gastar dois bilhetes de visita : um para s. ex.ª dando-lhe os parabens, outro para o districto de Lisboa dando-lhe os pesames.

Tarantula.

In OS PONTOS NOS II, Lisboa - 3 de Maio de 1888

In OS PONTOS NOS II, Lisboa - 3 de Maio de 1888