1 DE SETEMBRO DE 1932 - A INTRUJICE OU A PALHAÇADA CHAMADA «CORRIDA DE TOUROS» EM PORTUGAL

 

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Escrever sôbre toiros não é fácil: Demanda saber. Demanda conhecer não só os bichos, como os homens que os lidam. É necessário também saber para que público se escreve. Entre nós, poucos são os que se têm dedicado a essa espécie de literatura. Entre êles, surgiu há anos um nome que depressa se impôs: D. Bernardo da Costa (Mesquitela). Os seus primeiros artigos impuseram-no como crítico. Logo a seguir, encetou uma campanha a favor dos toiros de morte. As entidades oficiais não o ouviram. Bradou no deserto. No entanto, o volume em que coligiu as crónicas em prol do seu pensamento, vendeu-se ràpidamente. Em Portugal — principalmente por êsse Ribatejo — ainda há quem goste de toiros. Actualmente D. Bernardo da Costa (Mesquitela) perde-se em jornais semanais. Os seus escritos são pouco lidos. Mas... acaba de sair outra obra : Festa Brava. Traz o seu nome. É uma colectânea de alguns artigos já publicados, e contém nova matéria. Dessa, respigamos algumas páginas. Têm interêsse, não só para os aficionados, como para os que são leigos no assunto. Há nelas calor, energia, mocidade e desassombro. São páginas para juntar nais tarde à História das Touradas de Eduardo de Noronha, obra que deve estar na estante de todos os que amam as coisas tauromáquicas. Eis o que transcrevemos do novo livro de D. Bernardo da Costa (Mesquitela) que merece ser lido com atenção :

I —  CRISE

            Há cem anos que a Tauromaquia está em crise em Portugal.

            Desde que se acabou com o toiro lidado em hastes limpas e morto na arena, e a lide passou a ser a intrujice do toiro embolado, a luta entre os dois elementos, o homem e a fera, perdendo o seu alto significado, o seu simbolismo, perdeu interêsse, perdeu beleza e cêdo se transformou nesta palhaçada ignóbil que á a «tourada à portuguesa», em que os toureiros são uma espécie de funcionários públicos que só assinam o ponto e os toiros umas pobres criaturas alugadas para fazer o ridículo, perante o gáudio avinhado de uma multidão ignorante e imbecil.

            O rejoneio másculo dos nossos avós, arte essencialmente fidalga e varonil — deu lugar ao toureio a cavalo das inúmeras filigranas e, sejamos francos, das inúmeras mentiras. Como o ginete já podia ser tocado porque o toiro, sem pontas, não lhe furava as carnes e o público difìcilmente se apercebia do êrro na medição das sortes, os cavaleiros, uns por carência de predicados próprios, outros por não cuidarem da condição básica do seu mister — a defesa rigorosa das montadas — levaram a primitiva e arriscada arte às últimas conseqüências.

            Porque mesmo assim, mesmo com bigodes e ademanes pouco aristocráticos, êles continuavam sendo os mantenedores da única coisa verdadeiramente tradicional — o toureio a cavalo — os toureiros de pé, não acompanhando a evolução que se operava em Espanha, limitaram-se a ser os auxiliadores daqueles, os «capinhas», que agora pomposamente se chamam «bandarilheiros» e que nós com com mais propriedade deviamos chamar «bandarilhadores», já que não fazem mais que espetar bandarilhas de qualquer forma, e, em geral, da forma pior.

            E como suprimindo a morte do toiro — finalidade lógica do espctáculo — havia necessidade de inventar um outro desfecho forte e emotivo, recorreu-se à «pega» — encontro brutal do toiro com oito homens, que o dominam, não pela arte, bem rudimentar, mas porque no seu conjunto pesam quási o dôbro e porque o animal chega ao fim desta lide disparatada com tamanha dose de aborrecimento, que tudo consente, tudo suporta, contanto que o não o espicassem mais e que o mandem embora. A «pega» não é uma finalidade bárbara, mas é uma finalidade bruta. E foi êste desfecho bestial, que não representa a inteligência do homem dominando o instinto da fera, mas sim o embate da fôrça contra a fôrça, matéria contra matéria, que se elevou à categoria de tradição nacional e que muitos «aficionados» supõem ser uma invenção portuguesa, ignorando, como em geral ignoram tudo, que já os moiros das Espanhas pegavam toiros — e desembolados — e que outrora na Grécia, cinco séculos antes de Cristo, toiros enormes e possantes e da mesma forma em hastes nuas — conforme atestam os desenhos duns barros encontrados na ilha de Creta — eram valentemente pegados... por mulheres !

            Arranjou-se desta forma a toirada ; e desde então, Portugal — na frase vingadora de Carlos Viana — passou a ser um país de embolados.

            Esta toirada, porém, com tudo que encerra de grotesco, de falso e vergonhoso, tem sido sacudida de tempos a tempos por algumas que outras figuras de incontestável relêvo, as quais, mesmo com embolados, foram grandes e justo é que fiquem célebres. Há meia dúzia de cavaleiros que passam à história, bem como algumas dezenas de forcados, sobretudo amadores, que souberam corresponder com brilhantismo e denôdo ao pouco, ao muito pouco que se exigia dêles.

            Mas com embolados, com toiros que não matam nem ferem, o valor dêstes homens corajosos fica evidentemente diminuido. É triste dizê-lo, mas é assim.

            Poderemos nós comparar, já não digo na arte, mas no valor, o cavaleiro Tinoco, por exemplo, a «Frascuelo»?... Será lícito colocar no mesmo plano de vítimas do toureio, Fernando de Oliveira, que morreu numa praça, é certo, mas de desastre, e Manuel Garcia «Espartero», que um excesso de pundonor fêz perder a vida nas hastes aguçadas daquele toiro colorado de Miura?... Será razoável que a arte, a sublime arte do toureio, vista o mesmo luto pelo forcado X, que faleceu no hospital em conseqüencia de bordoadas misturadas com álcool, e por José Gomes «Gallito» — o sempre chorado «Joselito», que o maldito toiro «Bailador» assassinou na tarde trágica de Talavera?...

II — O MALDITO TOIRO EMBOLADO

            O duelo entre o homem e o toiro tem de ser um duelo de morte, —ou então não tem razão de ser. Entre o espectáculo de toiros e o teatro ou o animatógrafo tem que haver, necessàriamente, uma diferença. E é essa diferença que os portugueses vão tanta vez procurar a Espanha, já que nem ao menos numa única terra portuguesa a deixam ver.

            A festa de toiros, produto admirável do nosso génio peninsular, é — e aqui reside a sua incomparável grandeza — uma tragédia autêntica, onde não há artifícios, nem combinações. É bem a Festa Brava ! A morte, ali, não é convencional, nem representada : quando se morre, morre-se de verdade. Se é bárbaro, se é horrível, não o discutamos agora : morrer é sempre bárbaro, é sempre horrível — mas até à data nem por isso a gente deixa de morrer. Pelo contrário, às vezes é agradável a morte ; outras vezes, oportuna. Muitos a procuram tôda a vida, como única solução libertadora... E depois, se ninguém há de escapar à sua foice, é certamente mais brilhante, mais asseado e mais cómodo morrer duma cornada do que dum cancro...

            Mas deixemos esta triste filosofia e frisemos sòmente a diferença que deve haver, para o verdadeiro «aficionado», entre o que se faz com um toiro em hastes limpas e um toiro privado das suas defesas naturais. Façamos a seguinte confissão, muito embora ela possa chocar a sensibilidade de certas pessoas : há aí um cavaleiro — chamemos-lhe João Núncio — que toureia maravilhosamente ; em Espanha existe outro, Antonio Cañero, que toureia a seu estilo, num toureio muito diferente, — pior, segundo todos afirmamos. Pois bem : cada qual no seu elemento, Núncio fazendo coisas assombrosas com toiros embolados, Cañero rejoneando àsperamente toiros em pontas, eu, que ponho João Núncio acima das nuvens, dou a Cañero muito mais valor.

            Porquê?

            Porque a festa de toiros é uma festa essencialmente brava e bela. Beleza e emoção, mas beleza com emoção : duas coisas que têm de ir juntas. Ora com toiros embolados não pode haver emoção, e, sem ela, não creio que haja beleza.

III — RESULTADOS

            O toiro embolado deu origem ao «toiro corrido» e desta forma o toureio a pé não evolucionou, não progrediu e foi sempre, na nossa terra, a calamidade que nós conhecemos. O toureio não pôde aperfeiçoar-se e ainda hoje o vemos nas nossas arenas a praticar os mesmos erros e os mesmos vícios de há cem anos. Dir-se-ia que só as caras mudam : se até os próprios fatos parecem eternamente os mesmos!... E o toiro, que aqui dixou de se matar (embora nunca deixasse de ser comido) e cujas hastes tapadas também já não matavam, fêz ver ao lavrador a inutilidade da selecção, do apuramento e do gado puro.

            O resultado está-se vendo : em vez de toureiros temos toureadores, para não dizer boeiros, bornaleiros ou espetadores de ferros ; em lugar de artistas, no sentido elevado da palavra, restam-nos artífices, meros operários do toureio ; e em vez de toiros, aparecem por aí uns bicharocos mais ou menos pretos, que dão saltos e às vezes marradas, e com umas cabeças de tal forma monstruosas que muitos críticos, na única definição em que acertam, chamam — cornúpetos.

IV — OS CRÍTICOS

            O mal de tudo isto não vem dos governos, nem dos toureiros, nem dos toiros, nem mesmo do público, que vai sempre para onde o levam. O mal vem daqueles que escrevem para o público e que levam o público atrás do que escrevem. O mal vem dos críticos.

            A crise da tauromaquia em Portugal provém, pois, essencialmente, de uma crise de críticos.

            — O que tem sido o crítico tauromáquico, na nossa terra, de há cem anos para cá?

            Eu não quero melindrar ninguém, tanto mais que muitos dêles dormem já o sono da bem-aventurança, mas a verdade é esta : o crítico tauromáquico português era, salvo raríssimas excepções, uma criatura que gostava muito de ir aos toiros e que não percebia nada do assunto, mas que fingia perceber porque ao pé do seu lugar, que o emrpesário lhe dava para o obrigar a não dizer mal, havia sempre, uns cavalheiros que diziam coisas, muitas coisas, que êle no dia seguinte aproveitava na sua resenha. Êsses cavalheiros também nada sabiam, mas ninguém duvidava da sua ciência porque já eram de idade, iam todos os domingos ao Campo Pequeno e alguns vinham mesmo do Campo de Santa Ana, onde, pelos vistos, se toureava na perfeição...

            Essa criatura, graças a uns amigos políticos, conseguia entrar para a redacção dum jornal, cujo director não lhe ligava nenhuma, nem a êle nem á secção. E o homem, afrontando essa indiferença e convencido, apesar de tudo, da sua importância, passava a dizer ao público o que via e sobretudo o que não via, não pelo prazer de escrever nem pelo desejo de defender a festa en de a cantar, mas pela magia do bilhetinho de graça e duns parcos vintens no fim do mês.

            Creiam no que lhes digo : as condições para se ser crítico de toiros em Portugal eram estas :

            1.º — Conhecer pessoalmente alguns toureiros e empresários e tratá-los por tu ;

            2.º — Não saber nada de toiros ;

            3.º — Não saber escrever português.

            A primeira destas condições ainda hoje em certos casos se demonstra à vista. As outras duas, — é consultar os jornais de há anos : aquilo espremido não deita nada, a não ser uma porção, mais que razoável de êrros gramaticais.

            A função do crítico desconheciam-na êles e nada faziam para a conhecer. Se lhes disséssemos que tinham por missão definir, explicar e orientar eram capazes de cair das nuvens — êle, que julgavam mais que suficiente dizer tôdas as semanas, em estilo de chapa, que a toirada, apesar da amenidade do clima, que tinha levado ao elegante tauródromo da capital farta concorrência, não agradara, mercê da matéria prima... e que o cavaleiro Fulano empregara vária ferragem larga e curta, variando as sortes (como se o facto de variar as sortes tivesse em tauromaquia alguma importância), que o bandarilheiro Beltrano metera um bom par à gaiola (como se fôsse possível um par bom numa sorte que é uma refinadíssima traição), que o espada Sicrano tivera bons pares a câmbio (em vez de quiebro, porque o câmbio, fóra dos bancos, só pode fazer-se com capote ou muleta) e que nos toiros taie e tais fizera com a muleta fainas cingidas e adornadas.

            Esta classificação de «cingidas e adornadas» era o meu divertimento das segundas-feiras. E assim durante muito tempo, porque durante muitos anos a chapa foi a mesma. A mesma, não digo bem : às vezes mudava, sofria uma pequena alteração. Assim, se o toureiro tinha estado valente, mas sem o toiro lhe permitir luzimento, o crítico dizia : — «uma faina cingida, mas não adornada». E já tinha havido ocasiões em que, por um conjunto de circunstâncias inexplicáveis, as faenas tinham sido «adornadas sem serem cingidas»...

            E não havia mais nada, nem a descrição dessas faenas, nem se elas tinham sido as mais ajustadas às condições dos toiros. Pois se êles, coitados, nada sabiam !

            Durante muitos anos fêz-se assim a crítica em Portugal, e em todo êsse espaço de tempo não apareceu ninguém que dissesse, com autoridade e sem mêdo :

            — «Meus senhores, a toirada é uma burla, é uma infâmia e é uma vergonha ! Acabemos com ela, sem dó nem piedade, e que cada um de nós no seu jornal não fale dela senão a rir e para fazer rir, como se fala das coisas pretenciosas e ridículas. Será a maneira dela cair, de pôdre, como das árvores vão caindo as fôlhas que o frio secou.»

            Os críticos, pelo contrário, falavam a sério, e ela, a toirada, convenceu-se por êles que era uma coisa séria. Foi o maior crime que cometeram, maior ainda que a sua ignorância, — e dêle estamos colhendo ainda os doces frutos.

            Da toirada e de tudo quanto se faz com toiros embolados, em boa verdade só pode dizer-se mal. Para se dizer bem — só de troça.

NOTA :

Texto : Bernardo da Costa (Mesquitela)

Ilustrações : Roberto Domingo

In ILUSTRAÇÃO, Lisboa - 1 de Setembro de 1932