3 DE AGOSTO DE 1902 - LISBOA : TOUROS DESGRAÇADOS E ARTISTAS INFELIZES NA FESTA DO CAVALEIRO SIMÕES SERRA...


Biblioteca nacional de Portugal
 CAMPO PEQUENO

Beneficio de Simões Serra

            Com uma concorrencia muito regular, realisou-se no domingo na Praça do Campo Pequeno a festa artistica do cavalleiro Simões Serra.

            O beneficiado deve ter ficado satisfeito pelas provas de sympathia que recebeu, mas o mesmo não lhe deve ter succedido com o resultado artistico da corrida, que foi o que se póde imaginar de mais sensaborão, em consequencia do ordinarissimo curro, fornecido pelo sr. Paulino da Cunha e Silva.

            Chega a parecer inverosimil, que haja um lavrador tão pouco cioso do credito do seu nome, que não duvide e, apresentar na primeira praça do paiz, um curro como o de que tratamos.

            Que cabeças, que cornos, que corpos e que bravura !...

            A armação de alguns, parecia mais de cabras que de bois (não confundir com touros !)

            Houve um, o 7.º, que se alguem o visse em uma estradanão fugiria, porque era o typo real dos bois de carro.

            Que pernas !

            Desconfiamos que se tivesse quem o ensinasse, não teria difficuldade em passar para dentro da trincheira, sem se incommodar a saltar.

            Até mesmo de carnes estavam n'um estado desgraçado.

            Alguns eram tão fracos, que o mais simples recorte os fazia cahir.

            Uma perfeita vergonha !

            Sabemos de um lavrador que a epoca passada nos apresentou dois dos melhores curros que foram corridos n'esta praça, que, tendo soffrido este anno o dissabor de lhe sahir um curro manso, mandou coar todos os touros que tinha para correr.

            Se o sr. Cunha seguisse o criterio do seu collega, teria até que mandar queimar as hervas que se criam nos campos onde comiam os animalejos que mandou para o beneficio de Simões Serra.

            Ainda se comprehende que este artista, não tendo talvez quem lhe fornecesse curro para a sua corrida, acceitasse tudo o que houvesse, mas o que não se comprehende, é que um lavrador não tivesse o pondunor preciso para se negar a trazer á primeira praça um curro d'esta ordem.

            Sabemos perfeitamente que, com raras excepções, os nossos creadores de touros de lide são meros commerciantes, mas procuraram sempre disfarçar o trapio com a gordura, a bravura com o trapio, etc. ; mas, este curro, não tinha nada nada que o recommendasse, nem mesmo para a choupa.

            Felizmente, houve um que se inutilisou antes da corrida, e tivemos portanto a vantagem de um desconto de 10 por cento na nossa indignação.

            José Bento (de Araújo), no primeiro, começou muito indeciso, não regulando o andamento do cavallo, tendo por isso mais de um pescanço, devendo-se no entanto citar um á volta e outro á tira, regulares.

            No 6.º tambem não conseguiu brilhar.

            Simões Serra toureou o 5.º com luzimento e muita vista.

            E note se, que o touro não era «una perita en dulce», como dizem os hespanhoes !

            Antes pelo contrario ; procurava constantemente os peitos do cavallo.

            Serra collocou-lhe uma farpa muito boa, e outras que o publico muito applaudiu.

            Desculpe-nos, Serra, o sahirmos das praxes usadas para os beneficiados, mas não podemos furtar-nos ao dever de lhe perguntar, qual a razão porque soube tourear aquelle bicho, e esta epocha tão pouco tem feito com touros nobres ?

            Pois reparámos que poucas vezes o seu cavallo se tem negado tanto como n'esta tarde !

            Emfim, o que desejamos é que Simões Serra iniciasse na sua festa uma nova phase de correcção artistica.

            No 8.º nada fez, porque aquillo não se toureia, e os peões não o ajudaram.

            A proposito : tocaremos mais uma vez no realejo a tal «polka da brega».

            É realmente uma vergonha que os nossos toureiros, com excepção de Theodoro, não saibam tirar um touro das taboas.

            Qual a razão porque Rocha abriu no primeiro touro o capote para o tirar, e, quando o touro entrou, em logar de repetir outro passe, para ficar no terreno de fóra e poder assim estar prompto a avisar, fugiu para as taboas, levando de novo o animal a onde o havia tirado ?

            Era então melhor fazer o que é costume entre nós : partir das taboas, metter-lhe o capote e saltar a barreira do lado opposto !

            Ao menos não nos fazia soffrer a decepção de julgar que ia-mos ver alguma coisa e não vermos nada !

            Os outros afinam sempre pelo mesmo diapasão, e por isso soffrem constantemente a desconsideração de verem o publico chamar os artistas hespanhoes, para que ponham em sorte os touros de cavallo.

            É duro, mas é assim ; e nós fazemos appello a todos os que se dedicam a escrever sobre assumptos «bicudos», para que se ponha de lado a nota patriotica, e se chegue duro sobre este assumpto, que nos parece merecer a mais severa attenção.

            Com as bandarilhas, apenas citaremos um par bom e outro muito bom, de Thomaz da Rocha, e um bom, de Torres Blanco.

            O espada Antonio Montes, nada poude fazer com a muleta ; em primeiro logar porque os touros se não prestaram, em segundo, porque era preciso fazer pegas, e, portanto, o trabalho do espada, a quem se paga um dinheirão era dispensado.

            Este assumpto promettemos aos nossos leitores tratal-o em artigo especial, no proximo numero.

            Com as bandarilhas, Montes, collocou um par de valor, pelo que ouviu palmas, assim como por ensinar aos nossos peões como se tira um touro das taboas.

            As honras da tarde, foram sem duvida para os valentes forcados, principalmente a Florindo que pegou á terceira, o quarto bicho, que apenas servia para dar derrotes.

            A intelligencia a cargo do publico.

M. T. David

In REVISTA TAURINA, Lisboa - 3 de Agosto de 1902