20 DE FEVEREIRO DE 1888 - LISBOA : CARLOS TESTA, ALMIRANTE E DEPUTADO, DEFENDE NO PARLAMENTO DA PIOLHEIRA O FIM DAS TOURADAS, MAS O CAVALEIRO JOSÉ BENTO DE ARAÚJO...

 


Biblioteca nacional de Portugal

CHRONICA

VIVAM AS TOURADAS!...

            Os jornaes de Lisboa noticiaram ultimamente, que o deputado sr. Carlos Testa, official da marinha portugueza, apresentará á Camara uma proposta pedindo a suppressão das touradas.

            Até aqui, nada de mais natural. O sr. Testa detesta as touradas ; tem voz dentro do parlamento ; e pede que as supprimam.

            A questão consiste em saber se o Parlamento vota a proposta (o que eu não creio) — e se o povo está disposto a submetter-se ao sentimentalismo piegas das Camaras... o que eu tambem não creio !

            As auctoridades competentes já supprimiram em Lisboa o repicar dos sinos e as procissões — o que é um idiotismo indiscutivel, attendendo a que em nome d'um falso espirito civilisador se supprimem os lados pittorescos d'uma capital, os aspectos caracteristicos e inoffensivos, emquanto que por outro lado só reina a banalidade, o crime e a vadiagem impudente. Antes de supprimir os sinos, por que não tratou o sr. Arrobas de supprimir os faias?

            Á suppressão dos sinos e das procissões, como a do Corpus Christi — o povo da capital não pôz opposição.

            Mas agora que pensam em supprimir os seus divertimentos favoritos — as touradas, e depois as festas populares das vesperas de Santo Antonio, São João e São Pedro — então o povo ha de vir para o meio da rua, e estou certo que não ha de ser nem a municipal, nem a policia, que lhe hão de metter mêdo...

            Que um Governador civil imprudente tente tocar-lhe nos seus divertimentos — e n'esse dia andará o Diabo á solta pelas ruas da cidade.

            Não respondo pelos vidros do palacio do senhor Governador !

            A proposta do illustre deputado o sr. Testa, o mesmo que contesta que possa ser um prazer d'homens civilisados ver metter um par de ferros no cachaço d'um touro — teria passado desappercebida, como frouxo grito d'um sentimentalismo d'importação, se um cavalleiro tauromachico portuguez não viesse provar dias deois ao sr. Testa, que n'uma praça de touros tambem ha mais espirito e humorismo do que n'um parlamento, e mesmo do que em muitos folhetins de folhetinistas na moda.

            O cavalleiro tauromachico José Bento d'Araujo vendo que um official de marinha e deputado, em vez de estudar questões maritimas ou coloniaes do seu paiz, passa no seu gabinete a estudar as questões tauromachicas — o que pensam os leitores que decidio o cavalleiro?...

            Estudar por seu turno as questões que dizem respeito ao ministerio da marinha ! E tratou de promover um meeting composto de todos os amadores de touradas, em plena praça do Campo de Sant'Anna, para pedir ao Parlamento que acabe com o uso da chibata a bôrdo dos nossos navios de guerra !

            A lição não podia ser mais fina, nem mais eloquente...

            Francamente, que não faço a menor ideia do espanto e da surpreza que deviam ter assaltado o sr. Testa, no momento em que leu semelhante noticia...

            E a sua proposta de lei para a supressão das touradas — mesmo que fosse merecedora dos applausos de toda a camara e de todo o paiz — não precisa ser discutida nem posta á votação, para ter de cahir redondamente pelo ridiculo.

            A lição é tanto mais dura, quanto ella é espirituosa e inoffensiva. Lembra-me até a famosa lição das Précieuses ridicules de Molière, quando as duas mulheres tomam o marquez de Mascarille e o amigo por dois personagens da côrte... quando não passam dos criados dos homens que ellas não quizeram por maridos, julgando-os homens excessivamente vulgares, sem distinção e sem espirito.

            Pois o sr. Testa, official de marinha, lembra-se de propôr ao parlamento a suppressão das touradas — quando na marinha portugueza não são touros que são corridos, mas são marinheiros, mas são homens como nós, como eu e tu leitor, que são corridos á chibata?!...

            Que um outro deputado — talvez por ter levado em môço uma bôa bolada d'um touro, no sitio em que os touros ironicamente costumam ferir os medrosos — se lembrasse de supprimir as touradas, d'accordo. Mas que um official da marinha portugueza se lembre de pedir a suppressão das touradas, por que deixam o animal a escorrer sangue, emquanto na nossa ramda, á força de chibata, ficam a escorrer sangue os lombos dos nossos irmãos, isto em nome da Disciplina, com o consentimento da lei, e á sombra do Pendão das quinas — é o que passa todos os limites do inverosimil!...

            Este facto e este contraste tão prodigiosamente comico, que mais parecem extrahidos d'alguma comedia extravagante de Labiche — provam mais uma vez que o Figaro tem carradas de razão, quando diz ácerca das coisas de Hespanha... que prefere rir de tudo, com mêdo de ter de chorar...

            Pois n'esta scena de comedia, os meus leitores não vêem os disparates e a anarchia que reinam em todas as classes da nossa sociedade?...

            Um deputado, official de marinha — que eu aliás respeito tanto mais, quanto não tenho a honra de o conhecer — em vez de se preoccupar com as altas questões que diariamente o cercam ; e de auxiliar com a sua intelligencia e com os seus conhecimentos, a resolução do problema maritimo e colonial, hoje que toda a Europa, áparte a questão do Oriente, só tem os olhos fixados sobre as questões africanas — um deputado, official de marinha, limita-se no parlamento, como se fosse uma questão que preoccupasse a Europa e de que estivesse dependente a nossa independencia... a pedir ao governo a suppressão das touradas !

            E é um cavalleiro tauromachico que chama espirituosamente á ordem esse senhor deputado e inutilisa a proposta do sr. deputado-official de marinha — promovendo um meeting na praça de toiros de Lisboa, para pedir ao governo que supprima o supplicio da chibata a bôrdo dos nossos navios de guerra !

            Donde se póde concluir, sem maldade, o seguinte :

            Que seria conveniente submetter a um conselho de medicos os dois antagonistas. Talvez os homens de sciencia, graças aos maravilhosos recursos de que hoje dispõem, encontrassem no sr. Testa uma vocação errada, e um optimo temperamento para presidente da Associação protectora dos animaes — e no sr. José Bento d'Araujo uma vocação decidida para contra-almirante !...

            Parece-me escusado insistir nas vantagens d'uma tal descoberta. Os touros podiam dormir tranquilos — e se é facto que a chibata existe, o nosso paiz podia contar uma vergonha de menos !...

            Mas que mania é esta, em nome d'um falso sentimentalismo, d'uma falsa civilisação e d'um falso progresso — de quererem dar cabo das touradas, quando a tourada é o unico divertimento, é o unico espectaculo, verdadeiramente portuguez, que nós hoje possuimos ?...

            Em nome de que principio é que se vae tirar a um povo uma das suas raras distracções ?

            Supprimir as touradas porque não é um espectaculo edificante — equivale a dizer que em seguida se vão supprimir as romarias, que é um espectaculo ainda menos edificante que o primeiro.

            Eu pergunto aos nobres deputados que estejam atacados da raiva da civilisação, qual é mais ridiculo e mais immoral — ver um touro sangrando porque lhe metteram um par de ferros no cachaço... ou ver a Virgem sahir d'um templo, ser collocada dentro d'uma berlinda ridicula, e ser levada por um cirio mascarado, através das povoações, ser levada para um bando de borrachos até ao templo da Senhora da Nazareth ?...

            Se a moralidade do meu paiz dependesse das touradas, eu supprimia primeiro os cirios — porque isso toca á nossa fé, toca á nossa religião !

            Mas ao contrario dos moralistas de fancaria — eu, que me considero homem moderno e homem livre, que amo e combato pela dignidade da minha terra, que só peço ao Deus de todas as religiões que no meu paiz haja uma mais justa ideia da verdadeira Moral — da moral publica e da moral privada — eu não hesito em defender as touradas como um espectaculo essencialmente nacional, com o qual nada tem que soffrer a moralidade publica, — assim como defendo os cirios, porque não olho para os ridiculos que só saltam á vista d'um atheu de contrabando, e porque nos cirios só vejo o seu lado pittoresco e a poesia ingenua e pagã que d'elles se evola, e que os torna encantadores !...

            Querem supprimir as touradas ?... Mas por que divertimento pensam os srs. moralistas substituir esse divertimento predilecto do nosso povo ?...

            Os srs. moralistas gostam mais das corridas de cavallos, das regatas e do tiro aos pombos. D'accordo. São espectaculos mais mundanos — mais catitas, como diz o lisboêta na sua linguagem abandalhada.

            Mas porque os srs. Moralistas gostam do divertimento catita, não contestem ao povo o direito de gostar do divertimento popular.

                        Apesar de me não inspirar o menor intresse nem uma corrida de cavallos, nem um concurso de tiro aos pombos, nem por isso deixo de convir que são coisas elegantes — e distracções tão crueis e tão immoraes como uma corrida de touros !

            Mas prefiro uma tourada — e querem os srs. Moralistas saber porquê ?...

            Porque de todos os grandes espectaculos a que tenho assistido em Lisboa, nenhum me ficou tão gravado na memoria, nenhum me apparece ainda hoje ao meu espirito mais deslumbrante, mais pittoresco e mais enthusiastico — do que a ultima corrida organisada em Lisboa, ha uns bons quinze annos, por esse nobre e distincto representante da antiga fidalguia portugueza, que se chamou Marquez de Castello Melhor.

            Porque ainda tenho presente aos meus olhos o deslumbramento da praça do Campo de Sant'Anna, toda adornada se setins e damascos ; a elegante figura do Marquez, vestido á Marialva, como se fosse uma soberba e magestosa ressurreição d'um portuguez e d'um cavalleiro do seculo XVIII ; todo o grupo de rapazes distinctos que o rodeava, de bellos rapazes d'uma geração de que parece ter-se perdido a semente, e que foi substituida mais tarde pelo janotinha do Chiado, de collarinhos postiços e monoculo ; e o publico applaudindo em delirio, cobrindo de flôres e charutos a praça.

            E em todo aquelle maravilhoso espectaculo, sem maldade e sem immoralidade, parecia ainda viver uns restos d'esse bello Portugal do seculo passado, quando um cataclysmo medonho arrazava Lisboa, e ainda havia em terras de Portugal portuguezes que sabiam em pouco tempo, sobre as ruinas d'uma cidade, edificar outra cidade !...

            Supprimir touradas ?!... Mas não é d'isso que está dependente o nosso decoro, nem tão pouco a nossa fortuna...

            Em vez de supprimir touradas — tenham a bondade de supprimir secretarias ! E que o parlamento auctorise o Governo, ou o Governo auctorise a Camara — a construir uma bella praça de touros ás portas de Lisboa. (NOTA : Foram edificadas poucos anos depois duas praças : a do Campo Pequeno e a de Algés, nos arredores da capital).

            É preciso que o povo se divirta — pobre povo que não faz senão pagar !...

MARIANO PINA

In A ILLUSTRAÇÃO, Paris - 20 de Fevereiro de 1888