2 DE AGOSTO DE 1896 - RIO DE JANEIRO: CASA CHEIA PARA UMA CORRIDA DE SUCESSO (na imprensa brasileira)


Biblioteca nacional do Brasil


A tourada de hontem

A tourada de hontem foi um verdadeiro successo dos que nunca tiveram por theatro a praça de madeira ha annos construida na rua Boulevard.

Começou a surpresa por uma enchente real, uma enchente faustosa, uma enchente das que honraria a mais sumptusosa casa de espectaculos.

O sol estava repleto de gente burgueza, toda vestindo com o apuro reservado ás grandes festas; a sombra encerrava senhoras, crianças e cavalheiros da maior correcção; os camarotes estavam todos occupados por familias distinctissimas; e naquella espaçosa archibancada e nestes recintos selectos a animação era enorme, o luxo extraordinario e o aperto inexcedivel. Ás 3 horas da tarde, quando principiou a tourada, a lotação da praça estava completa, fechavam-se os guichets da venda de bilhetes, e a porta era a custo defendida da grande multidão invasora.

O que determinara tão excepcional concurrencia? É dificil dizel-o, sobretudo ao ponderar que a imprensa foi sobria em reclames, e a empreza não foi prodiga em annuncios.

A anciedade trahia-se em todas as physionomias. Que tarde teremos? Que taes serão os bois? Como se portará a quadrilha? Que figura fará o cavalleiro?


Ás 3 horas e 10 minutos a gritaria da rapaziada que não sabe estar quieta e que distrahia as 10.000 pessoas apinhadas em torno da arena foi abafada pelo toque do clarim dando entrada aos que tinham de lidar os touros.

As duas bandas de musica, em concordancia, fizeram soar o hymno nacional; e foi sob a cadencia dessa harmonia electrisante que o elegante cavalleiro José Bento de Araujo, recordando o apuro caracteristico dos Marialvas, entrou no meio da grande quadrilha de bandarilheiros.

O cavallo negro que elle montava; soberbamente ajaezado, pisava a arena com o garbo e a destreza de quem bem conhecia o seu papel. As continencias do estylo foram enthusiasticamente correspondidas; e desde logo todos os espiritos se prepararam para uma real e sumptuosa festa tauromachica.

Recolheu-se José Bento (de Araújo) para volver, passados tres segundos, em outro soberbo cavallo branco. Era nesse que elle tinha de lidar o primeiro touro. O mesmo luxuoso vestuario, o mesmo chapéo á directorio, luvas de pellica branca e rigida firmeza na sella.

Outro signal de clarim, e o curro abriu-se para dar passagem ao bicho. E que bicho!

Um touro negro de azeviche, carranca enorme, fechada em carapinha, cachaço grosso, e pé ligeiro, saiu do curro, voltou-se para todos enfurecido: alguem o aguilhoara. Depois, um bandarilheiro chamou-o com a capinha vermelha, e elle arremetteu violentamente. Satisfação geral: o boi promettia.

José Bento (de Araújo), munido de uma farpa, guiou o cavallo para a frente do animal que logo correu sobre o ousado recebendo com denodo e ferro enfeitado.

Um delirio se apoderou de todos os espectadores; e emquanto o bravo touro corcoveava sacundindo o pescoço farpeado. José Bento (de Araújo) ouvia a estrepitosa salva de palmas que lhe approvava a destreza.

Assim outro ferro, mais outro, outro mais se firmaram no pescoço da féra, que se prestava a todas as sortes e dava triumphos sobre triumphos ao aguerrido cavalleir.

Já então a grande massa de espectadores acclamava incessantemente a empreza que tão bella festa proporcionava aos amadores de touradas; das archibancadas e dos camarotes partiam brados ovantes, e os lenços mil eram agitados por senhoras e cavalheiros presos de enhusiasmo febril.

O touro escorvava a arena, arremettia possesso contra todos que cruzavam, perseguindo os bandarilheiros atè a trincheira onde parava com o olhar explorador e um tremor de enraivecido.

Dada por completa a farpeação, recolheu-se o cavalleiro e o animal ensanguentado foi posto á prova na capinha dondejante. Ainda ahi mostrou que era bicho para satisfazer os mais exigentes, e chegou a lançar por terra um bandarilheiro que tambem se mostrou apto e habil para lidal-o.

Depois houve a pega; e os moços de forcado portaram-se de modo a concorrer devéras para acreditar a empreza que inaugurava esta época tauromachica.

O que se passou com este primeiro amimal foi, mutatis mutantis, o que se passou com todos os outros.

A corrida foi cheia. Os espectadores em numero nunca inferior a 10.000 sairam absolutamente satisfeitos; a festa encerrou-se no meio dos mais francos applausos e das mais freneticas acclamações.

É que uma tourada escrupulosamente organizada com pessoal dextro e boi valente, não sómente agrada pelo effeito da lida como pela etiqueta sui generis que dá ao divertimento um colorido especial, causa infallivel de impressões inesperadas.

Ali ha o rigor de uma escola irreprehensivel; e o pessoal que comsigo trouxe Alfredo Tinoco confirmou hontem os creditos trazidos da Europa, e promette agradabilissimas tardes aos apreciadores de touradas que são numerosos no Rio de Janeiro.

In O PAIZ, Rio de Janeiro - 3 de Agosto de 1896