21 DE MAIO DE 1894 - LISBOA: UMA CORRIDA E TRÊS COLHIDAS PARA O CAVALEIRO JOSÉ BENTO DE ARAÚJO NA PRAÇA DO CAMPO PEQUENO



Biblioteca nacional de Portugal

CHRONICA DAS TOURADAS

CAMPO PEQUENO


7.ª corrida da epocha. - Espadas: Francisco Gonzalez, Faico, e Enrique Vargas, El Minuto. - Touros do sr. commendador Carlos Augusto Marques.

A corrida de domingo transferida para segunda feira em consequencia do mau tempo, não foi o que todos esperavam, visto os elementos de que dispunha, e para isso concorreram poderosamente duas cousas: Os touros e o pessimo tempo. Parecia uma tarde do mez de novembro, em que é preciso andar bem abafado, a de segunda feira passada.  A manhã appareceu tristonha e de vez em quando uns pequenos chuveiros vieram burrifar a cidade, incutindo assim o desanimo nos aficionados que queriam assistir á corrida. Do meio dia em deante a chuva desappareceu, mas a tarde continuou muito agreste e sombria, afogentando assim muita gente de ir ao seu espectaculo predilecto, pois que a praça estava pouco mais de meia.

Á 4 e meia da tarde, compareceu no camarote da auctoridade o sr. Teixeira, entrando pouco depois no camarote real de Sua Magestade El Rei e o sr. D. Affonso, acompanhados dos seus dignatarios de serviço. No mesmo instante ouve-se o som tradicional do cornetim que indica a sahida da cuadrilla. Feitas as cortezias, cada um toma o seu logar, sahindo Faico com a farpa para o cavalleiro José Bento (de Araújo) que tem de farpear o 1.º touro de nome

Penacha, preto, listão, bragado, calçado dos pés e de cornea regular. José Bento (de Araújo) á gaiola deixa um ferro descahido, sendo o cavallo colhido. Mette depois um ferro á tira que ficou tambem descahido, sendo o cavallo novamente tocado. Depois o Penacha dá uma recarga no cavalleiro, entrando Cadete a quite. Mette depois um ferro á meia volta superior, dois á tira e outro á meia volta muito bom. Pega n'um par de bandarilhas e depois de muito trabalho baldado tem de retirar, porque o touro não toma nada.

Sáe o 2.º, que dá por Joeiro, preto e bem armado. Minuto deixa á gaiola meio par mau, entrando Theodoro, que colloca um par a cuarteo, bom. Minuto cita novamente a cuarteo, não rematando a sorte; nova tentativa e deixa meio par a cuarteo. Theodoro deixa outro par a cuarteo, com que fecha a lide. O espada Minuto com o capote tira tres veronicas, um passe de frente por detraz e varios galleos de costados. Foi pegado de cernelha o Joeiro, que recolhe, sahindo então o

3.º, que foi baptisado com o nome de Golphinho, negro e de cornea regular. - Zayas á gaiola deixa um par, sendo colhido. Faico dá um capotazo no Golphinho, e entra então Noteveas deixando um par a cuarteo. O espada Minuto executa um recorte (palmas). Zayas mette mais um par a cuarteo, Noteveas deixa outro par em egual sorte e fecha a lide Zayas pondo meio par cuarteando-se. O espada Minuto com a muleta e com muito arrojo tira dois passes naturaes, seis de peito e tres redondos primorosos, finalisando com uma estocada a passo de bandarilhas, má. É recolhido o Golphinho, depois de muita gritaria contra o Botas e apparece o

4.º que dá nos campor por Boleto, preto, e bem armado.
- Morenito á gaiola deixa um par de sobaquillo. Recortes de Faico e Minuto (palmas). Pulguita deixa um par em egual sorte ao do seu collega. Outro recorte de Minuto (palmas). Entra novamente Morenito e prende um par bom a cuarteo. Pulguita colloca mais meio par a cuarteo tambem, e fecha Morenito com um par bem collocado em egual sorte. Faico pegando na muleta, muito parado dá cinco passes naturaes, um alto, sete de peito e entrando a matar sem o touro estar egualado, sáe emborcado. Depois é o Boleto bem pegado de cara.

Pouco depois sáe o 5.º de nome Estorninho, preto, listão e bem armado. - Fernando de Oliveira perde a sorte de gaiola, e entrando á tira deixa o ferro inteiro, mette depois um á meia volta, um á tira bem collocado e fecha com um ferro bem rematado á meia volta.

Pertence ao espada Minuto o 6.º, que se chama Condeço, preto, listão e de cornea regular. - Á gaiola espera a rez, mas não deixa os ferros porque o touro lhe sahiu muito fóra do engano, depois põe um par á topa-carneiro, um a quiebro, um á topa carneiro regularmente rematado, depois outros dois em egual sorte e depois cita a corpo limpo esperando bem. Pegando na nuleta dá um passe alto, espera o touro de joelhos, que não acode, mais quatro altos, um em redondo, seis de peito, joelhando n'um d'estes. Entra a matar regularmente (palmas). O touro foi bem pegado de cara.

Intervallo. - Uns sáem, outros ficam de cavaco, ouve-se a banda da guarda e quinze minutos depois, apesar da gritaria do publico que queria que a corrida continueasse, e a que o Botas não accedeu, entra novamente na arena o cavalleiro José Bento (de Araújo), que vae esperar o

7.º, que é tratado por Lisboa, raiado, listão, bragado e cornealto. - O cavalleiro, que perde a sorte de gaiola, põe depois um ferro á garupa, um á meia volta descahido, um á estribeira sendo colhido o cavallo. Colloca depois um par de bandarilhas á tira, sendo novamente colhido, e citando varias vezes para outro par de bandarilhas não consegue o seu intento.

Sáe depois o 8.º de nome Volante, negro e bem armado. - Faico á gaiola tenta um quiebro, mas deixando entrar muito o touro o unico recurso que toma é deitar-se, porque de contrario soffreria uma valente colhida. Depois deixa um par mau a quiebro, depois outro regular em egual sorte. Mette depois de varias tentativas dois á topa-carneiro, e remata com dois pares a cuarteo primorosamente collocados. Com a muleta tira nove passes de peito, quatro redondos, quatro naturaes, quatro por alto, soffrendo a matar um desarme (palmas).

Apparece em seguida o 9.º que é conhecido nas lezirias pelo nome de Ramalho, raiado listão, bragado, bocalvo e de muita carne. Cadete com a vara, á gaiola não pôde executar o salto, dando o depois de varias tentativas, incompleto, porque o touro não arrancou a direito. Faico faz um quiebro de rodilhas (palmas). Theodoro cita a quiebro e deixa um par regular, entra Cadete e põe um par a cuarteo bom. Theodoro cita novamente a quiebro mettendo outro par e Cadete colloca n'um cuarteo outro par. O espada Minuto sentado no estribo e sem mudar de posição cita o touro, que tira fóra de si com um recorte (palmas). Theodoro deixa então um par cuarteando-se, muito bom e Cadete fecha a lide fazendo um sesgo primoroso deixando um par. Faico cede o capote a Theodoro, mas o touro não dá nada e é recolhido.

Vem para a arena o 10.º que é conhecido por Ginete, raiado, escuro e cornealto. - Fernando que não pôde executar a sorte de gaiola, põe em seguida dois ferros á garupa, um á meia volta, sendo colhido, e outro á garupa, sendo novamente tocado. Pede para bandarilhas, não conseguindo o seu intento, pois que o touro está na querença, e não ha um capote que o saiba arrancar d'alli, tendo de ir para dentro.

Abre-se em seguida a porta ao 11.º, que era o Escudeiro, negro, brgadado e bem armado. Noteveas á gaiola deixa meio par, entra Zayas, que prende meio par a sobaquillo e cita novamente Noteveas, que colloca meio par a cuarteo. O publico pediu para os maestros bandarilharem, mas elles não sáem da trincheira. O espada Minuto com o tropo tira cinco passes altos, quatro de peito, e dois naturaes. Tenta dar uma estocada á meia volta, o que não consegue por causa do touro que é um verdadeiro saltador (palmas e assobios).

Sáe o 12.º e ultimo, Moscardo se chama, raiado, listão, olho de perdiz e gaiollo. O publico pede novamente que bandarilhem os maestros. Faico acede, mas Minuto não toma nada. Faico pega então nas bandarilhas de Morenito, e executa um quiebro mau deixando os ferros descahidos, cita a cuarteo que não remata, põe um par bom n'um quiebro e fecha com um par a cuarteo superior. Pega no capote e dá quatro veronicas, um pharol e uma navarra. Faz signal ao Botas para não tocar e pegando na muleta tira tres naturaes, tres altos, dois de peito, e arrancando a matar a passo de bandarilhas sáe desarmado.

APRECIAÇÕES


Touros: - Pertenciam ao sr. commendador Carlos Augusto Marques. Não foi d'esta vez feliz o acreditado lavrador nas rezes que forneceu para a praça do Campo Pequeno. E porquê? É o que ninguem sabe responder, nem o proprio dono. É certo que o sr. Marques tem fornecido curros muito bons, mas foi notavel o contraste, e com franqueza foi pena, porque tirou muito valor á lide que correu por vezes difficultosa. Não queremos no entanto censurar o sr. Marques, attendendo a que, se o curro de domingo não cumpriu, os antecedentes que tem fornecido satisfizeram plenamente. Não merece, e não é licito que se dirijam censuras a um lavrador acreditado, e que se tem esmerado no apuramento das suas raças, e que uma vez, por um motivo qualquer, os seus touros sahiram maus, quando é certo que tem mandado touros de superior qualidade, satisfazendo o publico em geral. Dos doze touros que se correram na maioria, sahiram mal intencionados, defendendo-se, e saltadores, querendo fugir e difficultando muito a lide. Alguns mansos e outros uns macacos de muito saber. Exceptuam-se apenas o 1.º, nobre e voluntario, o 6.º que foi bravo, e o 12.º que cumpriu. E se mais algum deu lide, o lavrador deve-o apenas ao valente e pequenino Minuto, que quer-nos parecer que todos os touros marram embora mansos, quando elle tenha que lhe ir para a frente. Portanto não esmoreça o sr. Marques e continue na sua tarefa como até aqui, porque não há ninguem que se não engane uma vez ou outra.

Espadas: - Falemos primeiro de Minuto, que é mais antigo que Faico, e que pela primeira vez veiu a Lisboa deixando o publico enthusiasmado com o seu arrojado trabalho. Pena é que não tenha mais corpo. É um arrojado de primeira ordem e ao mesmo tempo sabe muito e vê mais, que é um dos grandes predicados para um toureiro. Cita de tal forma um touro, que elle tem de marrar á força. Com a muleta o seu trabalho é muito acceitavel e embora um pouco movido por vezes. Tirou uns passes de peito magnificos e uns redondos primorosos. Possue incontestavelmente um braço esquerdo de primeira ordem. Com o capote tambem o seu trabalho é muito apreciavel. Teve recórtes de luzimento e sentando-se por vezes no estribo da trincheira, espera o touro, e sem mudar de posição tira o touro fóra de si, com a maxima perfeição dando-lhe apenas um bocadinho de capote. Bandarilhou o 6.º touro, pondo pares magnificos rematados á topa-carneiro.

Simulou uma estocada que sahiu má, a passo de bandarilhas, e tentou dar outra á meia volta, o que não conseguiu por causa da má qualidade da rez.

Emfim, é artista, muito rijo e valente. Tem predicados verdadeiramente notaveis para occupar um bom logar na tauromachia.

Faico, ja nosso conhecido, continuou mostrando as suas aptidões, muito trabalhador e em demasia benevolo em acceder a tudo quanto o publico imagina.

Com a muleta esteve por vezes bem, parando-se muito, e mesmo mais sereno. Com o capote teve passes de grande luzimento, principalmente dois de frente por detraz, com a maior limpeza e elegancia. Com bandarilhas esteve bem, especialmente dois cuarteos que executou primorosamente. A matar esteve infeliz, pois que nunca egualou os touros, sahindo sempre emborcado e soffrendo desarme. O quiebro de rodillas que executou foi tambem muito perfeito.

No 11.º touro o publico pediu que bandarilhassem os maestros. Faico accedeu, mas Minuto recusou-se. No 12.º o mesmo pedido, tendo que Faico ir bandarilhar só, por que o seu collega não tomou nada.

Cavalleiros: - José Bento (de Araújo), no 1.º touro, um animal voluntario e de bastante poder, logo á gaiola foi colhido. Depois n'uma meia volta foi novamente colhido. N'este touro teve apenas dois ferros dignos de elogio. Esteve muito infeliz.

No 2.º que lhe pertenceu, continuou da mesma forma com a macaca, soffrendo n'uma sahida á meia volta uma colhida muito valente. Mas elle sempre alegre e risonho!... No entanto teve ferros regulares, e o touro era dos taes que sabem mais que o artista.


A Fernando de Oliveira largaram dois bois da pior especie, em que elle á custa de muito trabalho, de bem citar e de muita força de vontade conseguiu metter alguns ferros sem luzimento, devido ás nobres rezes que lhe pertenceram.

Bandarilheiros: - Tratemos em primeiro logar dos novos e brilhantes principantes: Theodoro e Cadete hontem mudaram de trabalho, com grande alegria de todo o publico, o que com a maxima franqueza gostámos de ver, pois que revela a firme vontade que teem de aprender. Cadete no 9.º touro deu um salto de vara, e se não foi completo, apenas a culpa foi do touro, que não arrancou de largo a largo. Theodoro depois citou a cambio pondo dois pares, sendo o primeiro muito regular. Em seguida deixou um par a cuarteo superior. Cadete bandarilhou muito bem, pondo ferros de mestre, principalmente o ultimo, um sesgo primoroso. Um bravo sincero aos novos e distinctos bandarilheiros, fazendo votos para que continuem e venham a preencher as lacunas que se encontram na tauromachia portugueza. O publico applaudi os e com toda a justiça. Minuto ha tempo a esta parte está deveras infeliz com as bandarilhas. A épocha passada brilhou com os palos e muito, pondo pares magnificos. Este anno é uma coisa verdadeiramente notavel: todas as tardes uma macaca terrivel o persegue, que por todos os meios ao seu alcance deve ver se consegue atirar para bem longe, para continuar a conservar os seus creditos como artista.

Os bandarilheiros de Minuto nada fizeram de notavel. Os de Faico tiveram alguns pares superiores.

Forcados: - Portaram-se valentemente, fazendo duas pegas de cara, rijas a valer, e uma de cernelha muito boa.

Direcção: - Não ha meio de fazer entrar o Botas no caminho recto. Na tourada passada elogiavamos a ordem que se tinha mantido na arena, mas isso durou pouco tempo, com pezar nosso, porque domingo reinou alli a mais completa anarchia. Tudo manda menos o sr. director das corridas. O que alli se fez não se vê, estamos certos, na praça de Alcochete. Forcados fóra, forcados dentro. O cornetim toca, torna a tocar. O publico grita, e o Botas, com uma cara que chega a metter dó, faz o que elle manda. Ora, com franqueza, isto não pode continuar, para o bom nome da primeira praça do paiz. A empreza, pelo que vemos, não tem forma de fazer entrar aquillo nos eixos. E desassombradamente o dizemos, quem soffre é ella. 

Sabemos perfeitamente que o culpado é o Botas, que não se revestindo da auctoridade que deve ter, deixa correr tudo aquillo á revelia. É pregar no deserto, temos a certeza mas não abandonaremos o assumptro.

Resumo geral. - O publico muito exigente, pedindo o que não devia, e gritando com razão contra o Botas e um pouco frio por vezes no decorrer da lide.

D. JOSÉ TENORIO

In A TOURADA, REVISTA TAURINA, Lisboa - 27 de Maio de 1894