É sempre curioso revolver a poeira do passado, recordando figuras e factos ligados à história da tauromaquia.
A praça de toiros da capital portuguesa, denominada «Campo Pequeno», por cujo redondel têm passado dos melhores artistas portugueses, espanhóis e mexicanos, é daquelas que possuem uma interessante história, que vou tentar desfiar.
Por volta de 1831, foi inaugurada a famosa praça do Campo de Santana, construída no local onde hoje existe a Escola Médica, a pedido do Administrador da Casa Pia de Lisboa e por conta desta instituição foram feitas as respectivas obras.
À primeira corrida assistiram D. Miguel de Bragança e sua irmã, a infanta D. Maria da Assunção, sendo, nessa tarde, mortos a rojão, pelos cavaleiros quatro toiros. Houve dois «espadas» espanhóis, quatro bandarilheiros portugueses, dez forcados e quatro intervaleiros pretos. Nas quadrilhas dos «espadas» vinha um toireiro português que tinha sido aluno da Casa Pia. Pela arena da referida praça passaram grandes sumidades do toireio, sendo durante muitos anos mantida a praxe de se largar um toiro para os homens da música, e, mais tarde, para os curiosos, em substituição daqueles. Também, no final do espectáculo, se repetiam as cortesias.
Não é bem êste o assunto de que pretendo ocupar-me, mas sim o do Campo Pequeno, cuja praça foi erguida após a demolição da velhinha do Campo de Santana, que se deu em 1889.
A praça do Campo de Sant'Anna em 1882.
Durante três anos, não houve espectáculos taurinos na capital, o que originou grande movimento na terras dos arredores que possuíam praças de toiros, como: Sintra, Moita do Ribatejo, Aldegalega, Setúbal, Barreiro, Almada, Vila Franca e Cruz Quebrada.
A ardente afeição à festa brava, de José Joaquim Peixinho, Joaquim Pedro Monteiro, Ressano Garcia, Pinto da Silva, Anastácio Gomes, Garcia Puga e do arquitecto Dias da Silva, proporcionou o levantamento do moderno tauródromo lisboeta no local onde, em 1740, existira uma praça destinada a divertimentos taurinos, e em que tiveram lugar sumptuosas corridas em obséquio de casas religiosas.
Foi em 1892 que se procedeu à inauguração da actual praça do Campo Pequeno, formosa e elegante, com o exterior em tejolo rosado, de linhas árabes, e o seu interior algo semelhante ao da sua congénere da Carretera de Aragon, de Madrid, apeada há alguns anos.
Do alto dos seus torreões se mira um panorama surpreendente, e em redor está reflorindo o vasto e bem talhado jardim Marquês de Marialva.
Na segunda toirada, a emprêsa apresentou o «espada» Valentim Martin; na terceira, Luiz Mazzantini; na quarta, «Cara-Ancha»; na quinta e na sexta (em dias seguidos), «Guerrita»; na sétima, «Espartero»; na oitava, Angel Pastor; na nona, «Torerito»; na décima, Antonio Reverte, com os célebres bandarilheiros Rodas e Moyano. Em 9 de Novembro, do dito ano de 1892, toirearam, a cavalo, D. António São Martinho, ainda vivo, felizmente, e o Visconde da Várzea; em 20 seguinte, José Palha Blanco enviou dez soberbos toiros para os cavaleiros Fernanddo de Oliveira e Manuel Casimiro, e para o matador Luiz Mazzantini; e, em 18 de Dezembro, às duas horas da tarde, começou a última corrida da época inaugural, em que foram lidados toiros de Emílio Infante (pai), por A. Tinoco e M. Casimiro e por Rafael Molina «Lagartijo», que fôra um colosso da tauromaquia.
No ano de 1893 realizaram-se no Campo Pequeno, trinta e seis toiradas, tendo sido corridos cêrca de quatrocentos e trinta toiros, e, até à data, vários empresários têm ali empregado a sua actividade, tais como: Dias, Monteiro, Gama, Lacerda, A.L. Lopes, Mário Infante, Albino J. Baptista, Batalha, Costa «Girafa», Carvalho, António Infante, Artur Teles, Carlos Iglésias Viana, José Segurado, D. Bernardo Mesquitela e a actual emprêsa que tem por gerente o antigo toireiro Muñoz Crespo.
Grandes corridas, e de inesquecível sumptuosidade, ali têm sido admiradas, e, entre elas, destacam-se: a da comemoração do Centenário do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia; as de homenagem aos reis Eduardo VII, de Inglaterra, e D. Afonso XIII, de Espanha; a do benefício da Assistência Nacional aos Tuberculosos e tôdas em que intervinha o Clube Tauromáquico Português. Também se distinguiram, pela sua caprichosa organização, as das festas artísticas de Peixinho, Fernando de Oliveira, Manuel Casimiro, Cadete, Tôrres Branco, Manuel dos Santos, Teodoro, José Bento (de Araújo), Tomaz da Rocha, Morgado Covas, Alfredo dos Santos, etc.
Memorável foi também a actuação, no redondel da capital, dos afamados «diestros»: Faíco, Emílio e Ricardo Bombita, Fuentes, Quinito, Rafael El Gallo, o célebre Joselito, Limeño, Juan Belmonte, o relembrado, genial e popularíssimo Rodolfo Gaona, Isidro Flores, Sanchez Mejias, Armillita e outros de assinalada categoria artística, quer no que respeita a matadores e novilheiros, quer a cavaleiros e bandarilheiros, profissionais ou amadores.
Quanto a criadores que se destacaram no fornecimento de gado bravo, anotamos: Dr. Máximo Falcão, Palha Blanco, Duarte, do Cartaxo, Gama, Casa Bragança, Paulino, Estêvão de Oliveira, Patrício, Robertos, Infante da Câmara, João Coimbra, António Luiz Lopes (pai), Pinto Barreiros, Esquivel, etc.
Nos primeiros anos, o gado entrava a
pé, e por muito tempo se utilizaram os bandos que nas vésperas das corridas
percorriam as ruas da Baixa e as dos bairros populares, em luzido e animado
cortejo anunciador.
Sempre que procedo a alguma visita ao excelente edifício, ao seu museu tauromáquico, aos currais, agora dotados de um maquinismo para descarga de jaulas, e à trincheira, que foi modificada totalmente para melhor ser adaptada à lide dos toiros em pontas, detenho-me ante o local da «inteligência», e logo uma figura surge no meu pensamento, que, por sua vez, recorda uma boa parte do tempo áureo do tauródromo do Campo Pequeno, cujo bosquejo histórico fica traçado nestas colunas. É a de Manuel Botas que recordo, o antigo toireiro, alto e de suíças brancas, boa pessoa, que dirigia as corridas, com o seu chapéu alto e sobrecasaca, a dar ao espectáculo o carácter sério que sempre deve ter.
Muitos nomes e uma infinidade de factos poderia aqui incluir. Mas quantas páginas seriam necessárias? As notas que reproduzo são as suficientes para se fazer uma idéia do que tem representado, para a distracção pública, a majestosa praça que se ergue no Largo do Dr. Afonso Pena, de Lisboa.
Em 1933 foram permitidos toiros de morte actuando Marcial, Villalta, Fermin Arillita, Ortega, Manuel Bienvenida e outros.
Para o final deixo a referência à Emprêsa Tauromáquica Lisbonense, que termina as suas funções em 1982, ano em que entregará a propriedade à velha e importante instituição de assistência que recolhe e educa crianças orfâs, a Casa Pia de Lisboa.
A dita emprêsa muito tem valorizado a praça, introduzindo-lhe melhoramentos consideráveis, tudo o produto duma dedicação bem merecida pelo espectáculo de ar livre em que com mais beleza se exalta aquela valentia que é tôda revestida de emoção estética, tanto da simpatia da multidão que com ela vibra, intensamente, de entusiasmo.
In FADO, MULHERES E TOIROS, Pepe Luis, Livraria Popular de Francisco Franco, Lisboa - 1945