AS TOIRADAS NO SÉCULO XVIII


 


"FADOS, MULHERES E TOIROS"
Pepe Luiz, Lisboa - 1945

AS TOIRADAS NO SÉCULO XVIII

Sendo o reinado de D. João V caracterizado pelo fausto e magnificência da côrte, os festejos e os divertimentos, em que intervinha a assistência real, não podiam também deixar de ser assinalados pelo luxo e grandeza.

Estava indicado que seriam as toiradas os principais números do programa, já pelo que elas tinham de tradicional, já pelo que possuíam de emotivo, de belo e atraente.

Nas toiradas residiram sempre as preferências  e as paixões dos portugueses. Era nelas que os mais astutos, os mais valorosamente decididos desciam à liça, mostrando à sua dama que o amor estava tão radicado no seu coração, como a arte de lidar toiros lhe subjugava a alma de ardentes aficionados.

Como nas épocas anteriores, toireava-se para triunfar das feras e do amor…

Uma diferença sòmente se registava no comêço do século XVIII: a faustosidade nas corridas de toiros reais, que não era inferior àquela que Filipe I de Portugal e Filipe II de Espanha fêz marcar nas festividades que organizou por ocasião do seu reinado.

Já no meu livro Ao Estribo, fiz referência ao aparato de que as toiradas começaram a revestir-se no domínio dos Filipes.

Em tardes de corridas expunha-se um deslumbrante cerimonial e dos palanques e das janelas dos palácios, junto dos quais tinha lugar a função taurina, pendiam ricas tapeçarias recamadas de oiro. A madeira com que construíam os palanques era doirada, não faltando as sanefas e cortinas de valiosíssimos panos de sêda e de brocado de Flandres.

Na época de D. João V, o Magnânimo, até pouco além do meado do século XVIII, acentuaram-se as galas de forma que as corridas de toiros continuaram a ser reputadas de grandes acontecimentos.

O cavaleiro constituía o fulcro de tôdas as atenções.

Os cavaleiros tauromáquicos foram e são os ilustres varões que evocam um passado glorioso e hoje se impõem como os mais lídimos representantes daqueles ousados que deram o cunho de beleza e valentia aos torneios e lutas, por meio dos quais se mediam a coragem e a destreza.

O cavaleiro, seja amador ou artista, reproduz, no seu clássico labor, o requinte de elegância, o valor ingénito duma raça que sempre se afirmou ante os mais perigosos adversários e os maus duros obstáculos.

Os portugueses foram sempre assim. Quando as naus seguiam uma rota de mistério, a tripulação cantava o fado, tangendo as suas banzas; e, na volta das conquistas em África e na Índia, vinham defrontar-se com os toiros.

Também a nota de garbo e de arrôjo, assumida pelo cavaleiro, concorreu sempre poderosamente para o conjunto de beleza que tanto realce fornece a uma corrida de toiros, cuja feição primitiva nunca se afastou da lide eqüestre.

A arte de lidar, a pé, reses bravas assenta sôbre bases ensaiadas e desenvolvidas pelo toireio a cavalo.

Tanto a lide pedestre como a eqüestre irmanam-se actualmente, num tal grau de perfeição, que leva a acreditar os portugueses de consumados toireiros a cavalo e os espanhóis sublimes no trabalho da infantaria.

Há escolas de toireio, e magníficos estilos nelas inspirados. Tanto o toireio a pé como a cavalo dispõem dos seus princípios, leis, processos que nada têm que ver com a nacionalidade do toireador, mas especialmente com a perfeição com que é executado. Até agora, no autêntico toireio a cavalo, ainda não houve quem ultrapassasse os lusitanos.

Pode ser que no futuro venha a luzir algum astro novo. Pode ser. Por enquanto não dei por tal supremacia.

O impulso dado em Portugal às corridas de toiros, na primeira metade do século XVIII, provocou o aparecimento de sublimes figuras, como D. Jaime de Melo, o terceiro Duque de Cadaval, que legou aos seus descendentes ricas pearas de gado, cuja bravura e corpulência não são desconhecidas dos portugueses.

O referido duque rojoneava com perfeição e, no toireio a pé, mostrava valentia e conhecimentos tais, que executava com o estoque a sorte já nesse tempo conhecida por estocada de mete e saca, que hoje em Espanha não se pratica com freqüencia.

O Marquês de Marialva, que foi um exímio picador, fêz ligar, desde essa época, o seu nome à tauromaquia e de tal sorte que toireio eqüestre é ainda hoje denominado a Arte de Marialva.

Ora, o Marquês de Marialva foi um grande mestre de equitação; ditou leis e fêz operar grandes modificações em tudo que à cavalaria dizia respeito.

Até na indumentária dos equites êle introduziu aperfeiçoamentos.

Como não podia deixar de ser, na arte de toirear a cavalo também se registou um progresso que dia a dia vem mostrando novos e iluminados processos que jamais deixaram de primar, em todos os seus pormenores, por uma inexcedível galhardia e vistosidade.

Há um facto que merece referência especial: nesse tempo áureo, nenhum toiro vinha à peleja, que não tivesse seis anos de idade e que não trouxesse a cornamenta desimpedida de qualquer atavio. As hastes eram limpas e aguçadas, e a lide tinha a finalidade lógica a morte do toiro.

Hoje, em Portugal, ainda se anda a discutir se de novo o toiro deve ir à praça en puntas e se se há-de matar ou não.

Tudo isto é um reflexo da época.

Actualmente é raro sair do toril um bicho com idade superior a três anos. É que hoje atravessam as bancadas da praça uns indivíduos a apregoarem: Água fresca ou capilé, cá estão sandwichs ou bolinhos de amor!...

Não pense o leitor que em Espanha se passam casos de moldes diversos. Não, senhor.

É freqüente verem-se uns vendedores vestidos de branco, com certos ares amaneirados, feminis, a incomodarem os ouvidos dos espectadores: — Paquetes de almendra tostá y pelá!

Já lá vai o tempo do botijos de cassaya!...

Mas o toireio a cavalo tem muito que se lhe diga pela capital importância oferecida nos mais pequenos detalhes.

À alta concepção que sempre revelou, impõe-se, aos que praticam tão sublime arte, juntar o absoluto respeito pela tradição e uma vigorosa personalidade própria dos portugueses de rija têmpera que sempre exerceram predomínio no toireio eqüestre.

In GADO, MULHERES E TOIROS, Pepe Luis, Livraria Popular de Francisco Franco, Lisboa - 1945