Manuel dos Santos
O toireiro-poeta da velha guarda
A narrativa de casos pitorescos e a piada a tempo, são a sua especialidade. E agora o leitor pode fazer uma idéia do que se passa em determinado quarto andar da rua Álvaro Coutinho, no dia do aniversário de Manuel dos Santos, na ocasião em que a sua numerosa e simpática família ali o vai abraçar pelo facto de êle ter alcançado mais uma primavera… êle nunca deixou de possuir uma alma jovem!
Até o seu papagaio entra nas manifestações festivas:
— Adeus ó Manel! Eh! Eh! Eh!.... ó Manel toca p’ra unha! Tatarari… tatarari!...
Assim palra o animalzinho.
Manuel dos Santos tem atrás de si uma vasta história de activo trabalhador.
Aos sete anos entrava em pantominas no velhíssimo Circo Price; brincava com a sua vizinha, hoje a gloriosa actriz Adelina Abranches; e aos dez começou a aprendizagem numa oficina metalúrgica. Aos domingos tomava parte, como andarilho, nas corridas da praça de toiros do Campo de Santana.
Às noites começou a representar nos teatros, desempenhando, com agrado, alguns papéis nas revistas de grande fama: «Micróbio», «Pontos nos ii», «Seis meses na Parvónia», etc.
Ao atingir 16 anos, assentou praça na Marinha de Guerra; viajou muito e adquiriu grandes simpatias, pelo seu feitio divertido, e a tal ponto que entre a guarnição era conhecido pelo «Vida alegre».
Sempre cumpridor do seu dever, e após bastantes anos de Armada, Manuel transitou para a vida civil, dedicando-se ao toireio, e em breve conquistou enorme popularidade pela sua valentia, temperada por uma vigorosa intuïção artística, intuïção que o levava a executar variadíssimas sortes que êle observara a grandes «diestros».
Em 1905, o célebre matador Antonio Fuentes convidou-o a sair na sua quadrilha numa das corridas da feira de Sevilha. Toireavam também Quinito e Bombita. Manuel bandarilhou com tanto êxito um toiro de Ibarra, que Fuentes enviou-lhe a cabeça embalsamada do bravo animal, com esta honrosa decicatória gravada numa placa de prata: «Al valiente banderillero lusitano Manuel de los Santos le ofrece este recuerdo de su début en Sevilla, su gran amigo Antonio Fuentes».
Pois êste objecto, que significa um acto de extrema gentileza do inesquecível Fuentes, decora ainda uma das paredes principais da sala de jantar da residência de Manuel dos Santos.
Tôda a família Santos é aficionada, em especial os filhos, Vítor, que foi amqador tauromáquico e não fêz má figura, e José, que numa boa parte do ano vive sôbre as águas do mar.
Uma das facêtas interessantes do espírito de Manuel dos Santos está espelhada no feitio lírico com que, por vezes, se expressa, como se tivesse bebido a água cristalina da fonte de Hipocrene.
Escreveu para o teatro e ainda hoje nunca foge às rimas, como verifiquei, quando respondeu às perguntas que lhe enderecei durante a visita que lhe fiz numa tarde recente.
Nas dependências da sua residência, vêem-se recordações por todos os lados: fotografias, quadros, uma vitrine com brindes oferecidos nas suas festas artísticas. Em determinada altura do diálogo, rompeu esta quadra:
«Ali, no quarto onde moro,
Modestamente emoldurados,
Estão por mim colocados
Os santos que mais adoro».
Já se deixa ver que de tôda aquela
densa espiritualidade que palpita através das inúmeras recordações espalhadas
pelas paredes, compartilha a figura simpática e altiva dum devotadíssimo amigo:
Fernando de Oliveira!
Como velho toireiro — porque foi um profissional com paixão — nunca esquece o pundonor que deve honrar o que veste o trajo de bordados e taleguilla, e a propósito interroguei:
— O que diz das corridas em que há toiros sem toireiros?
— «Sinto minh’alma
cair
No fundo do meu passado,
Se vejo um toiro investir
E ser mal aproveitado.»
E acêrca da vida do toireiro, disse estas redondilhas:
«Não há
nenhum que se gabe,
De não cair
quando corre,
Nem
adivinha, nem sabe,
Se quando
toireia morre.»
«No
decorrer da toirada,
A quem
sabe, custa ouvir,
Ao que é
bom, assobiar,
E quanto ao mau, aplaudir.»
Como não lhe passasse desapercebido o nosso reparo duma cicatriz que possue numa das faces, lofo elucidou:
«A cicatriz
do toireiro
Nem sempre
é sinal de falha,
Quem se
arrima é verdadeiro,
Traz sôbre
a pele a medalha.»
«A vergonha
nuca dói
O efeito da
marrada,
Ao que
quere ser um herói
Dói-lhe mais a pateada.»
A conversa, derivando para a comparação entre a bola e os toiros, provocou as seguintes considerações rimadas:
«Mais
ligeiros que audazes,
Jogam vinte
e dois rapazes,
Mas nenhum
encontra a morte.
Nos toiros
damos aos «butes»,
Duas bolas,
quatro «chutes»,
Em
verdadeiro recorte.»
«Na luta
greco-romana,
Os truques
são combinados,
De tal modo
disfarçados,
Iludem dar
forma e gana,
No
foot-ball há pavana,
E bairrismo
apaixonante,
A gritaria
é sonante.
Nos toiros
há bulha aguda,
Não brilha
a toirada muda
Dentro dum toiro excitante.»
Como todos sabem, Manuel dos Santos foi o peão de brega de grande confiança e dedicado amigo dêsses espírito de eleição que se chamou Fernando de Oliveira, o único toireiro que até à data perdeu a vida no redondel do Campo Pequeno. Para êle Manuel teve esta quadra quando se comemorou o infausto acontecimento:
«De modos
nobres, serenos,
Faz trinta
anos que morreu.
Quem morre
assim, deixa pena,
Quem assim morre, viveu.»
O grande cavaleiro Fernando de Oliveira, quando faleceu, estava disfrutando duma aura imensa, justificada pela galhardia do seu toireio, e, por isso, foi cantado pela lira popular em glosas sentimentais a que o fado deu singular expressão.
Falando-se do
fado, o velho bandarilheiro soltou mais êste indicativo da sua inspiração
poética:
«Creiam que
me capacito
Que o fado
tem movimento,
Com salada
e peixe frito,
Lá nas
hortas a contento.
Não foi uma
desgraçada,
Teve um
amor verdadeiro,
A Severa
foi amada
Por um
fidalgo toireiro.
Maria de
Lourdes tem
Carinhos de
enfermeira,
Sendo
assim, ela contém
Bom fundo p’ra
cantandeira.
A guitarra
é batuta,
Num
compasso harmonioso
Comigo
ninguém discuta,
Ganha a
palma o rigoroso.
Amália
Rodrigues é
A estrêla
do lindo fado,
Cheia de
carinho e fé,
Faz
recordar o passado.
É Maria
Raquel
Autêntica
portuguesa,
Anima o
redondel,
É do fado a princesa.»
Em determinada corrida de toiros dirigida por Manuel dos Santos, de vez em quando ouvia-se a voz dum espectador:
— Ó Manuel, toca!... Ó Manuel, toca!... toca!...
E Manuel abanava a cabeça num gesto negativo.
— Não toca, porquê? — perguntou, furioso, o espectador.
— Porque não sei!
E na conversa que tive com Manuel, revelou também o seguinte comentário:
«Toca p’ra dentro, ó Manel,
A unha, toca p’rá unha!
Mandar tocar quem não sabe,
É coisa que não propunha.»
Manuel foi quatro vezes ao Brasil e disso jamais se esqueceu:
«Com Zé Bento (de Araújo) arrojado,
No Brasil andei lutando,
Com Macedo e Morgado,
E também com o Fernando.»
O que aqui fica nestas páginas não é mais do que o extracto duma tarde de paleio com Manuel dos Santos, cuja biografia está traçada em quatro sonetos da sua autoria e que êle guarda ternamente, como peça testamentária que os vindoiros hão-de apreciar.
Da sua casa saí, satisfeitíssimo. O bocado ali passado foi dos melhores.
O que não há maneira de olividar é o papagaio que repete os toques da corrida seja ela à portuguesa ou à espanhola.
Dá vivas ao Benfica para arreliar o Vítor Santos — filho de Manuel — que é sportinguista, e quando o dono da casa atravessa o corredor, de bengalinha, chapéu ao lado, fumando um charuto da «Companhia», lá se ouve o loiro de penas cinzentas:
— Adeus ó Manel, até logo!...
Pode o velho toireiro gabar-se de que possue um papagaio «inteligente»!...
In FADO, MULHERES E TOIROS, Pepe Luis, Livraria Popular de Francisco Franco, Lisboa - 1945