Biblioteca nacional de Portugal
Por ahi...
Hontem, no
Rocio, o homem dos cartazes tinha acabado de pregar um.
Um cartaz,
está entendido.
Quando o
homem dava a ultima pincelada, parou uma pessoa para lêr o cartaz.
Depois parou
outra.
Depois parou
mais outra, e assim foram parando todas as pessoas que passavam. E o mais
extraordinario é que não paravam só as que passavam ao pé do cartaz : as que
transitavam a distancia acercavam-se tambem logo, a passo estimulado, apenas
bispavam lá de longe uma grande cabeça de toiro, impressa ao centro do papel e
em dimensões sufficientes para não passar desappercebida mesmo á vista
desarmada.
Depois, as
mesmas pessoas começaram a retirar a uma a uma, pela mesma ordem chronologica
porque tinham chegado, ao passo que vinham vindo outras a tomar-lhes o logar,
attrahidas lá de longe pela tal cabeça de toiro em que já tivemos a honra de
fallar, e que era assim, mal comparado, como o santelmo misericordioso da esperança,
que vem incutir animo no espirito desorientado dos nautas semi-perdidos.
Para o caso
presente, os nautas semi-perdidos são os afficionados da Praça do Campo de
Sant'Anna.
O mais
curioso, porém, era que todos os que liam o cartaz se affastavam desanimados,
abanando tristemente a cabeça, ao passo que os que se acercavam para lêr,
traziam nos labios um sorriso de contentamente intimo e no olhar a centelha
rutilante de fogo que illumina as almas esperançadas.
Acercámo-nos
tambem, lançámos um olhar sobre os caracteres de variadas côres, e tudo de
prompto comprehendemos !
O cartaz
annunciava uma toirada qualquer ahi para fóra de Lisboa e o que todos
imaginavam, ao vêr de longe a tal cabeça de toiro enganadora, era que se
tratava d'uma toirada na praça do Campo de Sant'Anna.
Á noite, o
café Marrare, que é o grande oriente dos amadores tauromachicos, tinha o
aspecto grave da ante-camara d'um enfermo illustre em seguida ao desideratum da junta medica haver
lavrado a fatal sentança anniquilando as derradeiras esperanças !
— Está tudo
acabado ! murmurava-se baixinho, n'aquelle tom de receio que precede as grandes
esplosões de dôr ; está tudo acabado na praça do Campo de Sant'Anna ! Não mais
toiros de Emilio Infante ! Não mais sortes de gaiola dos Robertos ! Não mais
saltos de garrocha do José Peixe ! Não mais navarras do Sancho ! Não mais ferros curtos do José Bento (de
Araújo) ! Não mais berratas do Seis Dedos ! Não mais descomposturas no intelligente
Botas !
— Oh ! Botas
da minh'alma ! oh ! Botas do meu coração ! oh ! Botas das minhas entranhas !
E cahiam
todos na tal explosão de dôr, chorando nos braços uns dos outros, regando-se mutuamente as golas dos casacos de lagrimas ardentes, que sulcavam — pela primeira vez — aquellas faces bronzeadas pelo sol de mil combates... tauromachicos !
E é que a
attenção publica está decididamente virada para este caso das toiradas.
Nem as
sessões do parlamento, nem o movimento agricola do paiz, nem o augmento do
preço da carne nos talhos municipaes, nem a segurança dos theatros, (NOTA : Este artigo foi publicado poucos
dias depois do incêndio do Teatro Baquet no Porto, que na madrugada de 20 para
21 de Março de 1888 fez dezenas de vítimas e deixou a cidade de luto) nem a
questão bancaria, nem o Coquelin, (NOTA DA MESMA EDIÇÃO DO JORNAL: «Está a chegar a Lisboa
o celebre actor Coquelin, uma das glorias mais brilhantes do theatro frances e
que o nosso publico teve já occasião de apreciar e festejar como elle tão
justamente merece. D'esta vez Coquelin demora-se entre nós um curto espaço de
tempo, dando apenas tres recitas, mas isso será o bastante para que possamos
patentear-lhe a grande admiração que temos pelo seu talento e a grande sympathia
que nos merece o seu caracter, de cuja largueza Coquelin dá uma prova, anuindo
como anuiu da melhor boa vontade a ir de proposito ao Porto tomar parte no
espectaculo que alli se realisa em beneficio do tão intelligente como
desventurado artista Cyriaco de Cardoso.» NOTA : Domingos Cyriaco de Cardoso - 8 de Agosto de 1846-16 de Novembro de
1900. A história do «insigne artista
tripeiro, um dos maiores artistas na nossa raça» pode ser consultada aqui: https://bibliotecacasadoinfante.cm-porto.pt/sh_tripeiro/online/trip/t21031.pdf
) nem o governo, nem a politica, nem o lausperenne, nem o Oliveira Mattos lhe
importam agora absolutamente para nada !!!


O Teatro Baquet ficava na rua de Santo António, hoje denominada rua 31 de Janeiro.
FOTO : Internet
No que ella
pensa é em toiradas, com o que ella se preoccupa é com toiradas, o que ella
quer é as toiradas. Déem-lhe toiradas e uma cabana — ou a morte !
Interroguem
os velhos, perguntem ás mulheres, inquiram (mas sem levantar inquerito, pelo amor de Deus...)
inquiram das creanças, syndiquem (mas sem formarem syndicato, pelas cinco chagas do Nosso Senhor Jesus Christo...) syndiquem
dos interditos, e verão como todos lhes respondem a uma só voz, como uma grande
massa coral rigorosamente ensaiada pelo maestro (NOTA : maestro de coros) António Duarte — que tambem é
distincto amador tauromachico :
— Queremos
toiradas ! venham toiradas ! salta toiradas !
O caso é de
tão grave importancia que chega até a affirmar-se ter sido por causa das
toiradas que sahiu do governo civil o nobre marquez de Pomares, o mais illustrado,
o maior esmoler e o mais respeitavel de todos os governadores civis — não desfazendo
em quem está presente, como é uso dizer entre pessoas finas.
E nós
acreditamos que assim fosse, em parte, sendo effectivamente essa demissão
produzida pelo natural embaraço em que s. ex.ª se encontrou tendo a revogar uma
ordem que anteriormente dera.
E essa
resolução formal não significa por modo algum a insistencia caturra d'um
espirito vaidoso que não quer dar o seu bracinho a torcer, senão antesm a
presistencia (persistencia) sensata de quem, tomando uma resolução firmada no
voto officialmente reconhecido como competente, entende não dever revogar tal
resolução para não desconsiderar esse mesmo voto.
Os peritos
tinham dado a sua opinião ; o sr. marquez resolveu conforme a opinião dos
peritos. Os protestos da opinião publica vieram contrariar a opinião dos
peritos e o sr. marquez, reconhecendo talvez razão á opinião publica, mas não
querendo desfeitar a opinião dos peritos, isto é, collocado entre o Scylla do
seu bom sendo de homem illustrado e o Carybdes da sua lealdade de fidalgo
brioso, optou pela unica das soluções dignas : demittir-se, para não
descontentar nem a opinião do publico nem a opinião dos peritos.
Este acto,
como outros do sr. marquez, assumindo pessoalmente a inteira responsabilidade
de quanto praticam os seus subordinados, define bem a lealdade do seu caracter
e está perfeitamente d'accordo com as tradicções da velha aristocracia, lembrando
a isenção briosa dos velhos fidalgos, que acolhiam e deffendiam quantos lhes
transpunham as muralhas do solar pedindo coito, sem que buscassem sequer
indagar-lhes a proveniencia.
A resolução
do sr. marquez de Pomares faz-nos gastar dois bilhetes de visita : um para s.
ex.ª dando-lhe os parabens, outro para o districto de Lisboa dando-lhe os
pesames.
Tarantula.
In OS
PONTOS NOS II, Lisboa - 3 de Maio de 1888
In OS
PONTOS NOS II, Lisboa - 3 de Maio de 1888