Hemeroteca Digital de Lisboa
Escrever sôbre toiros não é fácil: Demanda
saber. Demanda conhecer não só os bichos, como os homens que os lidam. É
necessário também saber para que público se escreve. Entre nós, poucos são os
que se têm dedicado a essa espécie de literatura. Entre êles, surgiu há anos um
nome que depressa se impôs: D. Bernardo da Costa (Mesquitela). Os seus
primeiros artigos impuseram-no como crítico. Logo a seguir, encetou uma
campanha a favor dos toiros de morte. As entidades oficiais não o ouviram. Bradou
no deserto. No entanto, o volume em que coligiu as crónicas em prol do seu
pensamento, vendeu-se ràpidamente. Em Portugal — principalmente por êsse
Ribatejo — ainda há quem goste de toiros. Actualmente D. Bernardo da Costa
(Mesquitela) perde-se em jornais semanais. Os seus escritos são pouco lidos.
Mas... acaba de sair outra obra : Festa
Brava. Traz o seu nome. É uma colectânea de alguns artigos já publicados, e
contém nova matéria. Dessa, respigamos algumas páginas. Têm interêsse, não só
para os aficionados, como para os que são leigos no assunto. Há nelas calor,
energia, mocidade e desassombro. São páginas para juntar nais tarde à História
das Touradas de Eduardo de Noronha, obra que deve estar na estante de todos os
que amam as coisas tauromáquicas. Eis o que transcrevemos do novo livro de D.
Bernardo da Costa (Mesquitela) que merece ser lido com atenção :

I — CRISE
Há cem anos
que a Tauromaquia está em crise em Portugal.
Desde que se
acabou com o toiro lidado em hastes limpas e morto na arena, e a lide passou a
ser a intrujice do toiro embolado, a luta entre os dois elementos, o homem e a
fera, perdendo o seu alto significado, o seu simbolismo, perdeu interêsse,
perdeu beleza e cêdo se transformou nesta palhaçada ignóbil que á a «tourada à
portuguesa», em que os toureiros são uma espécie de funcionários públicos que
só assinam o ponto e os toiros umas pobres criaturas alugadas para fazer o
ridículo, perante o gáudio avinhado de uma multidão ignorante e imbecil.
O rejoneio
másculo dos nossos avós, arte essencialmente fidalga e varonil — deu lugar ao
toureio a cavalo das inúmeras filigranas e, sejamos francos, das inúmeras
mentiras. Como o ginete já podia ser tocado porque o toiro, sem pontas, não lhe
furava as carnes e o público difìcilmente se apercebia do êrro na medição das
sortes, os cavaleiros, uns por carência de predicados próprios, outros por não
cuidarem da condição básica do seu mister — a defesa rigorosa das montadas —
levaram a primitiva e arriscada arte às últimas conseqüências.
Porque mesmo
assim, mesmo com bigodes e ademanes pouco aristocráticos, êles continuavam
sendo os mantenedores da única coisa verdadeiramente tradicional — o toureio a
cavalo — os toureiros de pé, não acompanhando a evolução que se operava em
Espanha, limitaram-se a ser os auxiliadores daqueles, os «capinhas», que agora
pomposamente se chamam «bandarilheiros» e que nós com com mais propriedade
deviamos chamar «bandarilhadores», já que não fazem mais que espetar
bandarilhas de qualquer forma, e, em geral, da forma pior.
E como
suprimindo a morte do toiro — finalidade lógica do espctáculo — havia
necessidade de inventar um outro desfecho forte e emotivo, recorreu-se à «pega»
— encontro brutal do toiro com oito homens, que o dominam, não pela arte, bem
rudimentar, mas porque no seu conjunto pesam quási o dôbro e porque o animal
chega ao fim desta lide disparatada com tamanha dose de aborrecimento, que tudo
consente, tudo suporta, contanto que o não o espicassem mais e que o mandem
embora. A «pega» não é uma finalidade bárbara, mas é uma finalidade bruta. E
foi êste desfecho bestial, que não representa a inteligência do homem dominando
o instinto da fera, mas sim o embate da fôrça contra a fôrça, matéria contra
matéria, que se elevou à categoria de tradição nacional e que muitos «aficionados»
supõem ser uma invenção portuguesa, ignorando, como em geral ignoram tudo, que
já os moiros das Espanhas pegavam toiros — e desembolados — e que outrora na
Grécia, cinco séculos antes de Cristo, toiros enormes e possantes e da mesma
forma em hastes nuas — conforme atestam os desenhos duns barros encontrados na
ilha de Creta — eram valentemente pegados... por mulheres !
Arranjou-se
desta forma a toirada ; e desde então, Portugal — na frase vingadora de Carlos
Viana — passou a ser um país de embolados.
Esta
toirada, porém, com tudo que encerra de grotesco, de falso e vergonhoso, tem
sido sacudida de tempos a tempos por algumas que outras figuras de
incontestável relêvo, as quais, mesmo com embolados, foram grandes e justo é
que fiquem célebres. Há meia dúzia de cavaleiros que passam à história, bem
como algumas dezenas de forcados, sobretudo amadores, que souberam corresponder
com brilhantismo e denôdo ao pouco, ao muito pouco que se exigia dêles.
Mas com
embolados, com toiros que não matam nem ferem, o valor dêstes homens corajosos fica
evidentemente diminuido. É triste dizê-lo, mas é assim.
Poderemos
nós comparar, já não digo na arte, mas no valor, o cavaleiro Tinoco, por
exemplo, a «Frascuelo»?... Será lícito colocar no mesmo plano de vítimas do
toureio, Fernando de Oliveira, que morreu numa praça, é certo, mas de desastre,
e Manuel Garcia «Espartero», que um excesso de pundonor fêz perder a vida nas
hastes aguçadas daquele toiro colorado de Miura?... Será razoável que a arte, a
sublime arte do toureio, vista o mesmo luto pelo forcado X, que faleceu no
hospital em conseqüencia de bordoadas misturadas com álcool, e por José Gomes
«Gallito» — o sempre chorado «Joselito», que o maldito toiro «Bailador»
assassinou na tarde trágica de Talavera?...
II — O MALDITO TOIRO EMBOLADO
O duelo entre
o homem e o toiro tem de ser um duelo de morte, —ou então não tem razão de ser.
Entre o espectáculo de toiros e o teatro ou o animatógrafo tem que haver,
necessàriamente, uma diferença. E é essa diferença que os portugueses vão tanta
vez procurar a Espanha, já que nem ao menos numa única terra portuguesa a
deixam ver.
A festa de
toiros, produto admirável do nosso génio peninsular, é — e aqui reside a sua
incomparável grandeza — uma tragédia autêntica, onde não há artifícios, nem
combinações. É bem a Festa Brava ! A
morte, ali, não é convencional, nem representada : quando se morre, morre-se de
verdade. Se é bárbaro, se é horrível, não o discutamos agora : morrer é sempre
bárbaro, é sempre horrível — mas até à data nem por isso a gente deixa de
morrer. Pelo contrário, às vezes é agradável a morte ; outras vezes, oportuna.
Muitos a procuram tôda a vida, como única solução libertadora... E depois, se
ninguém há de escapar à sua foice, é certamente mais brilhante, mais asseado e
mais cómodo morrer duma cornada do que dum cancro...
Mas deixemos
esta triste filosofia e frisemos sòmente a diferença que deve haver, para o
verdadeiro «aficionado», entre o que se faz com um toiro em hastes limpas e um
toiro privado das suas defesas naturais. Façamos a seguinte confissão, muito
embora ela possa chocar a sensibilidade de certas pessoas : há aí um cavaleiro —
chamemos-lhe João Núncio — que toureia maravilhosamente ; em Espanha existe
outro, Antonio Cañero, que toureia a seu estilo, num toureio muito diferente, —
pior, segundo todos afirmamos. Pois bem : cada qual no seu elemento, Núncio
fazendo coisas assombrosas com toiros embolados, Cañero rejoneando àsperamente
toiros em pontas, eu, que ponho João Núncio acima das nuvens, dou a Cañero
muito mais valor.
Porquê?
Porque a
festa de toiros é uma festa essencialmente brava e bela. Beleza e emoção, mas
beleza com emoção : duas coisas que têm de ir juntas. Ora com toiros embolados
não pode haver emoção, e, sem ela, não creio que haja beleza.
III — RESULTADOS
O toiro
embolado deu origem ao «toiro corrido» e desta forma o toureio a pé não
evolucionou, não progrediu e foi sempre, na nossa terra, a calamidade que nós
conhecemos. O toureio não pôde aperfeiçoar-se e ainda hoje o vemos nas nossas
arenas a praticar os mesmos erros e os mesmos vícios de há cem anos. Dir-se-ia
que só as caras mudam : se até os próprios fatos parecem eternamente os
mesmos!... E o toiro, que aqui dixou de se matar (embora nunca deixasse de ser
comido) e cujas hastes tapadas também já não matavam, fêz ver ao lavrador a
inutilidade da selecção, do apuramento e do gado puro.
O resultado
está-se vendo : em vez de toureiros temos toureadores, para não dizer boeiros, bornaleiros
ou espetadores de ferros ; em lugar de artistas, no sentido elevado da palavra,
restam-nos artífices, meros operários do toureio ; e em vez de toiros, aparecem
por aí uns bicharocos mais ou menos pretos, que dão saltos e às vezes marradas,
e com umas cabeças de tal forma monstruosas que muitos críticos, na única
definição em que acertam, chamam — cornúpetos.
IV — OS CRÍTICOS
O mal de
tudo isto não vem dos governos, nem dos toureiros, nem dos toiros, nem mesmo do
público, que vai sempre para onde o levam. O mal vem daqueles que escrevem para
o público e que levam o público atrás do que escrevem. O mal vem dos críticos.
A crise da
tauromaquia em Portugal provém, pois, essencialmente, de uma crise de críticos.
— O que tem
sido o crítico tauromáquico, na nossa terra, de há cem anos para cá?
Eu não quero
melindrar ninguém, tanto mais que muitos dêles dormem já o sono da
bem-aventurança, mas a verdade é esta : o crítico tauromáquico português era,
salvo raríssimas excepções, uma criatura que gostava muito de ir aos toiros e
que não percebia nada do assunto, mas que fingia perceber porque ao pé do seu
lugar, que o emrpesário lhe dava para o obrigar a não dizer mal, havia sempre,
uns cavalheiros que diziam coisas, muitas coisas, que êle no dia seguinte
aproveitava na sua resenha. Êsses cavalheiros também nada sabiam, mas ninguém
duvidava da sua ciência porque já eram de idade, iam todos os domingos ao Campo
Pequeno e alguns vinham mesmo do Campo de Santa Ana, onde, pelos vistos, se
toureava na perfeição...
Essa
criatura, graças a uns amigos políticos, conseguia entrar para a redacção dum
jornal, cujo director não lhe ligava nenhuma, nem a êle nem á secção. E o
homem, afrontando essa indiferença e convencido, apesar de tudo, da sua
importância, passava a dizer ao público o que via e sobretudo o que não via,
não pelo prazer de escrever nem pelo desejo de defender a festa en de a cantar,
mas pela magia do bilhetinho de graça e duns parcos vintens no fim do mês.
Creiam no
que lhes digo : as condições para se ser crítico de toiros em Portugal eram
estas :
1.º —
Conhecer pessoalmente alguns toureiros e empresários e tratá-los por tu ;
2.º — Não
saber nada de toiros ;
3.º — Não
saber escrever português.
A primeira
destas condições ainda hoje em certos casos se demonstra à vista. As outras
duas, — é consultar os jornais de há anos : aquilo espremido não deita nada, a
não ser uma porção, mais que razoável de êrros gramaticais.
A função do
crítico desconheciam-na êles e nada faziam para a conhecer. Se lhes disséssemos
que tinham por missão definir, explicar e
orientar eram capazes de cair das nuvens — êle, que julgavam mais que
suficiente dizer tôdas as semanas, em estilo de chapa, que a toirada, apesar da amenidade do clima, que tinha
levado ao elegante tauródromo da capital farta concorrência, não agradara,
mercê da matéria prima... e que o cavaleiro Fulano empregara vária ferragem
larga e curta, variando as sortes (como se o facto de variar as sortes
tivesse em tauromaquia alguma importância), que o bandarilheiro Beltrano metera um bom par à gaiola (como se fôsse
possível um par bom numa sorte que é uma refinadíssima traição), que o espada Sicrano tivera bons pares a câmbio (em
vez de quiebro, porque o câmbio, fóra dos bancos, só pode
fazer-se com capote ou muleta) e que nos toiros taie e tais fizera com a muleta
fainas cingidas e adornadas.
Esta
classificação de «cingidas e adornadas» era o meu divertimento das
segundas-feiras. E assim durante muito tempo, porque durante muitos anos a
chapa foi a mesma. A mesma, não digo bem : às vezes mudava, sofria uma pequena
alteração. Assim, se o toureiro tinha estado valente, mas sem o toiro lhe
permitir luzimento, o crítico dizia : — «uma faina cingida, mas não adornada».
E já tinha havido ocasiões em que, por um conjunto de circunstâncias
inexplicáveis, as faenas tinham sido «adornadas
sem serem cingidas»...
E
não havia mais nada, nem a descrição dessas faenas,
nem se elas tinham sido as mais ajustadas às condições dos toiros. Pois se
êles, coitados, nada sabiam !
Durante
muitos anos fêz-se assim a crítica em Portugal, e em todo êsse espaço de tempo
não apareceu ninguém que dissesse, com autoridade e sem mêdo :
—
«Meus senhores, a toirada é uma burla, é uma infâmia e é uma vergonha !
Acabemos com ela, sem dó nem piedade, e que cada um de nós no seu jornal não
fale dela senão a rir e para fazer rir, como se fala das coisas pretenciosas e
ridículas. Será a maneira dela cair, de pôdre, como das árvores vão caindo as
fôlhas que o frio secou.»
Os
críticos, pelo contrário, falavam a sério, e ela, a toirada, convenceu-se por
êles que era uma coisa séria. Foi o maior crime que cometeram, maior ainda que
a sua ignorância, — e dêle estamos colhendo ainda os doces frutos.
Da
toirada e de tudo quanto se faz com toiros embolados, em boa verdade só pode
dizer-se mal. Para se dizer bem — só de troça.
NOTA :
Texto : Bernardo da Costa
(Mesquitela)
Ilustrações : Roberto
Domingo
In ILUSTRAÇÃO,
Lisboa - 1 de Setembro de 1932