6 DE JUNHO DE 1909 - LISBOA : SONHO DE UMA TARDE DE TOURADA...

 
Biblioteca nacional de Portugal

UM SONHO

            ...

            A praça tinha uma enchente. Não admira, porque o espada era Fuentes. A corrida agradou por completo. José Bento (de Araújo) e José Casimiro, que representam o passado e o futuro, farpearam com galhardia. Da parte dos nossos bandarilheiros houve muito boa vontade, sendo superiores alguns pares cravados por Theodoro e Manuel dos Santos, notaveis dois sesgos de Cadete, correcto um cambio de rodillas de Alfredo dos Santos e deligente a brega do kalifa da Gollegã e de Ribeiro Thomé.

            E vamos a Fuentes, o grande acontecimento da tarde, o supremo triumphador que, se não saiu da arena aos hombros dos seus admiradores enthusiasmados, recebeu, comtudo, a maior ovação que ha memoria em praças portuguezas.

            A fórma como bandarilhou o 5.º, de Emilio Infante, preparando as sortes sem auxilio de capote, não tenho eu palavras com que a descreva como não tenho phrases bastantes expressivas para relatar as faenas monumentaes executadas com a muleta, que nas mãos do insigne diestro é simplesmente magica, excedendo tudo que possa imaginar-se.

            Os lenços agitam-se, os chapeus voam das bancadas para a arena. Enthusiasmo tuidoso ! N'um camarote, destacando-se-lhe na lapella a fita vermelha da Legião d'Honra, com que o governo da Republica Franceza galardoou o seu merito comprovado em tantos trabalhos litterarios, achava-se Eduardo Coelho. (NOTA : O jornalista Eduardo Coelho foi um dos fundadores do Diário de Notícias) Fuentes vira-o e offerecera-lhe o simulacro da morte.

            Ao terminar a lide, de envolta com applausos ao famoso diestro, alguem chama por Eduardo Coelho. Foi como se largassem fogo ao rastilho d'uma peça de fogo de artificio de pyrotechnico celebre. Um clamor enorme se levanta em todo o circo e Eduardo Coelho, cofiando nervosamente a barba, de cabeça descoberta e luzindo-lhe a calva magestosa de pensador, vê-se obrigado a descer á arena. O que então se passou é impossivel narral-o ! Foi elle quem transferiu para quinta-feira a sensacional batalha de flôres, afim de que o publico podesse assistir á corrida, e, portanto, era justa a manifestação que constituia uma verdadeira consagração ao merito do popular jornalista, cujo nome é pronunciado com acatamento nos centros mais cultos da Europa e da America.

            A lide foi crescendo de enthusiasmo que toca as raias do delirio. No ultimo touro, a pedido geral, Fuentes pega em bandarilhas e colloca dois pares a quiebro como só elle sabe fazer.

            N'isto a philarmonica de Pico de Regalados rompe com um solo, de caixa de rufo e eu acordo no melhor do meu sonho. Era sete horas da tarde.

            Succediam-se as bandas, com fardamentos mirabolantes, entoando alegres passa-calles... saloios. (NOTA : pasacalle é uma marcha popular ou um desfile de festa popular). Lembrei-me da festa do Torres Branco. Tantas philarmonicas, acompanhadas por tão grande numero de forasteiros.

            ...

            Levado pelas noticias fôra até á Avenida e sentei-me n'um banco, junto a uma senhora gorda, esperando vêr uma batalha cujo fragor devia lembrar a lucta homerica de Aljubarrota.

            A temperatura alta da tarde obrigara a minha visinha a cerrar os olhos, começando a resonar, com o seu assobio á mistura. Insensivelmente, as palpebras foram-me descahindo e, dentro em pouco, via em sonhos a soberba corrida que acima descrevo e que era justamente a que no domingo se realisaria, se não fosse a decantada batalha.

            Perdera-se uma corrida boa, ganhara-se em troca uma pessima batalha de flores, cortejo funebre em cujas cavalgatas sobresaiam os grupos de municipaes, dardejando olhos terriveis sobre as sopeiras alinhdas pelos trottoires da Avenida.

            Desfez-se o sonho. Esfreguei os olhos e fugi, espavorido.

            A minha visinha resonava ainda e eu fui para casa lastimar a reimosia de quem impediu uma corrida soberba para nos dar, o espectaculo desolador da insipidez alfacinha.

Zé Boieiro.


In REVISTA TAURINA, Lisboa - 6 de Junho de 1909