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Tauromachia
Tarde soberba de luz! O céo era uma immensa turqueza a perder-se no engaste do horizonte longinquo. A praça apresentava aspecto garrrido; sombra animadisssima, sol com muitos claros, quasi não se via sombra de gente no sol.
Lá no alto, no renque dos camarotes, espoucava a graça feminina, com toilettes claras; em um delles, o 17, a toureira Pepita que vae estrear breve, em trajes da sua terra, a seu lado duas patricias sympathicas faziam pender da balaustrada o classico manton (NOTA: mantón) de seda bordado. Nisto os olhos do poeta chronista sentiram-se offuscados, em uma mirada para o camarote 22. Toda a salerosa graça de Sevilha alli estava resumida! Senhoril, graciosa, entrou Carmen Ruiz, a evolar alegria de seu sorriso vivo; a multidão acclamou-a, o alarido alacre das almas em festa traduziu-se em applausos, quando viram a rainha da festa derramar sobee o peitoril a seda brilhante de seu manton de manilla (NOTA: mantón de Manila), com as cores hispanicas. O poeta sentiu vibrar as cordas do enthusiasmo:
Dá que eu veja, como esmola
Ou como excelsa offerenda,
O teu perfil de hespanhola
Sob a mantilha de renda!
Seu traje, lilaz claro, perdia-se sob o rendado da mantilha, que, em rendilhados finos acariciava-lhe os cabellos. Rubros claveles (NOTA: cravos) redolentes alcatifavam-lhe o collo, com a graça infinita que só ella possue, e tanta, que o poeta não resistiu:
Vive minh’alma confusa
Ao ver belleza tamanha,
No teu olhar de andaluza
Toda a volupia de Hespanha!
Bello porte aristocrata,
Maneira da raça antiga!
— Trouxeste o punhal de prata
Atravessado na liga?
Nisto sôa o clarim e o companheiro Justo Verdades toma o lapis para fazeer a resenha da corrida:
«A intelligencia desta vez encontrou pessoa com geito, o cavalheiro Victor Marqques, que se portou correctamente.
Entra a cuadrilla para as solemnes cortezias, com todas as regras do estylo.
Em seguida, o clarim toca o signal para o 1º touro, côr de lusco-fusco, mais claro do que escuro, que foi o melhor cornupeto da tarde. Com elle fez o cavalheiro Morgado de Cóvas uma estréa garrida e brilhante, cravando-lhe cinco ferros largos esplendidos, al quite e um curto magnifico, com intento.
Ganhou applausos em penca, muitas flôres e muitos charutos; uma bella ovação.
O 2º touro já é sarado, malandro como elle só, mas assim mesmo procurou dar conta do recado, recebendo de Maera um par al quarteo (NOTA: al cuarteo) superior e outro supimpa, pois o bravo hespanhol, sem deixar as bandarilhas, preparou a féra com bellos passes de capote para tal fim.
Oliveira cravou um par regular e outro aproveitando.
Maera, em seguida, fez varios passes magnificos com a capa.
Ao cavalleiro José Bento (de Araújo), um bravo que bebeu o elixir da juventa e não diz a ninguem o segredo da sua eterna mocidade, a esse veterano destemido coube o terceiro touro. Alfredo Santos fez a sorte da vara com resultado. A féra, a princcipio, fez negaças, depois resolveu-se a arremeter e José Bento (de Araújo) cravou-lhe tres ferros largos de primeirissima, dos quaes um en tabla, e um ferro curto muito bom. Applausos e ovações a José Bento (de Araújo). Nesse momento appareceu a figura do Camarão, o mais celebre dos afficcionados, os espectadores saudaram-no com effusão, emquanto o poeta, embevecido, perpetrava mais umas rimas para o guapo camarote.
Teu olhar vibra scentelhas,
Teu labio inspira desejo,
Que mette milhões de abelhas
Zumbindo dentro de um beijo.
Sôa de novo o clarim, e entra o quarto touro, Manuel Santos mette-lhe meio par, Alfredo Santos faz um bello cambio de rodillas, Cantarito mette meio par, intentando cambiar com valentia.
Manuel Santos faz um luzido preparo e a féra, depois de capeada optimamente por Maera, recebe de Manuel Santos um bello par de castigo.
Cantarito intenta com ardor a sorte da cadeira, a féra não ajuda, mas recebe um par magnifico.
Maais outro par bonito de Manuel Santos e Cantarito então pratica a sorte da muleta, passe natural, é desarmado, mas rapidamente faz um bello passe de peito pela direita, outro em redondo muito bom e faz a sorte da morte cravando no animal uma boa estocada.
Applausos em penca.
O 5º touro, negro, dorso estriado, saltador,
cachaçudo, coube ao cavalleiro Morgado de Cóvas, que montava um soberbo
tordilho andaluz, puro sangue, ginete adestradissimo, que elegantemente fazia a
manobra sem o menor castigo.
Apezar das negaças da féra, Morgado crava-lhe tres ferros largos superiores e mais um á meia volta, recebendo muitas palmas.
Houve ahi uma interrupção: onde está o homem está o
perigo, na sombra armou-se um sarilho
de repente, assustando as damas e obrigando os homens a alguns safanões e
cotoveladas.
Faz-se de novo a paz tranquilla, graças á conferencia de Haya du supplente que presidia á corrida.
Entra o 6º touro, preto; Alfredo crava-lhe um par al quiebro, mas foi volteado pela féra, crava-lhe outro par, aproveitando, a meia volta. Thomé crava tres pares bons, bem lançados, Alfredo mais dous pares e meio, um delles entrando no terreno do cornupeto. Foi capeado luzidamente por Maera, Cantarito, Thomé, Oliveira e Alfredo. Seguiu-se a pantomina Córta jaca, muito parecida com a de domingo passado, dando os rapazes muita sorte com o touro que lhes coube, entre dansas, saracoteios, tambalhotas e saltos mortaes. Resumo: tarde esplendida, gado um pouco melhor do que o das corridas passadas, sortes soberbas, animação completa e a poesia, lá em cima, completamente integrada nessa figura dominadora e gracil que prrendia e empolgava, perturbadoramente linda, soberbamente encantadora. E o poeta, á sahida, monologava, inspirado:
Senhora de mago encanto
Que extasia e maravilha,
És como a flor de amarantho
De um castello de Sevilha!
Justo Verdades e Raul.
In JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro – 2 de Dezembro de 1907