12 DE MAIO DE 1904 - LISBOA: 1.º TOURO: JOSÉ BENTO DE ARAÚJO. 2.º TOURO: FERNANDO DE OLIVEIRA É COLHIDO...

 

Arquivo Público do Estado de São Paulo

Tourada Tragica

(CARTA DE LISBOA)

O caso sensacional da semana - Morte de um toureiro portuguez na praça do Campo Pequeno - Um precedente historico - Traços biographicos.

LISBOA, 15 DE MAIO.

            Na semana passada o grande caso sensacional de Lisbóa foi o crime do quartel da Estrella, em que um soldado allucinado tirou a vida a dois officiaes. Tambem esta semana temos um acontecimento desastroso a referir e que por egual emocionou toda a cidade.

            Não se trata de um crime, trata-se de um desastre que tirou a vida a um artista portuguez, em circumstancias devéras extraordinarias.

            Na quinta-feira da Ascenção realizou-se uma tourada extraordinaria na bella praça do Campo Pequeno. Os cartazes tinham reclamado largamente a festa e, no numero dos lidadores, figurava o nome do cavalleiro Fernando de Oliveira, tão estimado do nosso publico.

            O dia apresentou-se esplendido. Um sol ardente cahia sobre a praça e fazia brilhar todas as bellezas desse espectaculo tão querido do nosso povo e tão genuinamente singular.

            Infelizmente o gado não correspondeu aos reclames que lhe tinham feito e no segundo touro destinado á lide a cavallo, (NOTA: O primeiro touro coube ao cavaleiro José Bento de Araújo) appareceu na praça Fernando de Oliveira.

            Fernando que se apresentára na arena alegre, e bem disposto para a lide deste touro, o seu primeiro que pertencia á ganaderia do sr. marquez de Castello Melhor, teve a defrontar-se com uma rez mal intencionada.

            Com um trabalho diligente, e mettendo-se demasiadamente no terreno do touro, conseguira collocar-lhe dois ferros a meia volta sem que fosse tocado. Ao terceiro porém, e ao rematar a sorte, o touro colhe o cavallo, derruba-o e o cavalleiro é cuspido da sella a distancia, ficando de bruços e sem sentidos.

            Nesta occasião, o touro arremette de novo do infeliz artista, a dá-lhe violenta marrada na cabeça. Estabelece-se a confusão, accodem os capotes tardiamente, o corpo inanimado de Fernando de Oliveira é levantado pelos forcados que accudiram pressurosos, sejam ajudados pelos demais artistas, que o conduzem á enfermaria.

            O publico levanta-se xxxx impressionado e muita gente se dirige para xxxx a indagar o succedido. Os soccorros medicos não se fazem esperar, e para xxxx Fernando de Oliveira correm os srs. drs. Joaquim Salgado e xxxx Ribeiro e Arthur xxxx compareçam os srs. drs. xxxx Tavares, Bebiano, Fernando de Almeida, Archer da Silva e Gonçalves Marques, que verificaram ser grave o estado do estimado cavalleiro, pois apresentava uma grande fractura na base do craneo, havendo tambem grande homorrhagia interna.

            Em vista  da gravidade do caso foi o desditoso cavalleiro mettido em uma maca e conduzido ao hospital de S. José, em estado comatoso, e onde pouco depois de alli ter entrado expirava, sem nunca mais ter dado accôrdo de si, desde o momento da terrivel colhida.

            Calcule-se a impressão que este horrivel espectaculo causou nos espectadores ! Eram mais de 6.000 pessoas que enchiam dois terços do grandioso amphitheatro e que, tendo corrido a um divertimento, recebiam do acaso um espectaculo horrivel da morte !

            Nas praças hespanholas esses desastres são quasi freuqntes e o publico está habituado a elles como os espectadores romanos ás tragedias do circo. Entre nós, porém, em que o toureio tem perdido o seu caracter de selvageria e barbaridade para se transformar num verdadeiro espectaculo artistico, sendo prohibida a entrada na praça de gado desembolado, este desastre não tinha precedentes no nosso tempo. É preciso recorrer ao seculo XVIII para se encontrar um outro caso de morte dum toureiro numa praça portugueza. Foi esse no tempo de celebre marquez do Pombal, e, tambem como agora, em presença de familia real.

            Era uma tourada de fidalgos, e um dos cavalleiros era o gentil e destemido conde dos Arcos, filho do velho marquez de Marialva, mordomo-mór do rei e seu grande amigo. Coube-lhe um touro dos peiores instinctos que o matou no meio da praça de Salvaterra, onde a tourada se realizava.

            Toda a assistencia se levantou num movimento de horror, mas essa impressão subiu ao auge quando, deante do cadaver do filho, saltou á praça, onde o touro escarvava haurindo o cheiro do sangue, o velho marquez de Marialva.

            Faz-se um silencio absoluto, o annuncio das grandes sensações. E o marquez, desembainhando a espada, avançou sereno para o animal, cujas hastes agudas e despidas se erguiam como dois punhaes.

            Serenamente citou o touro que, fitando o arremetteu afinal ; e o marquez, com a firmeza do pulso, que fizera a sua reputação de primeiro toureiro da peninsula nos tempos da mocidade, mergulhou-lhe a espada na nuca, com uma tal destreza, que o touro succumbiu immediatamente.

            E só então duas lagrimas rolaram pela alvura das suas barbas sahindo sobre o corpo do filho inanimado.

            Este triste episodio que inspirou algumas das melhores paginas de Rebello da Silva e levou o marquez de Pombal a prohibir as touradas em Salvaterra, foi agora recordado por occasião deste tragico acontecimento, por ser o unico precedente conhecido de um caso de morte em praça de touros portugueza.

            Eis alguns traços biographicos do cavalheiro Fernando de Oliveira :

            Nasceu na villa de Banavente, povoação ribatejana, em 1859, contando, portanto, 45 annos. Filho de lavradores e tendo recebido uma educação cuidada, cedo entrou na vida commercial, em Lisboa, como caixeiro despachante.

            Mais tarde, e por morte de seu pae, Fernando de Oliveira dedicou-se á lavoura nas lezirias da Villa Franca, mas a sorte foi-lhe adversa, perdendo nessa exploração os capitaes que ahi empregára.

            Em 1879 lidava rezes a cavallo pela primeira vez, na sua terra natal, e tão bem se houve, alcançando um grande successo que o seu nome se tornou falado, não só aqui como em Hespanha, onde mais tarde toureou por diversas vezes, uma das quaes, em 1892, numa corrida de beneficencia em favor dos pobres de madrid e Lisbóa, em companhia dos cavalleiros Alfredo Tinoco, Luiz do Rego e Manuel Casimiro, sendo alli muito applaudido, merecendo do notavel critico taurino, o fallecido Sanchez de Neira, os maiores elogios ao seu trabalho.

            Foi por diversas vezes ao Brasil, tendo ahi toureado com applauso recebendo do publico fluminense geraes provas de estima e apreço realizando a sua ultima «tournée» em 1902.

            Toureou em todas as praças do paiz, algumas das quaes em corridas de inauguração.

            Demonstrando desde o inicio da sua carreira um aturado estudo pela arte a que de dedicará, a breve trecho alcançava pelos seus meritos artisticos um logar invejavel entre os da sua classe.

            Procurou sempre dar o maior brilhantismo á lide equestre, empregando na forma de castigar as rezes, um toureio artistico e variado, consoante ás condições em que ellas se lhe apresentavam.

            Dotado de excepcionaes faculdades artisticas, auxiliadas por extraordinaria força de vontade, Fernando de Oliveira foi incontestavelmente um dos modernos cavalheiros que mais concorreu para imprimir a lide equestre novos attractivos, o que em parte conseguiu, não sem que esse facto désse motivos grandes xxxxxxx, como quando começou a realizar a sorte denominada «á garupa», cuja invenção lhe é atribuida.

            Artista correcto e sereno, a sua fórma de tourear, por assim dizer inconfundivel, grangeara-lhe grande somma de triumphos durante a sua carreira artistica, que , diga-se de passagem, lhe acarretaram tambem algumas semsaborias provenientes de animosidades partidarias que nada justifica, e que ao contrario, mais põem em evidencia o merito daquelles a quem se dirigem.

            Toureiro pundonoroso, não soffrendo que alguem  duvidasse de sua coragem ante as rezes bravas, foi talvez um desses excessos de pundonor que o levaram ultimamente a entrar demasiadamente no terreno dos touros, a causa, ainda que involuntaria do desastre que lhe succedeu, e do qual lhe resultou a morte.

            Com a morte de Fernando de Oliveira, perde a tauromachia nacional um dos seus mais brilhantes ornamentos, e aquelles que com elle conviviam, um amigo sincero, dotado de excellentes qualidades de caracter.

MASCARENHAS GAIVÃO.

In CORREIO PAULISTANO, São Paulo - 2 de Junho de 1904