1 DE DEZEMBRO DE 1907 - RIO DE JANEIRO: UMA TOURADA CHEIA DE ENCANTO...





Biblioteca nacional do Brasil

Tauromachia

    Tarde soberba de luz! O céo era uma immensa turqueza a perder-se no engaste do horizonte longinquo. A praça apresentava aspecto garrido; sombra animadissima, sol com muitos claros, quasi não se via sombra de gente ao sol.

    Lá no alto, no renque de camarotes, espoucava a graça feminina, em toilettes claras; em um delles, o 17, a toureira pepita que vae estrear breve, em trajes da sua terra, a seu lado duas patricias sympathicas faziam pender da balaustrada o classico manton de seda bordado. Nisto os olhos do poeta chronista sentiram-se offuscados, em uma mirada para o camarote 22. Toda a salerosa graça de Sevilha alli estava resumida! Senhoril, graciosa, entrou Carmen Ruiz, a evolar alegria de seu sorriso vivo; a multidão acclamou-a, o alarido alacre das almas em festa traduziu-se em applausos, quando viram a rainha da festa derramar sobre o peitorial a seda brilhante de seu manton de manilla, com as côres hispanicas. O poeta sentiu vibrar as cordas do enthusiasmo:

Dá que eu veja, como esmola

Ou como excelsa offerenda,

O teu perfil de hespanhola

Sob a mantilha de renda!

    Seu traje, lilaz claro, perdia-se sob o rendado da mantilha, que, em rendilhados finos, acariciava-lhe os cabellos. Rubros claveles redolentes alcatifavam-lhe o collo, com a graça infinita que só ella possue, e tanta, que o poeta não resistiu:

Vive minh'alma confusa

Ao ver belleza tamanha

No teu olhar de andaluza

Toda a volupia de Hespanha!

Bello porte aristocrata,

Maneira da raça antiga!

---- Trouxeste o punhal de prata

Atravessado na liga?

    Nisto sôa o clarim e o companheiro Justo Verdades toma do lapis para fazer a resenha da corrida:

«A intelligencia desta vez encontrou pessoa com geito, o cavalheiro Victor Marques, que se portou correctamente.

Entra a cuadrilla para as solemnes cortezias, com todas as regras do estylo.

Em seguida, o clarim toca o signal para o 1º touro, côr de lusco-fusco, mais claro do que escuro, que foi o melhor cornupeto da tarde. Com elle fez o cavalheiro Morgado de Cóvas uma estrêa garrida e brilhante, cravando-lhe cinco ferros largos esplendidos, al quite e um curto magnifico, com intento.

Ganhou applausos em penca, muitas flôres e muitos charutos; uma bella ovação.

P 2º touro já é sarado, malandro como elle só, mas assim mesmo procurou dar conta do recado, recebendo de Maera um par al quarteo superior e outro supimpa, pois o bravo hespanhol, sem deixar as bandarilhas, preparou a féra com bellos passes de capote para tal fim.

Oliveira cravou um par regular e outro aproveitando.

Maera, em seguida, fez varios passes magnificos com a capa.


    Ao cavalleiro José Bento (de Araújo), um bravo que bebeu o elixir da juventa e não diz a ninguem o segredo da sua eterna mocidade, a esse veterano destemido coube o terceiro touro.

    Alfredo Santos fez a sorte da vara com resultado. A féra, a principio, fez negaças, depois resolveu-se a arremetter e José Bento (de Araújo) crvou-lhe tres ferros largos de primeirissima, dos quaes um en tabla, e um ferro curto muito bom. Applausos e ovações a José Bento (de Araújo). Nesse momento appareceu a figura do Camarão, o mais celebre dos afficionados, os espectadores saudaram-no com effusão, emquanto o poeta, embevecido, perpetrava mais umas rimas para o guapo camarote:

Teu olhar vibra scentelhas,

Teu labio inspira desejo,

Que mette milhões de abelhas

Zumbindo dentro de um beijo.

    Sôa de novo o clarim, e entre o quarto touro, Manuel Santos mette-lhe meio par, Alfredo Santos faz um bello cambio de rodillas, Cantarito mette meio par, intentando cambiar com valentia.

    Manuel Santos faz um luzido preparo e a féra, depois de capeada optimamente por Maera, recebe de Manuel Santos um bello par de castigo.

    Cantarito intenta com ardor a sorte da cadeira, a féra não ajuda, mas recebe um par magnifico.

    Mais outro par bonito de Manuel Santos e Cantarito então pratica a sorte da muleta, passe natural, é desarmado, mas rapidamente faz um bello pase de peito pela direita, outro em redondo muito bom e faz a sorte da morte cravando no animal uma boa estocada.

    Applausos em penca.

    O 5º touro, negro, dorso estriado, saltador, cachaçudo, coube ao cavalleiro Morgado de Cóvas, que montava um soberbo tordillo andaluz, puro sangue, ginete adestradissimo, que elegantemente fazia a manobra sem o menor castigo.

    Apezar das negaças da féra, Morgado crava-lhe tres ferros largos superiores e mais um á meia volta, recebendo muitas palmas.

    Houve ahi uma interrupção; onde está o homem está o perigo, na sombra armou-se um sarilho de repente, assustando as damas e obrigando os homens a alguns safanões e cotoveladas.

    Faz-se de novo a paz tranquilla, graças á conferencia de Haya do supplente que presidia á corrida.

    Entra o 6º touro, preto; Alfredo crava-lhe um par al quiebro, mas foi volteado pela féra, crava-lhe outro par, aproveitando, a meia volta. Thomé crava tres pares bons, bem lançados. Alfredo mais dous pares e meio, um delles entrando no terreno do cornupeto. Foi capeado luzidamente por Maera, Cantarito, Thomé, Oliveira e Alfredo. Seguiu-se a pantomina Cortajaca, muito parecida com a de domingo passado, dando os rapazes muita sorte com o touro que lhes coube, entre dansas, saracoteos, tambalhotas e saltos mortaes. Resumo: tarde esplendida, gado um pouco melhor do que o das corridas passadas, sortes soberbas, animação completa e a poesia, lá em cima, completamente integrada nessa figura dominadora e gracil que prendia e empolgava, perturbadoramente linda, soberbamente encantadora. E o poeta, á sahida, monologava, inspirado:

Senhora de mago encanto

Que extasia e maravilha,

És como a flor de amarantho

De um castello de Sevilha!

Justo Verdades e Raul

 

In JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro - 2 de Dezembro de 1907