Hemeroteca Digital CM Lisboa
A ESPERA
DOS TOUROS
(LISBOA
CONTEMPORANEA)
Chegou quasi a ser tradicional em
Lisboa a espera dos touros.
Aos sabbados havia na capital uma
animação desusada, promovida por um publico especial, que adorava aquelle
divertimento sui generis, synthese
das grandes patuscadas dos estroinas de então.
Ir
esperar os touros era o que hoje se chama, em linguagem plebéa, um pagode de estalo.
O mundo facil das peccadoras réles,
dos fadistas emeritos, dos estravagantes notaveis, dos valdevinos, dos vadios,
dos borgas e de toda uma sucia de
rapazes estroinas e mulheres perdidas, mettia-se, ahi pelas tres da tarde, em
trens especiaes, com cocheiros lirós, de calça de belbotina, bota de polimento,
jaleco com alamares de prata, chapeu
desalbado de feltro branco e cinta vermelha, e, em corrida vertiginosa,
mercê de vibrantes chicotadas applicadas nos lombos de desventurados pilecas
lazarentas, batia aquillo tudo para a
Cruz do Taboado, primeira estação de comes e bebes, a predispor o espirito e o
estomago para as grandes sensações da noite.
Ordinariamente o menú constava de bellas postas de peixe
espada frito, salada de alface, azeitonas, vinho á discrição, laranjas e queijo saloio.
Comia-se muito, bebia-se ainda mais,
as guitarras gemiam desafinados acordes, cantandores celebres psalmeavam versos
errados e ordinarios de sentimentaes oitavas de fado, discutiam-se assumptos
ligeiros, trocavam-se ditos obscenos, as malhas do chinquilho vibravam
metallicamente na terra, erguendo nuvens de peira, dois faias riscavam n'um cumulo de pericia infame,
as mulheres riam doidamente ou alardeavam a sua miserrima situação contando, em
alta voz. serenas ridiculas de nojentas aventuras e avinhados galanteios, ás
vezes alguns murros serviam de prato de resistencia, e não raro se ouvia o
estalido secco da mola d'umqa navalha, abrindo-se n'uma algibeira, traidora e
covardemente.
Ao cahir da noite toda aquella
multidão entre a qual chafurdavam alguns dos mais antigos brazões da nobreza
portugueza, trocando o tu de confiança com o mais desprezivel cocheiro de praça,
mettia-se nos trens, e lá iam, no meio d'uma algazarra infernal, replectos de
vinho e de instinctos bestiaes, esperar o gado á porcalhota.
A chusma augmentava com uma
multidão, de cavalleiros, janotas uns, outros pelintras, hespanholas de grandes
olhos negros e pés de creança, envoltas em longas mantilhas de seda branca ou
chales de Tonkin, membros da élite e
do sport, e alguns pandegos
engraçados, montados em miseros jericos, que serviam de alvo aos motejos de
tods aquella gente berradora e agitada.
Proximo da hora anciosamente
esperada, o barulho decrescia de intensidade até as conversações se travarem a
meia voz, e os ouvidos apuravam-se para recolherem o bater do primeiro
chocalho.
— Lá veem elles! grtava um engraçado, ao qual
respondia uma voz forte:
— Cala a
bocca, bruto!
E então, uma gargalhada enorme,
colossal, sahia d'aquellas trezentas gargantas, e os rostos avinhados dos
boleeiros appareciam á luz das lanternas, accendendo os nauseabundos cigarros.
Finalmente sentia-se ao longe o tinir
sonoro d'un chocalho.
Na semi-obscuridade d'aquella noite
especial, viam-se erguer nos trens os vultos das mulheres, encostando-se
tremulas e receiosas aos homens meio embriagados, com os chapeus cheios de pó
descahidos sobre os olhos.
O ruido dos chocalhos augmentava,
ouvia-se já distinctamente, e o silencio tornava-se profundo, a ponto de se
poder distinguir o zumbido d'um mosquito.
Á luz avermelhada dos lampeões da
estrada descortinava-se ao longe uma nuvem de poeira avançando rapida, como uma
onda prodigiosa em mar revolto.
Todos se recolhiam aos trens, os
cocheiros saltavam para as almofadas, os cavalleiros recuavam os cavallos, os
peões subiam ás arvores, abriam-se as janellas das casas proximas, e, rapidos
como um relampago, rodeados pelas chocas e pelos campinos, de focinho quasi de
rojo, cheios de pó e de cansaço, soprando ruidosamente, cegos de colera por
aquella corrida vertiginosa, passavam os bois.
Em seguida toda aquella alluvião de
trens e de cavallos desfilava loucamente, em carreira fanthastica e febril, no
encalço do gado.
Resoava então uma agazarra
formidavel, augmentada pelo rodar dos trens; assobios d'um som agudissimo
silvavam sem interrupção, durante o caminho, as mulheres batiam as palmas e
riam desordenadamente; entoavam-se hymnos a Bacho e ao Amor, n'uma phraseologia
de bordel puro, e o cortejo augmentava sempre de velocidade.
Subito estalavam no caminho algumas
bombas, um dos bois rompia o circulo formado pelas chocas e desapparecia ao
longe, em desenfreada carreira, seguido por um campino de meias altas, sapatos
largos e pampilho em punho.
Todas as conversações se
encaminhavam para as desgraças que o touro fugido iria occasionar na cidade, e
ás duas horas da madrugada a chusma entrava na capital, despertando com o seu
ruido e o seu delirio o somno socegado e tranquillo dos cidadãos pacificos.
Era raro quando a festa terminava
sem terem havido algumas facadas, cabeças partidas, rodas despedaçadas, ciumes,
arrufos, vinganças, e mil outras mesquinhas expressões das almas rudes da
maioria d'aquella multidão, que só comprehendia uma pega de cara, um estomago á
prova de odre e um risco dado com
arte.
O tempo veio demonstrar, com a sua
inexoravel sensatez, que as esperas dos touros eram tudo quanto de mais indigno
e indecente podia ser concedido ás predilecções brutaes d'um publico sem
illustração nem finura, que adorava as grandes commoções como os antigos
romanos no Circo, perante as luctas sanguinarias dos homens lançados ás feras,
e dos gladiadores.
Rocha Vieira, 1903 - Museu de Lisboa
Com as esperas dos touros morreram
os fadistas celebres, os fidalgos esturdios, as rameiras pimponas, os
guitarristas notaveis, e toda essa troupe
inutil á sociedade, que tinha passado perfeitamente sem ella, troupe humana onde o bom gosto era um
boi, e a civilisação um litro de vinho.
Ainda nas touradas em Lisboa; mas
touros, na verdadeira acepção que esta palavra em tempos teve entre nós,
acabaram-se — felizmente.
ALFREDO
GALLIS
In A
ILLUSTRAÇÃO PORTUGUEZA, Lisboa - 1 de Junho de 1895