23 DE MAIO DE 1895 - ALGÉS: INAUGURAÇÃO DA PRAÇA DE TOUROS

 


Hemeroteca Digital CM Lisboa

Inauguração da Praça d'Algés

VIVA A BELLA RAPAZIADA


NOTA

CAVALEIROS:

Fernando de Oliveira

Alfredo Tinoco

Manuel Casimiro

José Bento de Araújo (É o segundo cavaleiro, partindo da esquerda para a direita)

LINKS ÚTEIS

https://corridasportugalespanafrance.blogspot.com/2019/11/23-de-maio-de-1895-alges-inauguracao-da.html

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In O ANTÓNIO MARIA, Lisboa - 30 de Maio de 1895

1 DE JUNHO DE 1895 - LISBOA: A ESPERA DOS TOUROS...

 

Hemeroteca Digital CM Lisboa

A ESPERA DOS TOUROS

(LISBOA CONTEMPORANEA)

            Chegou quasi a ser tradicional em Lisboa a espera dos touros.

            Aos sabbados havia na capital uma animação desusada, promovida por um publico especial, que adorava aquelle divertimento sui generis, synthese das grandes patuscadas dos estroinas de então.

Ir esperar os touros era o que hoje se chama, em linguagem plebéa, um pagode de estalo.

            O mundo facil das peccadoras réles, dos fadistas emeritos, dos estravagantes notaveis, dos valdevinos, dos vadios, dos borgas e de toda uma sucia de rapazes estroinas e mulheres perdidas, mettia-se, ahi pelas tres da tarde, em trens especiaes, com cocheiros lirós, de calça de belbotina, bota de polimento, jaleco com alamares de prata, chapeu  desalbado de feltro branco e cinta vermelha, e, em corrida vertiginosa, mercê de vibrantes chicotadas applicadas nos lombos de desventurados pilecas lazarentas, batia aquillo tudo para a Cruz do Taboado, primeira estação de comes e bebes, a predispor o espirito e o estomago para as grandes sensações da noite.

            Ordinariamente o menú constava de bellas postas de peixe espada frito, salada de alface, azeitonas, vinho á discrição, laranjas e queijo saloio.

            Comia-se muito, bebia-se ainda mais, as guitarras gemiam desafinados acordes, cantandores celebres psalmeavam versos errados e ordinarios de sentimentaes oitavas de fado, discutiam-se assumptos ligeiros, trocavam-se ditos obscenos, as malhas do chinquilho vibravam metallicamente na terra, erguendo nuvens de peira, dois faias riscavam n'um cumulo de pericia infame, as mulheres riam doidamente ou alardeavam a sua miserrima situação contando, em alta voz. serenas ridiculas de nojentas aventuras e avinhados galanteios, ás vezes alguns murros serviam de prato de resistencia, e não raro se ouvia o estalido secco da mola d'umqa navalha, abrindo-se n'uma algibeira, traidora e covardemente.

            Ao cahir da noite toda aquella multidão entre a qual chafurdavam alguns dos mais antigos brazões da nobreza portugueza, trocando o tu de confiança com o mais desprezivel cocheiro de praça, mettia-se nos trens, e lá iam, no meio d'uma algazarra infernal, replectos de vinho e de instinctos bestiaes, esperar o gado á porcalhota.

            A chusma augmentava com uma multidão, de cavalleiros, janotas uns, outros pelintras, hespanholas de grandes olhos negros e pés de creança, envoltas em longas mantilhas de seda branca ou chales de Tonkin, membros da élite e do sport, e alguns pandegos engraçados, montados em miseros jericos, que serviam de alvo aos motejos de tods aquella gente berradora e agitada.

            Proximo da hora anciosamente esperada, o barulho decrescia de intensidade até as conversações se travarem a meia voz, e os ouvidos apuravam-se para recolherem o bater do primeiro chocalho.

—  Lá veem elles! grtava um engraçado, ao qual respondia uma voz forte:

— Cala a bocca, bruto!

            E então, uma gargalhada enorme, colossal, sahia d'aquellas trezentas gargantas, e os rostos avinhados dos boleeiros appareciam á luz das lanternas, accendendo os nauseabundos cigarros.

            Finalmente sentia-se ao longe o tinir sonoro d'un chocalho.

            Na semi-obscuridade d'aquella noite especial, viam-se erguer nos trens os vultos das mulheres, encostando-se tremulas e receiosas aos homens meio embriagados, com os chapeus cheios de pó descahidos sobre os olhos.

            O ruido dos chocalhos augmentava, ouvia-se já distinctamente, e o silencio tornava-se profundo, a ponto de se poder distinguir o zumbido d'um mosquito.

            Á luz avermelhada dos lampeões da estrada descortinava-se ao longe uma nuvem de poeira avançando rapida, como uma onda prodigiosa em mar revolto.

            Todos se recolhiam aos trens, os cocheiros saltavam para as almofadas, os cavalleiros recuavam os cavallos, os peões subiam ás arvores, abriam-se as janellas das casas proximas, e, rapidos como um relampago, rodeados pelas chocas e pelos campinos, de focinho quasi de rojo, cheios de pó e de cansaço, soprando ruidosamente, cegos de colera por aquella corrida vertiginosa, passavam os bois.

            Em seguida toda aquella alluvião de trens e de cavallos desfilava loucamente, em carreira fanthastica e febril, no encalço do gado.

            Resoava então uma agazarra formidavel, augmentada pelo rodar dos trens; assobios d'um som agudissimo silvavam sem interrupção, durante o caminho, as mulheres batiam as palmas e riam desordenadamente; entoavam-se hymnos a Bacho e ao Amor, n'uma phraseologia de bordel puro, e o cortejo augmentava sempre de velocidade.

            Subito estalavam no caminho algumas bombas, um dos bois rompia o circulo formado pelas chocas e desapparecia ao longe, em desenfreada carreira, seguido por um campino de meias altas, sapatos largos e pampilho em punho.

            Todas as conversações se encaminhavam para as desgraças que o touro fugido iria occasionar na cidade, e ás duas horas da madrugada a chusma entrava na capital, despertando com o seu ruido e o seu delirio o somno socegado e tranquillo dos cidadãos pacificos.

            Era raro quando a festa terminava sem terem havido algumas facadas, cabeças partidas, rodas despedaçadas, ciumes, arrufos, vinganças, e mil outras mesquinhas expressões das almas rudes da maioria d'aquella multidão, que só comprehendia uma pega de cara, um estomago á prova de odre e um risco dado com arte.

            O tempo veio demonstrar, com a sua inexoravel sensatez, que as esperas dos touros eram tudo quanto de mais indigno e indecente podia ser concedido ás predilecções brutaes d'um publico sem illustração nem finura, que adorava as grandes commoções como os antigos romanos no Circo, perante as luctas sanguinarias dos homens lançados ás feras, e dos gladiadores.

Rocha Vieira, 1903 - Museu de Lisboa

            Com as esperas dos touros morreram os fadistas celebres, os fidalgos esturdios, as rameiras pimponas, os guitarristas notaveis, e toda essa troupe inutil á sociedade, que tinha passado perfeitamente sem ella, troupe humana onde o bom gosto era um boi, e a civilisação um litro de vinho.

            Ainda nas touradas em Lisboa; mas touros, na verdadeira acepção que esta palavra em tempos teve entre nós, acabaram-se — felizmente.

ALFREDO GALLIS

In A ILLUSTRAÇÃO PORTUGUEZA, Lisboa - 1 de Junho de 1895