6 DE MAIO DE 1894 - LISBOA: UMA BOA CORRIDA NO CAMPO PEQUENO


Biblioteca nacional de Portugal

CHRONICA DAS TOURADAS

CAMPO PEQUENO

5.ª corrida da epocha. Espada - Francisco Gonzalez, Faico. Touros do sr. dr. Maximo Falcão.


Grande trovoada pairou sobre Lisboa desde sabbado á 1 hora da madrugada até ao dia seguinte ás 8 horas da manhã, descarregando enormes bategas de agua accordando os afficionados e amadores que já estavam na maioria a dormir a muito tranquillos, sonhando talvez com Faico, com o touro que matou tres cavallos e finalmente que já estavam assistindo a uma corrida magnifica, e no meio do seu sonho dourado foram sobresaltados pelo barulho da chuva que caia em grande quantidade, fazendo-os perder toda a esperança de que no dia seguinte iriam assistir a uma bella tourada.

De manhã a chuva continuou e a desanimação então foi total. Mas pouco durou este acabrunhamento e desespero, pois que d'ahi a momentos, o ceu que então se apresentava carrancudo tornou-se limpido, deixando no espaço brilhar os raios de sol que illuminavam toda a cidade, os rostos já alegres de todos os amadores. O perigo tinha desapparecido porque a trovoada que nos assoberbou durante algumas horas, fugiu para longe. A tarde conservou-se bella e o publico corria pressuroso a todos os pontos de embarque para se dirigir á praça.

No Rocio immensa gente tomava o seu logar, e lá iam alegres e folgasãos ver o Faico. No campo de Sant'Anna decepção geral; muito povo para os touros, mes nem um só carro. Fartou-se aquella gente de esperar por mais de meia hora, mas isso sim, nem um só. Bonito serviço aquelle da companhia, não ha duvida, e a direcção consente que tudo isto se pratique sem que cumpra com a sua obrigação mandando estabelecer ali carros em abundancia nos dias das touradas. Despreza a protecção que o publico lhe dispensa e mais tarde talvez se arrependa. Providencias, srs. directores!...

Á's 4 horas da tarde a praça estava quasi cheia e poucos minutos depois de principiar a coriida poucos logares estavam de voluto.

Á hora marcada, quatro e um quarto, apparece no camarote da auctoridade o sr. dr. Leça da Veiga e o Botas, já no seu logar, manda dar o signal para sair a cuadrilla. Dá entrada n'este momento no camarote real sua alteza o sr. infante D. Affonso, vindo pouco depois S. M. El-rei.

Feitas as cortezias do estylo, cada um toma o seu logar, Faico é alvo de grande ovação da parte do sol, do qual é o toureiro mais querido, e depois vae esperar com a farpa o cavalleiro José Bento (de Araújo) a quem pertence lidar o 1.º touro de nome

Caldeiro, que o é tambem de cornea, abarbelado, de muchas libras, bravo e voluntario. José Bento (de Araújo) toma a farpa, e dirigindo-se ao camarote real offerece a sorte ao sr. D. Affonso, que agradece a amabilidade. Vae para a gaiola, executa a sorte muito bem, pondo depois um ferro á meia volta, dois á tira bem collocados, e fecha a lide n'este touro com um par de bandarilhas collocado á meia volta muito bem. Foi muito applaudido por todo o publico, recebendo charutos e flores.

Pouco depois abre-se a porta do curro para sair o 2.º que é conhecido por Curvacho, negro e cornealto. Calabaça á gaiola deixa meio par e Raphael põe um par a cuarteio muito bom. Palmas. Calabaça tenta novamente collocar um par a cuarteo, sendo colhido. Faico accudiu fazendo uma navarra, pelo que foi victoriado. Raphael cita novamente, entra em sorte e deixa um par, resultando um bornalsito. Com um par a cuarteo deanteiro, fechou Calabaça a lide.

Faico com o capote tira tres veronicas, dois passes de frente por detraz, uma navarra, sendo desarmado; pega novamente no capote e tira sete veronicas e uma navarra e ajoelha por fim deante do touro, deitando-lhe a terra para o focinho. O publico gostou da graça e applaudiu o espada. O forcado Paschoal tres vezes entra na cornea do touro, e não se fechando e aguentando nos derrotes em todas é sacudido. O publico indigna-se e com rasão contra o pegador. Cara Linda cita o touro e pega-o de cara.

Recolhido este, sae o 3.º que foi baptisado com o nome de Carrasco, cornealto e preto. Minuto vae para a gaiola e colloca-lhe um par, Cadete em seguida deixa n'um cuarteo um bom par; Minuto põe depois um par e Cadete deixa outro a cuarteo menos mau. Minuto cita novamente, deixando tambem um par a cuarteo. Por fim o touro nega-se ao castigo e ouve-se o cornetim.

Faico pega na muleta e dirigindo-se ao camarote real faz o seguinte discurso:

"Brindo por la presidencia, por el publico tan illustrado que tenemos, y por los Reyes de Portugal y España."

Principia a faena com um passe ajudado, dois altos, um natural, um de peito e um ajudado, simulando uma estocada a volapié, que resultou descahida. Dá mais dois passes altos, soffre um desarme, dá mais um natural, um por lo alto, um de peito e entra a matar sem o touro estar egualado. Resulta um volapié mau como o primeiro. Manuel Fressura cita a rez de costas e faz uma pe´ga como ha muito tempo não via-mos segurando-se valentemente nos derrotes. Sae á arena colher applausos do publico, com Faico que lhe estendeu a mão. Finda esta justa e merecida ovação ao pegador sae o

4.º, que tem o nome de Ramalho, negro, listão, um pouco corneaberto. Marenito, que veio em logar de Primito, dirige-se á gaiola e perde a sorte, mettendo depois um par cuarteando-se; segue Pulguita que põe apenas meio par a cuarteo bom; Morenito cita novamente e mette um par a touro parado, trabalho que em Hespanha se executa, mas de que aqui se não gosta, e com toda a rasão. Fecha a lide Pulguita com mais um par a cuarteo.

Faico com a muleta dá dois passes ajudados, tres naturaes, cinco redondos, um de peito, e termina com uma estocada a volapié, tão má como as do touro antecedente. Devemos dizer que n'esta faena esteve mais parado do que na anterior. Abriu-se a porta do curro para entrar o Ramalho e depois sahir o

Fidalgo, que era o 5.º, negro e um pouco gravito. Pertenceu a Fernando de Oliveira, que offereceu a sorte a S. M. El-Rei.

Dirigindo-se para a gaiola não conseguiu consumar a sorte. Põe em seguida dois ferros á meia volta, sendo colhido em uma das vezes. Mette depois mais um ferro á meia volta, cita novamente o touro que se acobarda, e chega quasi a pôr o cavallo em cima da rez, sendo muito applaudido pela forma como a procurou. Põe ainda com custo um ferro á meia volta e um á tira, sendo beijado levemente.

Por Carrapito é conhecido na leziria o 6.º, negro e um pouco baixel do direito. Faico á gaiola deixa um par a topa-carneiro, depois um outro em egual sorte, depois colloca um muito bom a quiebro, põe em seguida dois pares e meio a cuarteo muito bons; põe mais um cambeando e fecha a lide com um par a cuarteo.

Passou o Carrapito de capote, parado e cingido, tirando sete veronicas, dois pharoes e uma navarra. Faico foi muito applaudido e o touro foi pegado de cernelha, mas sem luzimento.

Intervallo. A banda da Guarda Municipal toca uma bonita peça de musica e o Zé Pampilho olha para o Gaspar, para não dizer para uma guapa que está defronte d'elle na bancada geral de 2.ª fila. São modos de olhar. Uns saem e outros ficam, e 15 minutos depois toca o cornetim para sahir o cavalleiro. Apparece José Bento (de Araújo) que dirigindo-se para a gaiola espera o 7.º, que dá por Passarinho, bragado, salgado e abarbelado, pondo-lhe n'essa sorte um ferro descahido á esquerda, sendo o cavallo tocado. Mette depois uma tira superior e termina com um par de curtos, pedindo auctorisação ao Botas, porque já tinha tocado, resultando os ferros ficarem dianteiros que foram collocados a garupa.

Apparece em seguida o 8.º - o celebre mata cavvalos -. Era preto, bem posto e de muitas carnes. Sae com rompantes de leão, e acabou como um sendeiro, querendo a todo o transe defender-se, saltando á trincheira umas poucas de vezes. Bem fez Faico que, como não gostou d'elle, escolheu outro e acertou muito bem na escolha. Pertenceu aos novos: Theodoro e Cadete, que dedicaram a lide ao publico do sector 1.

Theodoro á gaiola não consumou a sorte, porque o touro não entrou em jurisdição. Põe em seguida um par a cuarteo e Cadete outro em egual sorte, mas superior. Depois uma surpreza nos veiu deliciar. Os novos e notaveis artistas continuaram a bandarilhar a ferros de palmo, pondo Theodoro dois pares a cuarteo muito bons e meio par á volta. Cadete colloca par e meio a cuarteo rasoaveis e meio par bom á meia volta. Faico cede do melhor grado o percal a Theodoro, que tira cinco veronicas rasoaveis.

Os dois artistas foram justamente applaudidos pelo publico, compartilhando d'esses applausos Faico, que lhes apertou a mão.

Depois veiu para a arena o 8.º, Morgado, preto, listão e bem armado. Pulguita, que á gaiola não poude executar a sorte põe depois um par a cuarteo. Morenito colloca meio par em egual sorte, seguindo-se-lhe o primeiro artista, que deixa no morrillo meio par da mesma forma. Morenito e Pulguita põem depois mais dois pares a cuarteo. Minuto, sem ordem para isso e porque o intelligente está dormindo, dá uns capotazos ao touro, e Morenito, com auctorisação de seu mestre, dá então quatro veronicas e uma navarra atrapalhadamente.

Depois de grande correria e do touro não encabrestar, pelo que os forcados apanharam o seu susto, foi pegado á volta.

Recolhida a rez sae 0 10.º que o Botas me disse chamar-se Caneco; negro e gravito. Fernando de Oliveira apresenta-se montado n'um cavallo russo que parece querer tocros, como se costuma dizer. O distincto cavalleiro vê-se grego logo á sahida do Caneco, que lhe dá uma enorme recarga, salvando-o Cadete d'aquella entallação com um opportuno quite. (Palmas, e justas). Depois Fernando colloca tres ferros á meia volta, todos mal apontados. Em seguida um á estribeira muito bom e fecha a lide com um ferro á meia volta, sendo o cavallo tocado.

Minuto á gaiola espera a saida do 11.º, que foi baptisado com o nome de Bemfeito, negro, bocalvo, listão e aberto de cornea, e deixa meio par bem collocado. Cadete depois cita a cuarteo e remata muito bem, mettendo um par. Entra novamente Minuto que n'um bornal colloca um par, caindo as bandarilhas. Cadete põe mais um par a cuarteo tambem rasoavel e fecha Minuto a lide com meio par á volta.

Apparece depois o 12.º e ultimo, que dá pelo nome de Volante, negro e gravito. Theodoro á gaiola não consegue pôr os ferros, collocando-os depois n'um bom cuarteo. Faico n'um recorte é colhido, dando uma cambalhota como um palhaço. Raphael põe depois um par bom a cuarteo; Theodoro, em egual sorte mette outro par. Raphael cita o touro novamente e mettendo os ferros a cuarteo cae, sendo pisado pela rez soffre um ferimento na cabeça, junto á orelha, pelo que vae curar-se á enfermaria.

E assim terminou a corrida, depois de uns capotazos de Minuto.

RESUMO


Faico. - Poucos ou nenhuns progressos tem feito do anno passado para cá. Conserva da mesma fórma o seu toureio alegre e brincalhão, que uma grande parte do publico gosta e applaude. Com as bandarilhas esteve bem, principalmente 1 par que poz a quiebro mas quiebro a valer.

Com o capote menos mal no 6.º touro e com a muleta bailando muito no 3.º e mais parado no 4.º. Nas estocadas desgraçado. Mas como não são a valer, valhanos isso.

Cavalleiros. - José Bento (de Araújo) toureou magistralmente o 1.º touro, entrando e citando como Dios lo manda e como a arte requer. No 2.º que lhe coube o seu trabalho não foi tão luzido, já em consequencia da rez, e já por que não havia um capote que tirasse o touro das taboas que estava com a querença.

No entanto andou bem e merece os mais rasgados elogios pelo seu correctissimo trabalho.


Fernando d'Oliveira embora lhe coubessem dois touros maus, esteve um pouco infeliz. Mais de uma vez lhe tenho dito nas criticas do Correio da Noite que é um artista distincto, um toureiro alegre, mas que o seu trabalho não é perfeitamente correcto pela pouca firmeza de pulso. Consinta mais os touros e verá se isto não é verdade. Cita admiravelmente mas ao rematar não tem a firmeza precisa e n'estes casos deixando entrar mais os touros ha-de forçosamente dar-lhe o resultado desejado.

O 1.º touro, depois de levar alguns feros negou-se e d'esta maneira o distincto artista tornou-se notavel na maneira de citar e consentiu então de mais um mansarrão o que lhe resultou ser o cavallo algumas vezes tocado. No 2.º que lhe coube quasi da mesma qualidade do primeiro, citou muito bem mas os ferros foram mal apontados, á expeção do ultimo que foi de mestre.

Bandarilheiros. - Theodoro e Cadete foram os heroes das tarde, como sempre o teem sido desde que abriram a praça do Campo Pequeno. Mereceram rasgados elogios pelo seu trabalho e principalmente pela lide de ferros de palmo, além d'isso trabalhadores infatigaveis durante toda a lide. Theodoro com o capote, tem vocação e portanto deve continuar. Uma lembrança. Cadete que mostrou tantas disposições para a muleta na tourada de Almada, porque é que de vez em quando não falla ao ouvido ao espada que trabalhar para o deixar passar um touro.

Continue que não perde, pois que se mostrou tão grande vocação não deve assim desprezal a.

Minuto menos mal em bandarilhas especialmente á gaiola no 3.º touro, e trabalhador com capote.

Pulguita pouco fez; Morenito teve alguns pares de merecimento, entrando muito bem na cabeça da touros.

Touros. - Os touros do sr. Maximo Falção confirmaram mais uma vez os creditos do esmerado creador. Muito bem tratados, corpulentos e muito eguaes.

Sairam alguns maus na verdade, mas não se deve ser tão exigente que se queira os 12 bois todos bravissimos. O 1.º nobre, bravo e voluntario ao castigo; o 2.º e 3.º bravos, o 4.º rasoavel e o 6.º bravo e dando boa lide.

Na segunda parte tambem houve alguns que sairam muito bons.

Em resumo cumpriram, e tomara o publico que nas restantes corridas lhe apresentem sempre touros como os do domingo. Por isso damos os parabens ao sr. Maximo Falcão, e quando cá mandar touros, que os maus, sejam sempre como aquelles.

Forcados. - Apenas merece citar se a valente pega de costas feita pelo pegador Manuel Fressura que causou grande enthusiasmo, pela forma com que se aguentou aos derrotes.

Direcção. - Por vezes um pouco dorminhoca. Com o serviço das capas continua na mesma mas as ordens terteminantes que receben da empreza: - como noticiamos n'outro logar - assim como os bandarilheiros, devem acabar com esses abudos. Veremos e tomaremos nota.

Em resumo foi uma boa corrida e o publico saiu plenamente satisfeito.

D. JOSÉ TENORIO

In A TOURADA, Lisboa - 13 de Maio de 1894