12 DE MAIO DE 1904 - LISBOA: A MORTE DO CAVALEIRO FERNANDO DE OLIVEIRA


CORRIDAS & DRAMAS

Neste princípio de século outro facto ficaria a assinalar o toureio equestre da nossa terra: a morte de Fernando de Oliveira, ocorrida na praça do Campo Pequeno na tarde de 12 de Maio de 1904.

É natural, é certo mesmo, que tenham sido vários os desastres mortais verificados no toureio que vitimaram cavaleiros. Durante alguns séculos de prática, vários nomes devem ter ficado no caminho com as vidas decepadas pelas hastes dos toiros. A notícia desses desastres perdeu-se, contudo, na distância a que foram ficando, mas tudo leva a crer que raras figuras de relevo tenham tombado nas arenas, porque assim como se conhecem os desastres que vitimaram em Espanha o Marquês de Pozoblanco, retirado da praça já sem vida, e D. Diego de Toledo, filho do Conde de Alba, falecido em consequência de uma colhida, também se conheceriam os que a Portugal dissessem respeito. Desta forma e encarando com as devidas reservas a versão que chegou até à actualidade, parece pertencer ao Conde dos Arcos, filho do Marquês de Marialva, o primeiro desastre de vulto histórico ocorrido no toureio nacional.

Mais tarde, por volta de 1866, a praça da Nazaré era testemunha de outro desastre impressionante, pouco conhecido e lembrado pela modesta categoria do lidador que, só através do sacríficio da própria vida conseguiu passar à posteridade. Foi o cavaleiro Maradas que um toiro de Francisco Bate-folha trespassou, pondo termo a uma carreira humilde como as que mais o foram. Fernando de Oliveira, pelo contrário, era um nome de relevo na tauromaquia nacional e porque é, a bem dizer, uma figura contemporânea, esse facto dá uma presença ainda impressionante ao desastre ocorrido nessa tarde de Maio, na arena lisboeta. Por isso, o relevo que tomou a tragédia perante a história tauromáquica de Portugal e, sobretudo, nos anais da praça do Campo Pequeno.

Corriam-se toiros do Marquês de Castelo Melhor e de Vitorino Fróis, cinco de cada ganaderia. Com Fernando de Oliveira toureavam a cavalo José Bento de Araújo, Simões Serra e Joaquim Alves. Ambiente de alegria, enriquecido com a presença da Família Real.

O primeiro toiro, de Vitorino, foi lidado por José Bento de Araújo, saindo para o segundo Fernando de Oliveira, montando o seu cavalo Azeitona, que o toureiro havia comprado a Pinto Barreiros. Quando entrou na praça o toiro do Marquês de Castelo Melhor, número trinta, Ferrador de nome, causou espanto a sua corpulência. Mas não era verdadeiramente bravo. Dava até sintomas de já conhecer a lide, talvez em resultado da retenta a que fora submetido com o fim de o destinarem para semental. Fernando de Oliveira conseguiu prender-lhe o primeiro ferro à custa de lhe pisar os terrenos. Castigado, o toiro tornara-se mais perigoso ainda, e quando o cavaleiro tentou nova sorte, desta vez à meia volta, arrancou com furioso ímpeto, e, apanhando a montada pelas pernas, ergueu-lhe a garupa, foçando o cavaleiro a ser lançado ao solo. A queda fora desastrosa e o cavalo cairia também, embrulhando-se toureiro e montada ante a decidida investida do toiro. Surgem os toureiros ao quite, o cavalo corre desordenadamente pela arena, mas Fernando conserva-se no solo, inanimado. Surge a impressão da tragédia irremediável, o que poucos momentos depois se confirmaria.

Não é fácil, nas circunstâncias em que o desastre se deu, pormenorizar a acção até se apurar o golpe que terá vitimado o toureiro. Como geralmente acontece em casos desta natureza, as opiniões foram diversas. Diziam uns que o toiro não chegou a alcançar o toureiro que, caindo desamparadamente no solo, teria sofrido a fractura da base do crânio; afirmavam outros que essa fractura fora provocada pela pancada de um estribo; garantiam outros ainda que o cavalo, ao levantar-se, teria atingido o cavaleiro com um coice, e, por último, houve quem asseverasse que após a colhida, pretendendo levantar-se, Fernando de Oliveira esteve um momento de joelhos, o suficiente, porém, para que o toiro investisse, tornando irrmediável o desastre. Escassos dias depois, mas quando a surpresa dos primeiros instantes já havia passado, permitindo a análise serena dos acontecimentos, uma publicação lisboeta referia por esta forma a trágica ocorrência:

'Estrugia a praça de aplausos, levantava-se o público ante o donaire do cavaleiro que, na sua montada côr de azeitona, direito, elegante na casaca encarnada bordada a prata, recebeu a farpa que lhe entregava o bandarilheiro espanhol Currinche. Fernando de Oliveira veio fazer os cumprimentos a S.S.M.M. e correu a aguardar o toiro à gaiola.

O bicho era castanho, de um tom torrado, com bragas no ventre e grande.

O cavaleiro perdeu a sorte de gaiola, mas veio com valentia à meia volta, saiu em falho e fez outra sorte, cravando um magnífico ferro à tira, o que causou delirante entusiasmo.

De novo a praça estrugiu em aplausos; ele, na sua veste vermelha, aquecido pela ovação, quiz apertar o bicho que se encolhia em frente do sector seis, sombra-sol, para onde o cavaleiro se dirigiu, a citá-lo de novo em voz rija. Rematou então a sorte em meia volta e cravou o ferro. Mas neste momento o toiro investiu de novo, para os vultos, Fernando de Oliveira ficou a descoberto e o animal continuou a marrar furiosamente contra ele, enquanto dois espanhois, com as capas, buscavam distrair a fera.

O artista foi, finalmente, levantado: tinha o crânio fracturado, dizendo-se ter sido o cavalo ao erguer-se que o calcara com uma das ferraduras.'

Fosse como fosse, nessa tarde de 12 de Maio de 1904, a tauromaquia portuguesa vestia crepes pela morte desse valente toureiro, que soube cativar a simpatia de todas as classes sociais e a admiração dos exigentes, pelo seu correcto toureio e pelas invulgares qualidades de equitador.

A felizmente rara frequência destes desastres envolve a figura de Fernando de Oliveira numa auréola de prestígio, com a qual perdurará na memória daqueles mesmo que não o conheceram. Fica como um símbolo.


É fácil de compreender quanta influência terá exercido nos sectores tauromáquicos a mudança de regime verificada em Portugal em 1910. As circunstâncias em que surgia a República, saída de um movimento revolucionário, estabelecia um ambiente em que toda a hostilidade parecia de menos contra os antigos hábitos e as velhas tradições. Verificava-se como que a necessidade de estabelecer uma sociedade nova, assente em novos hábitos, e o toureio, como expressão fidalga e tradicional, seria atingido da forma mais incisiva. Os toureiros da nobreza, que mantinham a pureza dos sistemas e das intenções, viram-se coagidos a afastarem-se das arenas, onde, sem contrôle, os profissionais deram largas a uma liberdade e transigência que afastaria o toureio a cavalo da sua verdadeira expressão artística e técnica. Por sua vez, as empresas, sem ter a quem verdadeiramente respeitar e sedentas de lucros, tornariam mais frequente ainda a utilização dos toiros corridos - o que já se vinha observando anteriormente - e o toureio equestre teve de rever sistemas aplicáveis a tal espécie de toiros, que exigiam uma técnica muito especial. E a lide a cavalo decaiu mais ainda, não tanto no entusiasmo que despertava, como na sua secular expressão. Justamente pela transcendente compreensão a que obriga, o público aceitava-o assim mesmo e até constituía motivo de aplauso o saber-se que um lidador enfrentaria um toiro cujo passado já se conhecia, através das provas que dera.

Estas afirmações não pretendem regatear méritos aos cavaleiros que então ficaram em actividade, porque é absolutamente crível que nomes como o dos Casimiros, José Bento de Araújo, Eduardo de Macedo e outros, tivessem sido tão grandes como os maiores se o ambiente em que exerceram o toureio os obrigasse ao respeito por regras tradicionais que se achavam quase olvidadas, apesar da lição trazida pelo portentoso Vitorino de Avelar Fróis e da mal esboçada continuação observada em Joaquim Alves, ao que parece discípulo do grande mestre. Mas é evidente que se originariamente o toureio equestre assentou em princípios que levaram a não considerar o toiro como uma fera, mas apenas como um vulgar adversário, ante o qual se deviam pôr em jogo valentia e lealdade (atributos que o próprio toiro ostenta quando puro), seria falseado na sua essência desde que houvesse de enveredar por aqueles caminhos a que obrigava a lide de reses corridas.

Por outro lado, o estado de atraso em que se mantinha, de uma maneira geral, a criação do gado bravo destinado às lides, também não proporcionava grandes elementos para que se tivesse presente aquele princípio de lealdade, segundo o qual 'mais valia perigar esperando do que ferir fugindo'. E, assim, o que mais de frente se fazia por então era a tira, a maior parte das vezes marcando-se tão pronunciadamente a curva de entrada que a sorte perdia grande parte da sua natural beleza. Tanto assim era que, num juízo crítico do cronista António Rodovalho Duro (Zé Jaleco), referente a 1911, pode ler-se este apontamento curioso: 'O Toureio a cavalo é, geralmente, executado apenas para armar ao efeito; pica-se de todas as maneiras, sem defender os ginetes, que se sujeitam a tremendas colhidas, não obstante fazerem-se os remates das sortes livres de cacho, isto é, quando o cavalo tem passado a cabeça do toiro'.

Contrariamente ao que hoje acontece, apesar do entusiasmo público rodear e favorecer o toureio montado, este atravessou, por essa altura, um período de decadência naqueles aspectos que o ligavam à tradição e intenção, que desde os mais remotos tempos orientavam a maneira de agir contra um toiro desde uma sela e que determinavam o combate frete a frente, sem disfarces ou qualquer possibilidade de lançar mão a recursos menos airosos, que aliás as próprias regras condenavam com tal veemência que o tentá-lo atingiria irremediavelmente a honra do cavaleiro.

Mesmo em tais condições, alguns cavaleiros puderam marcar uma presença honrosa, entre os quais é justo destacar Manuel Casimiro de Almeida, que fora emulo de Fernando de Oliveira nessa luta de partidos que animou a tauromaquia nacional do princípio do século, José Bento de Araújo, que procurava em qualquer circunstância, o bom sentido do toureio, e, sobretudo, José Casimiro, que, embora distanciando-se um tanto dos moldes clássicos do toureio a cavalo, alcançou extraordinária fama, marcando uma época de brilhantismo e entusiasmo, assente na comunicativa alegria e juventude que haviam de caracterizá-lo até aos derradeiros dias da sua carreira, como se sobre si não passassem os anos.

In ILLUSTRAÇÃO PORTUGUEZA, Lisboa, Ano I, nº 29 - 16 de Maio de 1904