15 DE JULHO DE 1894 - SÃO MIGUEL E TERCEIRA : OS TOUROS DE CORDA NOS AÇORES

 
Biblioteca nacional de Portugal

Touros de corda

            É do formoso livro acabado de sahir do prélo — «As ilhas de S. Miguel e Terceira», por J. V. Paula Nogueira — que extractamos a pittoresca descripção de uma tourada nos Açores.

            Tem vida e côr essa pagina litteraria que offerecemos aos nossos leitores friands de bons bocados.

            O livro é todo um primor de estylo e de observação ligeira.

NOTA : O livro «As ilhas de S. Miguel e Terceira» de João Viegas de Paula Nogueira (1859 - 1944), catedrático do Instituto de Agronomia e Veterinária,  foi publicado pela Administração do Portugal Agricola Lisboa (Lisboa), em 1894. O texto original (pdf) pode ser obtido gratuitamente aqui:

https://dn790007.ca.archive.org/0/items/asilhasdesmiguel00nogu/asilhasdesmiguel00nogu.pdf

            «Touradas na Ilha Terceira ! O espectaculo mais querido de portuguezes e hespanhoes reproduzido com o maximo enthusiasmo n'este rochedo perdido em meio do Atlantico ! E touradas de corda, essa original variante que os terceirenses souberam imprimir nas touradas !

            Pois não ha festa mais popular, mais concorrida na Ilha Terceira do que uma tourada de corda !

            Dá uma aldeia a sua tourada : accode gente de todos os cantos da ilha, abandonando os trabalhos dos campos e os misteres caseiros.

            Vamos tambem com o leitor tomar parte na alegre caravana que desfila ao longo da estrada, para assistir á tourada de corda na freguezia da Fonte do Bastardo, tres leguas a nordeste de Angra do Heroismo.

            A estrada não pode ser mais pittoresca.

            Passa-se primeiro a aldeia da Ribeirinha, vendo-se em frente da costa o Ilheu das Cabras, antigo cone vulcanico de cratera ébréchée.

            A um lado e outro da estrada alinham-se as casas campestres, bem caiadas, com suas listras azues. amarellas e vermelhas, o pateo á frente ou ao lado, atraz o forno e a cisterna.

            Nos cerrados adjacentes levantam-se no outomno as barras e os escalões, de milho, curiosas construcções feitas de paus de castanho em que se suspendem aos molhos, a seccar, as maçarocas, aqui chamadas sacos de milho.

            Tambem se vê o milho a seccar sobre os muros de basalto, sobre os beiraes dos telhados, e mais pittorescamente pendurado nos ramos dos choupos, á beira da estrada sem receio dos ladrões, gente desconhecida n'esta ditosa ilha.

            Ladeia-se depois o proto judeu e atravessa-se a ex-villa de S. Sebastião, para se entrar, emfim, na aldeia da Fonte do Bastardo.

            Casas rusticas formando na estrada uma rua principal e algumas travessas estreitissimas, balcões de pedra em frente da porta, e um theatro do Espirito Santo, mais elegante e pintalgado que os de S. Miguel, encimado por uma bandeja com a corôa e a pomba symbolica, tendo abaixo a invariavel legenda — Gloria ao Divino.

            Já o povo se agita e vozeia, mal cabendo na estreiteza da estrada, em frente do improvisado touril de madeira. Quasi todos esses brqavos camponezes estão descalços, mas vestem uma camisa irreprehensivelmente lavada, collete, jaqueta e calças de panno tecido caseiramente na ilha, e na cabeça trazem chapeus, em vez de barretinho de malha, mais vulgar na região d'oeste. Cada homem vem sempre armado de um longo varapau ferrado.

            Nas janellas, no theatro do Espirito Santo e nos balcões em frente das portas chusmam as mulheres garridamente vestidas de côres vistosas, em que domina o rosado e o vermelho. Rostos ovaes, de feições regularissimas, olhos e cabellos negros, tez córada — representam bem o typo peninsular.

            Sobre os telhados tremulam bandeiras, e n'um coreto uma phylarmonica espera silenciosamente que a festa principie.

            Annuncia-se o curro. A multidão agita-se ; e, mal assoma o primeiro touro ao cimo da rua, eis todos esses valentes em precipitada fuga, fazendo ondear por sobre as cabaças os seus longos varapaus. As mulheres casquinam risadas nas varandas e janellas. Mas logo os touros passam n'uma nuvem de poeira, entrando de roldão no recinto do touril.

            Concluida a embolação, estouram os foguetes, rompe a musica e abre-se de novo a porta do touril, deixando sahir uma comprida corda segura por quatro robustos rapagões. No outro extremo da corda vem um touro enlaçado nas pontas.

            A multidão, que tornara a approximar-se, desata em nova corrida em presença do touro, que espavorido foge pela estrada, arrastando comsigo a corda e os homens que a seguram.

            Mas os da corda depressa põem termo á fuga do touro, obrigando-o a parar por meio de um violento sacão — a pancada, como alli lhe chamam e o animal arre3fece a carreira, tornando para junto do povo já então recuperado do seu primeiro susto e alinhado ao longo das paredes, nos vãos das portas e nas embocaduras das estreitas ruas transversaes.

            Todos estes tioureiros de occasião enristam os varapaus contra as provaveis investidas do touro, o qual no emtanto excitam por meio de vozes e estridentes assobios.

            O animal pára indeciso atordoado pela vozearia ; mas logo se decide e investe com o grupo mais visinho, fazendo saltar os varapaus, que vôam em estilhaços ; e se mais longe não leva o seu furor, é porque detraz o provocam a golpes de bordão. Revira-se, porém, e arremte contra os provocadores, levando-os de si ás marradas e fazendo-os entrar precipitadamente e de tropel pela porta mais proxima, causando ás vezes pasmo vêrcomo aquella rolha humana teve elasticidade sufficiente para de chofre transpôr tão estreitos humbraes !

            Fervem as risadas ; estrugem as vozes : das janellas e balcões agitam-se lenços, e o touro prosegue na sua furia, forçado de quando em quando a voltar, e chegando até a cahir sob o violento impulso da pancada que subitamente lhe vibram.

            Exgotada a energia do primeiro touro, é recolhido ao touril, seguindo-se outro e terceiro e quarto, com mais ou menos episodios, sempre no meio da mais franca alegria d'aquelle povo ruidoso, mas bom, que nas touradas de corda encontra gratuitamente uma diversão — porventura demasiadamente repetida — á sua labutação quotidiana.

            Taes são as touradas de corda, que as juntas de parochia prodigalisam ao povo terceirense, quando não é o influente eleitoral que philantropicamente concede esse prazer ás freguezias cujos votos lhe é mister captar.

            Na cidade de Angra as touradas de corda não são, nem podiam ser, permittidas, mas ha os touros de praça, em recinto para isso reservado, onde concorrem todas as classes (da ?) sociedade angrense.

            Sendo tão vulgares na Terceira as touradas não admira que na ilha haja numerosos creadores de gado soi diant bravo, o qual vive permanentemente isolado nos mattos em recintos chamados creações

In A TOURADA, Lisboa - 15 de Julho de 1894