1898 – AS TOURADAS EM PORTUGAL NO LIVRO «LISBOA D’OUTROS TEMPOS – FIGURAS E SCENAS ANTIGAS» DE PINTO DE CARVALHO (TINOP), LIVRARIA DE ANTONIO MARIA PEREIRA, LISBOA (BNP)

 


Biblioteca nacional de Portugal

GARRACHÕES E BANDARILHAS

Muito haveria que dizer ácerca das touradas em Portugal, que teem tido como amadores enragés alguns dos nossos reis e dos nossos principes. Assim, D. Sancho II era toureiro, e D. Duarte corria touros a cavallo em pello e sem arreios, e até ensinava, na sua obra, um golpe para alancear os touros. D. Affonso V apreciava immenso os combates taurinos, e os que, no seu reinado, se realisaram em S. Christovão e na Rua Nova deixaram fama. D. João II tinha-os egualmente em grande predilecção. D. Sebastião era um insigne toureador, tanto que, n’uma corrida em Almada, fez melhores sortes que o marquez de Torres Novas, o que deu grande contentamente á rainha. No seu tempo correram-se touros no Terreiro do Paço.

            Há mais referencias a corridas durante este reinado nas Memorias para a Historia del Rei D. Sebastião, de Diogo Barbosa Machado, e na Historia Sebastica de Fr. Manoel dos Santos.

            Quando o rei Felippe II de Hespanha veiu a Portugal, houve festas e touradas em Lisboa, picando o alguazil da Côrte, Pedro Vergel, a quem Lope de Veja chamava el mejor mozo de España. Superfluo seria dizer que os divertimentos taurinos constituiam e constituem o supremo divertimento castelhano. Pan y toros ! Eis o grito que ainda se ouve dos Pyreneos aos Cantabricos e á Sierra Nevada. Por isso foi em vão que a bulla de Pio V fulminou com a pena d’excommunhão a todos os que assistissem a esse espectaculo sangrento.

            O principe D. Pedro, filho de D. João IV, foi notavel amador tauromachico, D. Affonso VI toureou no pateo d’Odivellas, e D. Pedro II pegava bois á unha, batia o pé aos cornupetos com a insolencia d’um desafio.

            D. Miguel era o typo perfeito do aficionado. Como o rei de Hespanha seu contemporaneo, Fernando VII, dispensou grande protecção a este genero de divertimentos e aos seus cultores. A praça que fez levantar na Quinta Velha, ou da Bemposta (junto á Tapada e confrontando com a antiga travessa do Pintor), era toda de cantaria grosseira, tendo pouco mais do que a altura d’um homem, com uns esconderijos para refugio dos lidadores, e uma grande janella de sacada oara a Familia real assistir á lucta.

            As tardes de touros no tempo de D. João V eram cheias de bulicio e de ruidos, como se conclue da simples leitira do Pinto Renascido, que descreve as touradas em que vinham touros de fogo, sahiam os gigantes, as dansas, as deusas eem carros puchados por mulas, em que os baetas apanhavam boléo bravio e em que até appareciam panellas com pombos para se atirarem, levando cada um deu mote debaixo da aza :

Fugindo venho a meu mal,

Esconda-me, por quem é,

Debaixo do guarda-pé,

Que o donaire é um pombal.

 

Eu escapei d’escopeta,

Livrei de quem mais me enlaça ;

Sentirei fugir da caça,

E vir a dar em baeta.

            Temos ainda outro importante testemunho contemporaneo. É a Arte de Tourear dedicada ao Apólo do Terreiro do Paço, em que o auctor, depois de dar varias indicações para o toureio a rojão e á espada, acaba por pedir uma nova Postura ao Senado, pela qual fossem punidos os bulhentos e os outros. Assim devia soffrer castigo todo o que fizesse algazarra e atirasse com cascas de melancia aos baetas ; todo o que ourinasse (!) em camarote por baixo do qual estivessem homens de cabelleira : toda a que visse a festa de camarote por secia e fosse para casa, ficando sem ceia ; todo o que alugasse sege a mulher-dama para ir aos touros, e ella fosse á pata : toda a regateira que rogasse pragas ao netto : etc.

            Parece que as regateiras e outras pessoas costumavam soltar muito a lingua n’estas funçanatas.

            N’este mesmo reinado deram-se corridas de touros em diversos sitios nas proximidades de Lisboa.

            Nas de Pedrouços tomaram parte o marquez de Tavora, o duque de Cadaval, seu sobrinho o marquez de Tavora, o duque de Cadaval, o seu sobrinho o marquez d’Alegrete, Manoel de Mattos, monteiro mór de Coruche, D. Antonio d’Almeida e Fernando José da Gama Lobo. As de Belem, em que entravam cães de fila, eram concorridas das senhoras da côrte. As da Junqueira (1738 1741) foram dadas pelo duque de Cadaval.

            No reinado de D. José tambem as corridas taurinas estiveram em muito apreço.

            Em Queluz realisaram-se algumas sob a direcção do marquez de Marialva, tomando parte n’ellas o Antonico e outros picadores da Casa Real, segundo refere o marquez de Rezende no Panorama. Nas corridas de Santarem picou o famoso cavalleiro José Roquette, que tambem toureou no Terreiro do Paço.

            Em Salvaterra davam-se touradas reaes (em que chegaram a haver combates de touros com javalis), caçadas aos javardos, que iam de Pancas em gaiolas, tiro aos pombos, e caça aos falcões e gerifaltes. A Familia Real era conduzida para alli em bergantins.

            Em 1754 deram-se combates de touros no Rio de Janeiro, e em 1761 na Real Praça de Belem, picando Carlos Antonio Ferreira, alferes de cavallos, Miguel Moreira, capitão da Ordenança da Côrte, Carlos Antonio Xavier e Antonio José Xavier.

            No reinado de D. Maria I as touradas não tiveram grande importancia. Verdade é que se realisaram algumas no Terreiro do Paço, em 1777, festejando a sua acclamação, e em 1795 celebrando o nascimento da priceza da Beira.

            A esta ultima vieram picar os hespanhoes Bertholdo Ximenes e o celebre Pedro Romero, o competidor de Pepe Hillo, que veio ganhar dois contos de réis. Foram o marquez de Marialva, D. Diogo, e o conde d’Obidos, que fizeram a medição das bancadas nos palanques para as fidalgas.

            Por occasião de casamento ou baptisado de pessoa real havia sempre combates de touros, que, no dizer de Latino Ceolho, eram n’aquelles tempos a expressão mais grata e popular do regosijo nacional.

            Como já dissemos, bastantes corridas de touros se realisaram no Terreiro do Paço, onde eram previamente annunciadas por meio d’um mastro que ahi se erguia, muitos dias antes das funcções, e onde depois se afixava o edital com os detalhes da festa.

            No Rocio fizeram-se touradas até 1755. N’uma relação existente nos Manuscriptos da Secção Pombalina da Bibliotheca Nacional conta-se d’uma tarde de touros, e, referindo-se aos dois ultimos, diz-se :

Um e outro era manso e era caseiro,

Podiam ser amantes d’um mosteiro ;

Não vi touros jámais tão bem soffridos,

Bofé que os desejei para maridos.

            A corrida repetiu-se n’uma sexta feira, e n’ella morreu um forcado chamado o Caróla, que a todos deixara assombrados nas festas de Madrid.

            Nos antigos combates de touros empregou-se primeiro o venabulo de caça ou a lança, e, depois, o rojão e a espada. A lança transformou-se no garrochão e na garrocha, e esta na farpa do cavalleiro e na bandarilha do capinha. O garrochão servia para matar o touro, a garrocha para farpeal-o.

            O toureio a pé era considerado deshonroso, era o castigo infligido ao cavalleiro ou rojoneador que se deixava desfeitar pelo touro. Por isso este lidador não devia desconhecer aquella sorte de lide, visto que se lhe tornava necessaria para se desaffrontar do enxovalho recebido.

            O poema Os Toiros, apresentando as regras da arte, diz :

Outro preceito impõem. Se o Combatente

Perder cilha, chapéo, perder cavallo,

Posto a pé, dispa a espada ; então valente

Chame o Toiro incivil, vá castigallo.

Encontra-se noticia da existencia d’algumas praças de touros no seculo passado a principios do actual : a de Valverde (antigo Passeio Publico), a do Campo Pequeno, a de Belem, a da Estrella, a do Campo de Sant’Anna, além da do Salitre.

            José Baretti, italiano de Turim, que visitou Portugal em 1760, publicou umas cartas curiosissimas, em que fala da praça do Campo Peuqneo. Descreve uma tourada a que alli assistiu, e conta que, depois da morte do oitavo ou nono touro, houvera uma algazarra atroadora, uma balburdia medonha, em que os espectadores se lançavam na arena, e que, infallivelmente, haveria enormes desgraças a lamentar, se o rei não tivesse acenado com o leque para aquietar os animos, e a rainha e as princezas se não tivessem debruçado do camarote, fazendo signaes para que o publico se acalmasse.

            Soube-se depois que o tumulto fôra provocado por uns gatunos que gritaram : Terramoto ! Terramoto ! a fim de se aproveitarem do teror e da confusão consequente que tal grito produzia n’aquelle tempo.

Achámos um documento relativo a este motim. É a portaria de 6 d’Agosto de 1760, assignada por Francisco Xavier de Mendonça Furtado e dirigida a Gaspar Ferreira Aranha. Diz que a Sua Magestade se fizera muito estranha a desordem que no domingo proximo passado houvera na Praça do Campo Pequeno, causada pelo pouco cuidado na construção dos palanques, razão por que estiveram em perigo muitos dos seus vassallos. Mandava que o tenente-coronel Carlos Mardel e o capitão Caetano Jeronymo examinassem, na presença de todo o Senado da Camara, os palanques e camarotes da referida Praça, fazendo demolir os que não estivessem seguros, e que os empreiteiros que os haviam fabricado e os mestres que os deram por bons fôssem todos presos debaixo de chave no Limoeiro, onde se lhes abriria assento á ordem de S. M.

Temos ainda dois folhetos que se referem a esta praça. Um intitula-se Primeira Assembléa que fizeram os interessados em o festivo combate de touros que se há-de fazer na Praça do Campo Pequeno, Domingo 13 do corrente mez de Julho de 1760. Dada á luz por J. J. de J. R. e S. in-34.º de 8 pag. O outro é o Romance joco-serio. A Antonio Valente que nas duas tardes em que toureou no Campo Pequeno fez maravilhas (Setembro 1741) in-fol 1 pag.

            Como prova da existencia da Praça de Belem temos este documento :

«Para o conde Almirante.»

            «S. M. é servido que V. Ex.ª na primeira e terceira tarde de touros que se hão de fazer na praça de Belem, a vá alimpar com os soldados da Guarda na forma praticada em semelhantes occasiões. Deus guarde a V. Ex.ª Paço em 23 de Setembro de 1761.

Francisco Xavier de Mendonça Furtado.»

A portaria de 18 de Maio de 1763 refere se á Praça da Estrella, quando diz que as religiosas do mosteiro de Sacavem, precisando de dinheiro para acabar a capella do convento, pediam que lhes fôsse concedido dar seis festividades de touros em qualquer dos sitios da Estrella ou de Campo d’Ourique. Receberam auctorisação, ficando o Senado obrigado a superintender na construcção dos palanques.

Podemos citar mais o folheto que se occupa d’esta praça de touros e que se intitula : Nova Relação e verdadeira noticia exposta ao publico, das magnificas e vistosas festas de touros, que se hão de celebrar no sitio do Casal da Estrella com a mais luzida, e grandiosa pompa este presente anno de 1763… em obsequio do senhor D. José Principe da Beira… sendo author d’estas festividades Francisco de Mattos Ferreira Souto. Lisboa, Offic. De Ignacio Nogueira Xisto, 1763, in-4.º

No seculo XVIII existiu praça de touros no Campo de Sant’Anna. Já vimos uma noticia descrevendo uma tourada que ahi se realisaria, a ultima das seis que o Senado concedera n’aquelle anno. Entravam como contendores Angelo Borges de Carvalho Castello Branco, couteiro Regio das coutadas extra-muros, Antonio José d’Araujo Garamato e José Soares Maduro. Fazia um intervallo o Côxo de Benavente. N’essa tarde deviam morrer vinte touros, haveria dansas de mascaras hollandezas, um gigante e dois macacos.

            Na Bibliotheca Nacional de Lisboa há um folheto que trata d’esta praça. É a Relaçam preta d’uma festividade branca ou (mais claro) retracto em papel branco por um pincel de azeviche e delineação do applauso dos seis dias de touros, que estão proximos a cair, ou propincos a executarem-se na Praça de S. Anna d’esta Corte de Lisboa. Lisboa. Offic. De Caetano Ferreira da Costa. 1767. In-4.º de 8 pag. em verso.

Depois d’esta existiu outra no Campo de Sant’Anna, e no mesmo local onde esteve a que ultimamente demoliram. Em Março de 1808, Caetano Benci, director d’uma companhia de bailarinos de corda, requereu a Mr. Hermann, queixando-se do procedimento de Francisco José de Carvalho, a quel sublocara a praça do Campo de San’Anna, e pedindo que o sublocante o indemnisasse dos prejuizos e lhe restituisse a chave. Já depois d’expulsos os francezes, o mesmo Benci pediu á Intendencia para trabalhar com a sua companhia na citada praça. Mas o aviso de 6 de Outubro de 1808 negou lhe a licença.

A moderna praça do Campo de Sant’Anna tem a seguinte historia :

José Maria Pimentel Bettencourt, que já tivera a praça de Buenos Ayres, e a do Poço dos Negros (em 1808), pediu em 1824 para edificar outra n’uns terrenos situados por detraz da egreja de S. Mamede, a qual receberia o nome de Real Praça do Senhor Infante. Mas os acontecimentos politicos da epocha impediram-n’o de levar a effeito o seu designio. Em 8 de Janeiro de 1828 requereu ao Senado para este lhe aforar o terreno do Campo de Sant’Anna, onde já estivera uma praça de touros. O Senado deferiu, mandou proceder á medição do terreno e ao exame do risco da praça e tribuna real, mas exigiu o beneplacito regio. As plantas e alçados baixaram da Secretaria do Reino á Intendencia, e, em Julho de 1829 ainda não havia resolução alguma, do que Bettencourt se lamentava.

Aquella tentativa abortou. Antonio Joaquim dos Santos, administrador da Casa Pia, pediu então para construir a praça, o que foi auctorisado por decreto de 30 de Julho de 1830. O Senado da Camara fez proceder á medição do terreno, e arbitrou o fôro, mas exigiu tambem o direito dominical de ter alli um camarote. A resolução de consulta de 21 de Março de 1831 decidiu n’estes termos : — «Como parece ao Senado, fazendo aquelle abatimento no fôro que merece a Casa Pia, e escusado, quanto ao camarote, por deverem pagar todas as pessoas que concorrerem ao espectaculo que prepara.»

            Os mestres d’obras queriam quarenta contos de réis pela construção, mas a Casa pia teve licença para fazel-a por sua conta, e importou, apenas, em 22.455$931 réis.

            Foi inaugurada por D. Miguel e sua irmã, a infanta D. Maria d’Assumpção, em 3 de Junho de 1831, 3.º anniversario da entrada do exercito realista do general Povoas no Porto.

            A praça do Campo de Sant’Anna cahiu sob o camartello demolidor em 1889, e ainda há pouco (Fevereiro de 1897) o ministerio do Reino officiava ao das Obras Publicas a fim de que a Casa Pia fôsse desonerada do pagamento de 40$000 réis de fôro, que ella dava á Camara Municipal pelo terreno, que está hoje na posse do Estado.

            Quanto á praça do Salitre não podemos fixar, no certo, a data da sua construção, mas podemos dizer que é d’entre 1777 e 1780, porque um aviso de 6 d’Outubro d’este anno diz que João Gomes Varella não devia consentir jogos alguns dos prohibidos, nem outro divertimento mais que o dos Touros, para que lhe fôra concedida licença pela Rainha. No anno immediato apparece Pedro Antonio Favery querendo dar divertimento de sortes na praça do Salitre, o que não lhe consentiram, porque só tinha permissão para touros. E, no mesmo anno, o Pina Manique ameaçou o Varella de que o castigaria, se annunciasse espectaculos para os quaes não tinha licença.

            No theatro contiguo subiu á scena em 1787, no beneficio do dansarino Perini, um entremez de José Daniel intitulado A Arte de Tourear.

            Em 1798 tomou parte nos brincos de touros (como tambem lhe chamavam) o cavalleiro João Antonio Maria Gambetta, assaz conhecido. E o Favery, que então se dizia «mestre de florete e dos combates do real theatro de S. M.», dava corridas com premios, e onde havia combates de touros com cães de fila.

A praça do Salitre passou em 1788 para Antonio Gomes Varella, que, em 1803, apparece dono do theatro. Antonio Gomes Varella enforcou-se na tarde de 12 de Novembro de 1823.

            Succedeu-lhe na propriedade da praça seu filho João Gomes Varella, picador de D. Miguel, que em 1829 dizia haver succedido aos seus maiores no dominio d’um prazo de livre nomeação, em que elles haviam levantado a praça do Salitre. Por morte d’elle pertenceu a sua mulher, D. Josepha Varella, filha d’Antonio Serrate.

Ainda era ella a proprietaria em 1852, quando pedia para dar corridas de novilhos á moda hespanhola.

Na praça do Salitre davam-se touros de morte. Sabemos que, em 1826, em cada corrida de doze bichos, quatro eram mortos. A carne vendia-se em beneficio da Casa Pia. N’este anno tourearam ahi os hespanhoes José Rodrigues, matador d’espada e seu filho Pedro Rodrigues.

A Casa Real fornecia gado para as cortezias. Um officio da Casa Pia ao marquez d’Alvito, estribeiro mór, pedia dois cavallos para cortezias, uma azemola para o caixote dos rajões, e duas parelhas de muares para arrastarem os bois depois de mortos.

As corridas deviam proporcionar soffriveis lucros ao emprezario. Basta vêr que para a tarde de 4 d’Agosto de 1822 se vebderam 2,394 bilhetes d’embolação a 40 réis, 62 camarotes por 240$000 réis, 1.172 bilhetes de sombra a 480 réis, e 2.441 de sol a 240 réis, e mais quatro por 76$800 réis. Um mappa de receita e despeza calculava o lucro provavel para a Casa Pia , durante o anno de 1822, na quantia de 2.400$000 réis.

O decreto de 9 Setembro de 1821 tornou privativas d’este estabelecimento de caridade as corridas de touros em Lisboa. Mas, algumas vezes, aconteceu não receber os direitos que lhe pertenciam.

            A praça do Salitre desappareceu com o inicio das obras para a abertura da Avenida da Liberdade, em 1879.

José Maria Pimentel Bettencourt mandou edificar a praça do Poço dos Negros (á esquina do becco do Carrasco) em 1818.

Destinava-se a companhias d’arquelins, mas tambem serviu para corridas de novilhos.

Existiram mais, pela sua ordem chronologica, os seguintes circos para funambulos e volatins : o de Buenos Ayres, o do Abarracamento de peniche, o da rua do Vigario, o da rua da Procissão, e o de Madrid, no largo d’Annunciada.

O circo de Madrid abriu as portas em 15 de janeiro de 1846, e teve o seu momento de celebridade com a companhia de Avrillon. A Polletti, com alvas espaduas calandradas, a soberbia d’estatua sobre o pedestal, e a fria correcção d’um gêsso, o pequenito Leon trabalhando sobre quatro poneys em pello, o cavallo Phenix amestrado por M. Laribeau, e os prodigios de Mr. Cocchi, constituiram o chamariz. O Rattel era um palhaço d’immensa pilheria, e Madame Cocchi uma formosissima mulher, a quem os janotas se fartavam d’arrastar a aza.

            Mr. Paul Laribeau ganhou uma fortuna, que metteu no banco de Lisboa, fortuna que ficou reduzida a menos de metade, porque veio a Maria da Fonte e pagaram-lhe em notas de 4$800 réis, que apenas valiam então quatro pintos (1$920 réis).

Em 1860 estabelece-se o circo de Price, na rua do Salitre, 31, junto á travessa das Vaccas, e esta creação metteu na sombra todas as velhas reminiscencias gymnastico-acrobaticas. Inaugurou-se na noite de domingo, 11 de novembro d’aquelle anno.

Na companhia vinha, pela primeira vez, a augusta trindade da galhofa : Whytoine, Secchi, e Alfano. Whytoine era dotado d’uma indole tristonha. Recordava aquelle Debureau, o celebre clown francez, que, tendo ido consultar um medico para o curar da sua hypocondria, este, sem o conhecer, disse-lhe :

— Quer-se curar ? Vá vêr Dbureau !

— Ai ! respondia o palhaço, Debureau sou eu ! —

Depois tivemos as esplendorosas pantominas, em que o prato de resistencia eram os combates de Garibaldi e o seu triumpho ao som do hymno :

Viva la Sicilia,

Viva la Toscana.

La lingua italiana,

E la libertà !...

Veio o Leotard, rival do Blondin, veio a companhia do buffo Arderius, veio a Zamacois…

Thomaz Price foi, por espaço de 15 annos, uma figura popularissima de Lisboa.

Era de estatura meã, anafado, cara larga e massiça, olhos pequenitos, tornados ainda mais pequenos á força de os piscar e encolher as palpebras, uma cabelleirinha acompanhando a calva luzidia, e derreava um ludo-nada a cabeça para o lado esquerdo como Alexandre o Grande. Nunca se ria, fallava devagar, tinha no semblante uma bonhomia comica, uma ratice única, e declarára-se em estado de guerra permanente com as doutrinas fuliginosas dos pessimistas, e com a tristeza acida dos mysanthropos. Ninguem como elle fazia estas tres coisas : apostar, avaliar um cavallo pelas orelhas e encher um copo de cerveja. Conta-se que o Voltaire precisava d’uma pitada e d’uma chavena de café para lhe espertar a veia, o Price necessitava d’um só coisa — cervejar.

Thomaz Price foi fulminado por uma congestão, quando estava em Madrid em 1876.

Alas ! poor Yorick ! O bistre e o pó d’arroz te sejam leves !

A diversão das touradas nem sempre foi recebida com boa sombra por parte dos poderes publicos. O marquez de Pombal detestava-a, prohibiu que se corressem touros desembolados, e, por fim, que se dessem combates de touros.

A Regencia do Reino, durante a ausencia de D. João VI, tambem não mostrou melhores disposições. Primeiro consentiu as corridas, com a condição de se não matarem touros, e d’estes serem, apenas, farpeados. Depois prohibiu-as. Borges Carneiro apresentou uma proposta para a extincção das touradas, que foi discutida em Côrtes na sessão de 4 de Agosto de 1821. Travou-se debate em que tomaram parte diversos deputados, entre elles Manoel Fernandes Thomaz que se pronunciou a favor das corridas. E a proposta foi regeitada por 43 votos contra 30. Passos Manoel prohibiu-as por decreto de 19 de Setembro de 1836, que foi revogado pelo decreto de 30 de Junho de 1837.

A corrida de touros é uma diversão eminentemente caracteristica, é o genuino divertimento nacional. Já não possuimos os jogos d’agilidade e de força como no seculo XVI, em que havia a lucta, o jogo da bola ou da pella, o jogo do dardo, o jogo do malhão, o jogo dos mancáces, o jogo da choca, e outros que vemos citados nos Livros das Chancellarias, e que seviam para trenar os homens, para lhes insufflar as energias viris da combatividade. Dos exercicios athleticos com que se avigorava a fibra nacional, a tourada foi o único que nos ficou.

A Inglaterra tem o hippismo, e perpetúa o culto nobre e pagão dos exercicios musculares ; a America do Norte tem os certamens do box, em que os campeões ganham, com simples cavatinas de murro, uma fortuna e uma gloria de tenor. Nós temos o nos-o toureio, que se differença do hespanhol não só pela lide do cavalleiro, mas porque em Portugal é um jogo de destreza, um torneio, emquanto que em Hespanha é um duello de morte.

In LISBOA D’OUTROS TEMPOS – Figuras e scenas antigas, Pinto de Carvalho (Tinop) ; Livraria de Antonio Maria Pereira — Editor ; Lisboa ; 1898.

FONTE : Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) - Lisboa.