15 DE JULHO DE 1891 - PARIS: UMA TOURADA VISTA COM OLHOS DE VER... POR UM BRASILEIRO (na imprensa brasileira)

 

Biblioteca nacional do Brasil

JORNAL DO AUSENTE

PARIZ, 15 de julho.

No que diz respeito a surpresa, a minha foi completa. Fazendo corpo molle, como quem sabe que vai ver cousa que não vale a pena, fui assistir á tourada.

Pois sempre lhes digo que não perdi o tempo. A praça é esplendida, grande, rica, espaçosa (15,000 espectadores), commoda, e coberta, podendo funccionar, portanto, mesmo em dias de chuva.

No genero do que já tinha visto, vi o cavalleiro portuguez José Bento de Araujo, elegante, airoso, arrojado, mettendo bem ferros curtos, defendendo perfeitamente o magnifico animal que montava. Um dos touros devia ser lidado por uma cavalleira, Mlle. Marie Gentis, que appareceu na arena acompanhada pelo cavalleiro (José Bento de) Araujo, seu mestre.

A boa rapariga, que aliás monta perfeitamente a cavallo, não fez cousa que prestasse, e a gente a desculpal-a. A principio, era o touro que não prestava, não dava sorte, fugia a sete pernas; o publico fez berreiro e o touro foi substituido; depois, era o cavallo, animal pouco habituado á praça, que fugia do touro; mas, por fim, chegámos todos á convicção de que ella é que não entende d'aquillo, e quando, ao retirar-se, o cavalleiro passou-lhe um bouquet que recebera, quasi vem a praça abaixo com uma vaia estrondosa, acompanhada de pilherias á altura do logar.

Dous touros foram para os picadores á hespanhola. Á hespanhola é um modo de dizer, porque os touros eram embolados, e os cavallos não estavam a morrer em pé. D'estas duas circumstancias resulta: 1º que se poupa ao espectador a brutalidade do estripamento dos cavallos; 2º que os picadores não ficam parados contra a trincheira á espera que o touro lhes mate a cavalgadura, avançam para elle diversas vezes, são atirados com as seis patas para o ar, o que é relamente divertido. O ultimo touro dos picadores é um dos bichos que mais tem concorrido para a minha felicidade. Os picadores eram tres, todos bem montados. Avançavam de chuço em punho, o touro mettia as armas emboladas no peito ou no ventre do cavallo, e mandava-os ver se a terra estava macia. Isto repetiu-se cinco, dez, quinze vezes; emquanto houve picador para avançar para o touro, houve touro para derrubar picador e cavallo. E sahiram da arena todos vivos, os cavallos, o touro e os picadores.

Mas a completa novidade do espectaculo para mim foi a quadrilha de sauteurs e écarteurs landais. São seis sujeitos, dos quaes um corcunda. Usam jaqueta de velludo com bordados, calça branca comprida, cinto e carapuça branca redonda. Não se servem de farpas, nem de bandarilhas, nem de capas; quanto muito, se o touro se demora em dar sorte, acenam com a carapuça ou com um lenço branco. O corcunda tem uma especialidade: o salto da vara, que repete tres ou quatro vezes com o mesmo touro, e com uma grande perfeição.

O jogo dos écarteurs consiste n'isto: chamam o touro, e, quando este avança, desviam o corpo, ás vezes sem tirar os pés do logar, outras fazendo um duplo movimento, á direita para illudir o bicho, á esquerda para o desvio definitivo. Um dos saltadores chama o touro, e, quando este avança, põe-lhe rapidamente as mãos entre as armas, e dá uma cambalhota por cima d'elle, indo cahir de pé do outro lado; o outro saltador dá um pulo de esguelha, sem tocar no bicho, pulo  em altura e extensão, quasi a pés juntos, entrando por entre os chifres e sahindo pela extremidade opposta. Tudo isto feito com grande rapidez, com grande segurança, aos applausos freneticos dos francezes, que se enthusiasmam pelos seus patricios das Landes.

Eu sahi do espectaculo com a alma regalada por dentro e por fóra: houve trambolhão, mas não houve desastre, nem sangue. A cavalleira foi a parte comica. Só faltou, para minha completa felicidade, uma pégasinha de cara. É de crer que Pariz se convença de que a péga de cara ou de cernelha faz parte da civilisação. Eu chego a ter tentações de organisar partido para fazer propaganda, e um bello dia grito na praça, servindo-me do francez ao pé da letra, de que se servem os da nossa lingua, quando aqui chegam: à l'ongle !

Quando eu me refiro ao francez dos que aqui chegam, é para os não lisongear, porque ás vezes elles voltam ainda fieis ás tradições da lingua natal. Um conheci eu, que foi meu companheiro de viagem para o Rio, depois de anno e meio de estada na Europa, e que um dia, a bordo, á mesa, tendo-se proposto uma saude ao agente do correio, o meu patricio levantou-se, e de taça de campagne em punho, voltou-se para o homem e exclamou emphaticamente: á la mème !

A.

In GAZETA DE NOTICIAS, Rio de Janeiro - 13 de Agosto de 1891