27 DE JANEIRO DE 1907 - RIO DE JANEIRO: A FESTA ARTÍSTICA DO CAVALEIRO JOSÉ BENTO DE ARAÚJO NA PRAÇA DO CAMPO DE MARTE (na imprensa brasileira)

 


SPORT

Tauromachia

Se Bismarck, Dreyfus, Juan Chareef a Raphael Molina (Lagartijo) tem os seus devotos e admiradores, tambem os tem José Bento (de Araújo). — Qual o Adão aficcionado ao toreiro que não conhece Don José?

Ha poucos mezes, o correspondente do Times em New-York, comparava a intervenção do Presidente Roosevelt na campanha eleitoral contra Mr. Hearts, á quéda de um raio.

Camarão (o petit Mirabeau do novo congresso tauromachico) comparou José Bento (de Araújo) á explosão de um torpedo.

(José) Bento (de Araújo) é tão popular como o Jornal do Brasil, mais applaudido do que Fregoli. Dizem seus contemporaneos que nasceu montado a cavallo, e não faltam patricios seus que certifiquem havel-o visto domesticar touros, quando ainda mamava...

Pois bem, esse phenomeno da tauromachia portugueza, celebrou hontem a sua festa artistica, dedicando-a á Inclyta e benemerita Sociedade Tenentes do Diabo.


Como pintar a luz solar que illuminava el aniello do circo taurino? Como descrever o ramilhete de vestidas venus que povoavam os camarotes da praça? Como narrar a algazarra de seus espectadores?...

Impossivel. Figurae uma festa genuinamente iberica, dada por Mafoma em seu paraizo e formareis uma idéa approximada da corrida de hontem no Campo de Marte.

A rapaziada carnavalesca dos Tenentes occupava o sitio de honra, onde luzia o glorioso estandarte dos Dragões da Caverna. No camarote 51, engalanado com um manton de manille bordado pelas proprias mãos dos anjos, representavam o patrio sólo de Machaco, tres hespanholas como tres sóes; a meu lado (para tormento meu a admiração de Adões solteiros), luzia suas graças tentadoras a festejada Carmen Ruiz.

Começou a festa, abrindo-se as portas del arrastre, e pizaram a candente arena cavalleiros, toureiros, pagens, moços de forcado e charameleiros a cavallo.

Duas bandas militares amenisavam o espectaculo, imprimindo alegria aos fleugmaticos e loucura aos revoltosos.


Alli nada faltava, nada! Camarão brilhava com sua voz possante; Triol, a florista, com sua graça madrilena.

(José) Bento (de Araújo) cumpriu a sua missão, a contento da assembléa popular.

Pôs varios ferros á tira, superiores, e ganhou palmas e presentes de não pequeno valor.

Lessa esteve muito correcto, muito valente e trabalhador, conseguindo applausos.

Nobre Infante portou-se bem, demonstrando coragem e vontade de agradar.

Lemos, como amador; esteve immelhoravel; como artista de cartel, cumpriu regularmente.

Seguite, se precisasse dama de toureiro castiço, bem ganho teria com o luzido trabalho de hontem. 

Com o capote mostrou-se incomparavel, fazendo sortes brilhantes.

Com bandarilhas cravou um bom par cambiando e dous al cuarteo superiores. Com a muleta mostrou-se sereno e condado, rematando los pases como ordenam os codigos. 

E Filho de Madrid conquistou applausos merecidos.


Machaquito 2º esteve n altura do 1º bandarilhando como o proprio Regaterin e muleteando como el califa de Cordoba. Deu um pase de pecho arrodillado superior; varios en redondo muito bons e não simulou a sorte da morte, por capricho do intelligente Vieira, trabalhou muito e poz varios pares acceitaveis e um de castigo, superior. Deu o salto da garrocha com muito luzimento e manejou o capote com arte.

Santos, cravou dous bons pares al cuarteo e ajudou muito os cavalleiros.

Canario nada deixou a desejar, tanto bregando com a capa, como pondo bandarilhas.

Pinheiro, fez tudo com propriedade e todos, mais ou menos, conquistaram applausos geraes.

Total: tourada esplendida, deixando gratas recordações a todos que tiveram a dita de assistir ao beneficio do afortunado D. José.

Justo Verdades.

In JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro - 28 de Janeiro de 1907

1896 - JOSÉ BENTO DE ARAÚJO - NA SEXTA-FEIRA, EM UMA EGREJA DOS ARREDDORES DE LISBOA, ENTRARAM CINCO EMBUÇADOS...

 



NO CAMPO PEQUENO

José Bento de Araújo no Campo Pequeno antes de mais uma partida para o Brasil.
Cartoon de SOL E MOSCAS, Lisboa - 17 de Abril de 1898

N'um sabbado, á noite:

— Então não ficas em Lisboa, para a corrida de amanhã? perguntei a José Chrispim.

— Não, já comprei bilhete para o comboyo das 10 e necessito estar ámanhã em minha casa.De mais a mais o respeitavel saragoçano bracarense, D. José Teixeira, asseverou que choveria amanhã, e por consequencia não póde haver corrida.

Curvei-me ás razões adduzidas pelo meu amigo José Chrispim e nada respondi, mas fiquei com a pedra no sapato.

Na sexta-feira, em uma egreja dos arredores de Lisboa, entraram cinco embuçados. Eram oito horas da noite. O templo estava aberto, porque ás nove menos um quarto era esperado ali um cadaver, que devia ser dado á sepultura no dia immediato. Eu passava na occasião e entrei tambem. Quatro dos sujeitos ajoelharam no primeiro degrau do altar, e o quinto, o mais baixinho, poz o joelho em terra, mas a certa distancia dos primeiros. Parecia ser o sachristão d'aquelles estranhos levitas. Fiquei junto á porta, a observar.

Os desconhecidos começaram a resar devotadamente. A meio da cantilena estremeci. Diziam elles:

«Mãe de Deus, permitti que chova a cantaros no domingo proximo, para não haver toiros no Campo Pequeno.»

Os embuçados pararam com a invocação á Virgem e levantaram os olhos. Passado um momento, a imagem meneou a cabeça e inclinou-se um pouco, e eu ouvi distinctamente a Virgem dizer on seguinte:

«Sim, meus filhos, será feita a vossa vontade porque sois muito devotos e tementes a Deus.»

Saí apressadamente da egreja, porque me aprecia que estava sendo victima d'um pesadello. Pouco depois passavam junto de mim os cinco mysteriosos. Reconheci-os. Ceus! Eram os coligados, os mosqueteiros Alfredo Tinoco, José Bento (de Araújo), Fernando de Oliveira e Manuel Casimiro! O mais baixinho era o Romão Gomes!!

A prece dos colligados fôra attendida, e n'esse domingo não houve corrida.


In TOIREIROS E TOIRADAS COM RETRATOS, JOSÉ PAMPILHO (com prefácio de TRINDADE COELHO), M. GOMES EDITOR, Lisboa, 1896

1896 - JOSÉ BENTO DE ARAÚJO - UMA TOURADA EM ALGÉS

 


A praça de touros de Algés, que acabou por ser demolida e transformada em parque de estacionamento...
FOTO: Câmara Municipal de Lisboa

Não se encheu n'esse dia a praça de Algés. O publico concorreu na percentagem, talvez, de 75,5 por cento. Se não estiver certo, mandem a rectificação. É um caso, que, no futuro, póde dar de si.

Aqui ha tempos um pandego metteu hombros á empreza e começou a contar; mas, quando operava no sector n.º 7, começaram ali a jogar a pancadaria e o homem perdeu o fio á meada. Ainda assim chegou ao numero 3:967. Elle ha cada maduro por esse mundo!

E foi pena não se enchar á cunha, como era de prever e era mister, para satisfação plena do cavalleiro Fernando de Oliveira, o enfant gâté dos Montecchios e das Montecchias, que n'essa tarde apresentou uma casaca riquissima, a qual fez abrir desmesuradamente os olhos lindos de algumas gentis Capulettas (oh! infidelidade) e de alguns agiotas, que nunca apanharam coisas tão bonitas nas prateleiras sujas das suas sujissimas casas de prego.

A arraia miuda distribuiu-se pelas outras corridas, pela feira de Belem e pelas hortas dos arredores de Lisboa, onde apanhou carraspanas tremebundas, que fizeram oscillar o madeiramento dos seus modestos domicilios. Algumas costellas femininas tambem adornaram por estibordo e bombordo. Por este enunciado se vê, ricos filhos, que a cafraria j'mais acabará!

A misteriosa aficionada das flores...
FOTO: Arquivo da Família Araújo

No sabbado á noite rosnava-se, que succederiam coisas espantosas; que a policia seria reforçada; que um grupo de Alcantara e outro de Bemfica viriam ás mãos; que se assistiria, finalmente, a uma batalha dura e encarniçada, em que serviriam de projectis grossos bengalões, bojudas garrafas, e apostrophes zolistas, que fariam fugir das arvores, que circundam o circo taurino, a pardalada espavorida.

Felizmente, os grupos rivaes não se bateram. As durindanas não saíram das bainhas. Em compensação, as linguas ficaram escalavradas e algumas solas pedindo em agudos guinchos reforma no sapateiro.

Que delirio, e que pandega!

E assim é, e assim continuará a ser, emquanto o sol dardejar cá para baixo os seus raios ardentes, e a lua fôr a confidente de ternos arrulhos nas varandas amplas de alguns casinos de praias balneares.

De Almeirim procediam os doze cornupetos lidados. Deixaram de bom grado a vastidão dos seus campos, onde impera a paz e harmonia, para virem a outro campo mais restricto deliciar com os seus rapidos e elegantes meneios os amadores de tão emocionante passa-tempo.

E como vinham de bom grado, de boa vontade se desempenharam do encargo.

Foi pena os dois toiritos, que largaram a Fernando de Oliveira, não serem para lide de pé. Se fossem bandarilhados teriam cumprido.

Entre o curro havia toiros bravissimos e de tal pureza, que fizeram marejar os olhos d'uma peccadora, outr'ora estrella de primeira grandeza e hoje - cruel destino! - em caminho do seu ocaso.

Os meus parabens (lá está um cafresito a sorrir-se) ao conde de Sobral por ter mandado a Algés um currosito tão catita.

Dizer que Alfredo Tinoco, o elegantissimo toireiro, farpeou brilhantemente o 1.º toiro; relatar que José Bento de Araujo, impavido e valente como sempre, collocou ferros de castigo em sortes lindamente rematadas; referir que Manuel Casimiro metteu bons ferros, tendo duas saídas falsas primorosas; noticiar que Fernando de Oliveira obrigou a marrar os seus toiros, entrando e saindo das sortes com todo o preceito, é dizer a verdade. Todos elles foram applaudidos com enthusiasmo. São mestres consumados na sua arte.

O espada Fabrilo agradou-me em bandarilhas e com o capote. Com a muleta deixou a desejar. Seu irmão é um bom peão; pareou e correu os toiros como deseja o José Pinto de Campos nos seus livros. É parecidissimo com o mano.

Pescadero collocou um ferro em sorte de gaiola e mais não disse. Está muito pesadote, segundo a opinião d'um Anacleto, que no intervallo passou do sol para a sombra!

Pechuga, que, com as fitas da montera atadas, dá-me ares de toireiro de operetta, pouco fez.

Theodoro e Cadete trabalharam com luzimento, e os forcados houveram-se com valentia, fazendo boas pegas.

Só um dos toiros saltou a trincheira.

Ha muita gente que gosta que os toiros saltem para lhes darem bengaladas e arrancarem as farpas; mas estas mesmas almas ficam muito escamadas, quando os animaes lhes dão a sua beijoca, deixando-lhes a camisa ou o collete sujos de saliva cornupeta. Com as mulheres succede o mesmo. Ha algumas, que arredam com as mãosinhas, dando ao mesmo tempo um gritinho, as amabilidades corneas.

Á saída dos toiros, todos os carros estavam voltados para a banda de Cascaes.

Calino pergunta ao compadre, que o acompanhava, se Lisboa se tinha mudado para Caxias.

- Como não pagava a renda de casa, esclarece o supradito compadre, o senhorio pôl-a na rua e a pobresita não teve remedio senão mudar de freguezia!

E Calino começa a andar por ali fóra e deu fundo no Dáfundo, onde apanhou uma carraspana mestra. No dia immediato ainda andava aos bordos e foi visto nos restaurantes da Baixa a tomar canjas e capilés! E foi capaz de dizer á familia que gosou muito!

Um dos cornupetos (?) tinha um olhar muito dôce. De vez em quando meneava a cabeça, erguia os olhos para o sector n.º 1 e parecia que olhava para uma determinada pessoa, que, por seu turno, ficava vermelha como um pimentão. Simples coincidencia!

Outro, d'uma das vezes que saltou as taboas, caiu de costas, enterrando fundamente as bandarilhas pela carne dentro. O animal mugiu dolorosamente e nos seus grandes olhos mostrou a dôr que sentia. Houve alguem que viu n'esta occasião as faces d'uma elegante rapariga humedecidas por duas grossas lagrimas. Ainda ha corações sensisiveis, e que choram pelas desgraças alheias!

In TOIREIROS E TOIRADAS COM RETRATOS, JOSÉ PAMPILHO (com prefácio de TRINDADE COELHO), M. GOMES EDITOR, Lisboa, 1896

1896 - JOSÉ BENTO DE ARAÚJO - UMA TOURADA NO BARREIRO

 


O cavaleiro José Bento de Araújo a farpear.

Dia triste. As nuvens prenhes de fortes aguaceiros; mas os aficionados não recuaram um passo, e lá foram, uns de malvas e outros de casacos de borracha, assistir á corrida.

O vapor, que saiu ás duas horas, ia abarrotado. O que largou dez minutos depois tambem foi cheio.

Gente animada, anciosa por ver as prendas dos cornupetos do Ferreira Jordão. N'um grupo fallava-se de amor; mais além, dois nephelibatas discutiam a reforma do general Malaquias de Sá, e uns caturras, que iam á prôa, e que na estação tinham andado de Herodes para Pilatos, por causa do carimbo nos bilhetes, asseveravam, escanados, que o serviço do caminho de ferro do sul era muito moroso; que pegavam por qualquer ninharia. Um dos do grupo esclareceu, que aquella linha ferrea marchava a passo de boi, emquanto que a do norte e leste se movia a passo de toiro. O conselheiro Acacio não diria melhor.

Quando chegámos ao Barreiro, ainda a machina Loulé, que tinha arrastado dezesete carruagens com gentes de Setubal, de Palmella e da Moita, resfolegava como se tivesse lá nas entranhas um vulcão!

Pela comprida rua, que vae da estação á praça, centenares de machos e femeas marchavam açodados, de nariz no ar, e procurando nas algibeiras o bilhete dos toiros. Lá ao fim cortavam á esquerda, e, enterrando os pés na areia, davam a breve trecho entrada no circo taurino barreirense, que por um pouco não é beijado pelas aguas do rio. Visto de longe, o circo, parece mesmo que está á beira-mal plantado. É para um dia servir de delegação da alfandega, quando acabarem os toiros.

Nas bancadas do sol os seluvelões, os palmellões, os da Moita e de Alhos Vedros; na sombra, a rapaziada do Turf, do Marrare e do ministerio da fazenda, que é a secretaria de estado que conta mais amadores. Aqui e ali caras conhecidas: o Alfredo Tinoco, o José Bento (de Araújo), o Manuel Casimiro, e outros preclaros varões. De espaço a espaço uma senhora.

Depois de comprimentar os amigos e de tirar o chapeu reverentemente a um capitão reformado, que esteve para ser m eu sogro, senti-me ao pé d'uma aficionada, para a abrigar, com o meu apara-chuva, de algum aguaceiro impertinente. No fim da corrida, perguntando-lhe eu as suas impressões, disse-me pouco mais ou menos o seguinte:

- A minha opinião é esta. Tenho assistido a corridas muito melhores, com cavalleiros consummados, com bandarilheiros de primeira ordem, com matadores insignes e com toiros de ganaderos de grande reputação; mas tambem tenho presenceado muito peior do que isto. Foi uma toirada regular. Eu esperava, attendendo ao tempo, que o gado estivesse mais magro, e, por consequencia, mais fraco. Olhe, o 1.º toiro era um animal bravo e voluntario ao cavallo; o 6.º, por exemplo, era um bom toiro, que não foi aproveitado como devia ser. Em summa, houve algumas rezes boas. Gostei immenso do trabalho do Fernando de Oliveira. Farpeou o seu primeiro toiro com arte e galhardia. Primoroso! No 2.º, que, como o senhor viu, era tunante formado em todas as faculdades, teve uma lide de mestre. Obrigar a marrar um calmeirão d'aquelles, só o póde fazer um grande artista. O seu primeiro cavallo é um lindo animal. Não conheço nada mais docil do que aquillo. É um toireiro. O segundo não é nada mau. Precisa, no entanto, mais lições. A cabeça está fóra do seu logar; olha ainda muito para os camarotes. O João Gagliardi deve pôl-o na afinação.

A gentil aficionada, após um momento de pausa, continuou:

- Adelino Raposo é valente, é corajoso, não conhece o medo, é modesto, é sympathico, mas necessita afinar o seu toireio. Teve dois ferros curtos de valor, é certo; porém nos compridos não me agradou tanto. Aconselhe o; diga-lhe a verdade sem refolhos. Os amigos ás vezes é que perdem os artistas. Dizem-lhes tanta coisa, que elles, ás duas por tres, já se julgam um conde de Vimioso ou um Manuel Mourisca.

Nova pausa. A minha formosa collaboradora pára a perguntar-me se quero que prosiga. Respondendo-lhe affirmativamente, diz ella:

- O trasteo de muleta e de capote de Conejito não me agradou. No entanto, gostei dos pares de rehiletes do seu bandarilheiro. Dos nossos artistas, Theodoro Gonçalves collocou bem tres pares; Jorge Cadete metteu dois bellos pares, e Minuto embebeu no morrillo do quadrupede alguns ferros de merecimento. Quanto ao amador Salgado, não gostei hoje d'elle. Apanhando um dos melhores toiros do curro, não se salientou como podia e devia. Foi timorato e precipitado. Entrava em sorte quando não devia entrar; e deixou perder sortes por abuso de precauções. Como o senhor viu, um dos grupos dos forcados esteve infelicissimo; o outro portou-se bem. parece-me que é de Palmella. Aquella primeira pega de cara foi archi-superior. É uma das melhores que tenho visto. Que alma... e que pulso! Valente homem! É pena ser tão feio. Se fosse bonito, tinha conquistado mais d'um coração. Finalmente a direcção da corrida, confiada a Jayme Henriques, não podia ser melhor, e a philarmonica de Alhos Vedros fartou se de desafinar.

Ao dizer isto, a amavel aficionada deu entrada no vapor, dirigindo-se immediatamente para a camara, para repousar um pouco. Eu fiquei em cima, a fallar com alguns amigos. Discutia-se acaloradamente. Fallava-se de toiros, de cavallos de combate e da reforma do general Malaquias de Sá. Encostei me á amurada, e emquanto o vapor, cheio como umovo (ou um odre), rasgava as aguas, e eu via desapparecer, a pouco e pouco, a praça de toiros, onde, minutos antes, se tinha verificado um dos espectaculos, que mais emocionam a alma dos peninsulares, um amigo dizia--e com a voz tremula:

- Olha que o vapor traz duzentas pessoas a mais. Se ha uma pequena desordem, muita gente cae ao mar; se a machina tem o mais pequeno desarranjo, vamos todos para o charco. Isto é uma grande pouca vergonha. Receber gente a mais da lotação, é uma patifaria.

Disse e repetiu isto umas poucas de vezes, mas eu pouca attenção lhe dava. Estava pensando n'um caso bizarro e estranho. Quando Fernando de Oliveira embebeu o ferro no cachaço do seu segundo toiro, o tal macacão, eu vi distinctamente o animal menear tristemente a cabeça, como quem pede compaixão, e uma lagrima cair-lhe dos olhos grandes e doces. Naturalmente, lembrava-se das noites de luar, nas lezirias, em companhia de algum ente querido...

In TOIREIROS E TOIRADAS COM RETRATOS, JOSÉ PAMPILHO (com prefácio de TRINDADE COELHO), M. GOMES EDITOR, Lisboa, 1896

1896 - O CAVALEIRO JOSÉ BENTO DE ARAÚJO - MAIS UM RETRATO

 



Um dos mais valentes e dos mais distinctos cavalleiros tauromachicos.

José Bento (de Araújo), que conta hoje 44 annos de edade, iniciou-se na arte de toirear n'uma vaccada realisada em 1874 na praça da Junqueira.

Pouco depois toireou em Sacavem e mais tarde em Lisboa, na demolida praça do Campo de Sant'Anna, onde trabalhou muitos annos ao lado de Manuel Mourisca e outros cavalleiros.

Em 1892 foi para França, (NOTA: Foi para França em 1891, tendo aí permanecido até meados de 1893) toireando em Paris, Nimes, Avignon, Marselha e outras cidades. Tambem trabalhou, com agrado geral, em varias terras de Hespanha.

E no Campo Pequeno tem continuado a revelar as suas boas qualidades de toireiro e de equitador.

No Brazil, para onde partiu ha tempo com Alfredo Tinoco, tem enthusiasmado, com o seu trabalho artistico e alegre, a população do Rio de Janeiro.

É dotado d'uma coragem extraordinaria e para elle não ha cornupetos, que se não possam toirear. Farpeia com o mesmo saber e serenidade um toiro sencillo como um matuto, que já tenha vindo oito ou nove vezes ao redondel.

Entra e sae das sortes com toda a frescura e luzimento. Seguro nas sortes de gaiola, em todas as outras é eximio. Consentindo muito os toiros, os ferros são collocados como prescrevem os regulamentos taurinos. É, emfim, um bom toireiro, na verdadeira accepção da palavra.

Se como artista é insigne, como homem é o que se chama - um bom rapaz.

JOSÉ PINTO DE CAMPOS

In TOIREIROS E TOIRADAS COM RETRATOS, JOSÉ PAMPILHO (com prefácio de TRINDADE COELHO), M. GOMES EDITOR, Lisboa, 1896

28 DE MAIO DE 1893 – NIMES: TOUROS FROUXOS, TOUREIROS ESPANHÓIS E CAVALEIRO PORTUGUÊS BONS – E PÚBLICO CONTENTE (na imprensa espanhola)

 

Biblioteca nacional de España

Toros en Nimes

La corrida de toros que se celebró el domingo, en Nimes, con el concurso de toreros y bichos españoles, tuvo interés bajo el punto de vista taurino, según noticias recibidas de aquella ciudad francesa.

Los trenes de Narbonne, Montpellier, etc., condujeron multitud de viajeros á la ciudad de las célebres arenas.

La avenida de la estación, los boulevares y las principales calles, se hallaban invadidas por bulliciosa muchedumbre ansiosa de contemplar la fiesta española.

Dos horas antes de empezar la corrida los aficionados hacían cola, ni más ni menos que en Madrid cuando se trata de adquirir billetes para las grandes solemnidades taurómacas.

Aseguran los periódicos que hace mucho tiempo no ser había visto en la plaza de Nimes la animación que en la última corrida. Más de 20.000 espectadores llenaban los tendidos del grandioso anfiteatro, á pesar del terrible sol que parecía quería contribuir al brillo de la función en clase de picador.

La entrada de los toreros avec le ceremonial espagnol, produjo gran sensación, siendo saludada con estruendosos aplausos.


Arenas de Nimes.
Foto: D:R.

En el primer toro, el caballero en plaza (José) Bento d’Araujo, el espada Santos y la cuadrilla de éste, fueron muy aplaudidos.

Durante la lidia del segundo el pueblo comenzó á s’échauffer pidiendo la muerte del toro, sin conseguirlo.

Varios espectadores fueron atacados de insolación, por lo que fueron sacados del local.

Algunos españoles gritaban ¡al corral! ¡Al corral!

El cuarto dió poco juego, pero el quinto, que no estaba embolado, salió al ruedo con brios, arremetiendo contra los piqueros, lo cual fué muy aplaudido por la concurrencia.

El prefecto del Gard y su señora no pudieron contener su entusiasmo y gritaban ¡Ollé! ¡Ollé!

El público pidió la muerte por un procedimiento semejante al de los belgas pidiendo sufragio; el prefecto hizo una débil muestra de asentimiento. Y el Tortero tomó los trastos y se fué derecho al cornúpeto.

Durante la faena del diestro el público guardó religioso silencio, hasta que habiendo el Tortero dado dos estocadas sin resultado, algunos aficionados, que aun no distinguen, promovieron una bronca. Por fin, á la tercera espiró el bicho, entre las aclamaciones de los 20.000 paisanos de Daudet.

El último, que fué el de la tarde, ó mejor dicho el de le soirée, lo mató el Ecijano, previa una lucida faena, que fué muy del gusto du public.

Es de notar que las autoridades y el prefecto no se retiraron, como es costumbre, durante la muerte de los toros, lo cual prueba que las corridas de muerte son ya, sino permitidas, toleradas en Francia, pese á la ley del señor de Granmont.

La prensa pide á la empresa que procure que los toros de la próxima corrida sean mejores.

En resumen, los toros flojos, los toreros buenos y el público très satisfecho.


El rejoneador José Bento de Araujo en 1893.
Cartel disponible en el Musée des Cultures Taurines, Nimes.

Referente á esta corrida, las últimas noticias que hemos recibido dicen que han sido procesados los diestros españoles Tortero, Ecijano y Torerito por haber dado muerte con estoque á los toros lidiados en aquella plaza el pasado domingo, contraviniendo lo dispuesto acerca del asunto por las autoridades francesas.

In EL ISLEÑO, Palma de Mallorca – 3 de Junho de 1893

EL REJONEADOR JOSÉ BENTO DE ARAUJO en "TAUROARTE"...





El rejoneador José Bento de Araujo
FOTO: © Família Araújo

JOSÉ BENTO DE ARAUJO en Español...

TAUROARTE, el prestigioso blog de D. Juan Antonio Prades sobre tauromaquia, dedicó un artículo a mi tatarabuelo, el rejoneador José Bento de Araujo (1852-1924): su historia y evolución en Portugal, Brasil, Francia y España (plazas de Madrid, Barcelona, Santander, San Sebastián, Caudete...).

Muchísimas gracias por el estupendo trabajo!


ENLACE:

https://tauroarte.com/index.php/la-tauromaquia-en-portugal/el-arte-de-marialva/2012-cavaleiros-distinguidos-en-portugal-fuente-la-tauromaquia-de-d-leopoldo-vazquez/36739-2-jose-bento-d-araujo

17 DE AGOSTO DE 1913 – FIGUEIRA DA FOZ: UMA TOURADA DEVERAS ATRIBULADA…



O CAMPEÃO nas provincias

Figueira da Foz, 22. — Promovida pela empreza do elegante Colyseu, realisou-se, com uma casa á cunha, a anunciada tourada, no dia 17 do corrente, que esteve á altura dos creditos que tem grangeado a actual empreza, pois agradou bastante pela maneira como correu.

O trabalho equestre estava a cargo dos arrojados cavaleiros José Bento de Araujo e Adolfo Machado, que se houveram como dois valentes.

Depois das cortezias do estilo, que foram exceutados com toda a correção, entra na arena José Bento (de Araújo), a quem largaram um touro, que embora de poucas carnes, arrancava voluntariamente, empregando, á volta, 4 ferros compridos, e rematando com um curto, bem apontado, pelo que ouviu bastantes palmas. No 6.º que era um belo touro e leal, José Bento (de Araújo) brilhou, colocando 6 ferros compridos e 2 curtos, medindo bem os terrenos, como manda a arte. Tendo chamada especial, foi muito aplaudido.

José Bento (de Araújo) apezar da idade, ainda mostra que é o antigo Zé Bento (de Araújo). Adolfo Machado que é dos novos, e com recursos, é um bom cavaleiro. No 4.º da tarde, que era um touro corpolento, de muito pé, cortando terreno, foi logo de principio colhido contra as taboas, mas sem consequencias de maior; recolhendo, verificou-se que o cavalo não estava inutilizado para o toureio. Voltou e conseguiu ainda prender 4 ferros compridos com muito custo. Sendo chamado fez-lhe a plateia uma grande ovação. No 9.º, que lhe coube, e que era um animal bastante corpolento, muito mais que o seu antecessor, e de muitas carnes, só poude conseguir, Adolfo Machado, colocar dois ferros compridos á volta; nada mais podendo fazer por o trouro ter saltado duas vezes a trincheira, numa das quais esteve quasi na plateia, partindo a corda de arame que a defende dessas envestidas, e tendo-se desembolado, teve de ser recolhido.

Notamos que a distribuição do gado para os cavaleiros, não foi equitativa, pois para o mestre José Bento (de Araújo) soltaram dois novatos, e para o novato Adolfo Machado soltaram dois grandes mestres!!!

Seria proposito?... Seria combinação?... Não sabemos, porque não assistimos á distribuição, o que daqui para o futuro faremos, o que é para não errar. Da gente de pé temos que especialisar uma gaiola de Theodoro no 2.º da tarde, outra de Ribeiro Tomé no 5.º, e um sesgo de Cadete também no 2.º. Os outros artistas, que eram Malagueño, Tomaz da Roche, Tadeu e Alexandre Vieira, empregaram bons pares de ferros, trabalhando todos com boa vontade e arrojo. Houve trez pegas, sendo a 1.ª, no 3.º touro, rijissima. Os touros, que eram muito deseguais em corpo, a maior parte cumpriu, e alguns sairam mesmo muito bravos, á excepção do 7.º, 8.º e 10.º, que por mais exforços que os artistas empregassem, nada poderam fazer deles. Emfim, a tourada agradou, pois todos os aficionados sairam satisfeitos, porque houve para todos os paladares.

No intervalo foram todos os artistas chamados á arêna, incluindo o lavrador, sr. Antonio Luiz Lopes, de Vila-franca de Xira, sendo todos muito aclamados. A inteligencia, a cargo do sr. Jaime Henriques, teria sido acertada, se tivesse feito cumprir as suas ordens, pois os artistas não as acatando, abuzam. E haja em vista o que succedeu com o 5.º touro, que era bravissimo e voluntario; depois de dar uma bela lide, tendo passado ao 2.º estado, e tendo o inteligente mandado tocar a cessar bandarilhas, continuaram a aperta-lo, e, desrespeitando as ordens do inteligente, fizeram com que o boi se desmanchasse, apanhando querença ás taboas, nada mais dando, podendo dar tudo até final se fosse aproveitado nos seus estados. O sr. Jaime Henriques deve-se impôr e fazer-se respeitar; doutra maneira é melhor não aparecer lá.

Abrilhantou a corrida a distinta filarmonica 10 de Agosto, que executou as melhores peças do seu variado reportorio.  Para o sia 7 de setembro, por occasião das festas daa Senhora da Encarnação, em Buarcos, anuncia-se já outra corrida promovida pela empresa, com os distintos e arrojados cavaleiros Manuel e José Casimiro, e os melhores artistas portuguezes, sendo o gado fornecido pelo escropuloso creador de Vale de Figueira, sr. Emilio Infante da Camara, que promete ser uma deslumbrante corrida, em virtude da empreza não se poupar a trabalhos e despezas.

Aos touros, pois, no dia 7 de setembro.

In CAMPEÃO DAS PROVINCIAS, AVEIRO – 23 de Agosto de 1913 

NOVEMBRO DE 1893 - LISBOA: OS CAVALEIROS FERNANDO DE OLIVEIRA, ALFREDO TINOCO E JOSÉ BENTO DE ARAÚJO JUNTOS NO CAMPO PEQUENO, (na imprensa francesa)

 


Lisbonne. — Dimanche, 15 octobre. — Course au profit de l'asile des enfants abandonnés. Les toros de D. Caetano de Bragance, furent très braves dans leur majeure partie. 

Les amateurs Mario Duarte et Pedro Figueiredo, très applaudis.

Les pegadores ont été vaillants.

— Prochainement, grande course avec le concours des cavaliers en place JOSÉ BENTO DE ARAUJO, TINOCO et FERNANDO.

Le matador TORERITO prendra part à la corrida. Le bétail est du vicomte de Varzea.

In LE TORERO, PARIS - 5 de Novembro de 1893

AS RECORDAÇÕES E OS CONCEITOS DE MANUEL DOS SANTOS (O CAVALEIRO JOSÉ BENTO DE ARAÚJO CITADO A PROPÓSITO DO BRASIL)

 


"FADOS, MULHERES E TOIROS"
Pepe Luiz, Lisboa - 1945


Manuel dos Santos

O toireiro-poeta da velha guarda


Manuel dos Santos num momento de meditação invocando as musas para as suas composições poéticas.

Manuel dos Santos completou, no passado dia 15 de maio, a bonita idade de setenta e três anos. Nesse dia houve festa na sua casa e na roda dos seus amigos. Não foi uma festa de espavento. Manuel, quando tem à sua frente uma media dúzia de pessoas amigas, é festa certa e animada, porque êle se encarrega de alegrar todos com os seus chistes e para tudo tem um comentário bem humorado.

A narrativa de casos pitorescos e a piada a tempo, são a sua especialidade. E agora o leitor pode fazer uma idéia do que se passa em determinado quarto andar da rua Álvaro Coutinho, no dia do aniversário de Manuel dos Santos, na ocasião em que a sua numerosa e simpática família ali o vai abraçar pelo facto de êle ter alcançado mais uma primavera… êle nunca deixou de possuir uma alma jovem!

Até o seu papagaio entra nas manifestações festivas:

Adeus ó Manel! Eh! Eh! Eh!.... ó Manel toca p’ra unha! Tatarari… tatarari!...

Assim palra o animalzinho.

Manuel dos Santos tem atrás de si uma vasta história de activo trabalhador.

Aos sete anos entrava em pantominas no velhíssimo Circo Price; brincava com a sua vizinha, hoje a gloriosa actriz Adelina Abranches; e aos dez começou a aprendizagem numa oficina metalúrgica. Aos domingos tomava parte, como andarilho, nas corridas da praça de toiros do Campo de Santana.

Às noites começou a representar nos teatros, desempenhando, com agrado, alguns papéis nas revistas de grande fama: «Micróbio», «Pontos nos ii», «Seis meses na Parvónia», etc.

Ao atingir 16 anos, assentou praça na Marinha de Guerra; viajou muito e adquiriu grandes simpatias, pelo seu feitio divertido, e a tal ponto que entre a guarnição era conhecido pelo «Vida alegre».

Sempre cumpridor do seu dever, e após bastantes anos de Armada, Manuel transitou para a vida civil, dedicando-se ao toireio, e em breve conquistou enorme popularidade pela sua valentia, temperada por uma vigorosa intuïção artística, intuïção que o levava a executar variadíssimas sortes que êle observara a grandes «diestros».

Em 1905, o célebre matador Antonio Fuentes convidou-o a sair na sua quadrilha numa das corridas da feira de Sevilha. Toireavam também Quinito e Bombita. Manuel bandarilhou com tanto êxito um toiro de Ibarra, que Fuentes enviou-lhe a cabeça embalsamada do bravo animal, com esta honrosa decicatória gravada numa placa de prata: «Al valiente banderillero lusitano Manuel de los Santos le ofrece este recuerdo de su début en Sevilla, su gran amigo Antonio Fuentes».

Pois êste objecto, que significa um acto de extrema gentileza do inesquecível Fuentes, decora ainda uma das paredes principais da sala de jantar da residência de Manuel dos Santos.

Tôda a família Santos é aficionada, em especial os filhos, Vítor, que foi amqador tauromáquico e não fêz má figura, e José, que numa boa parte do ano vive sôbre as águas do mar.

Uma das facêtas interessantes do espírito de Manuel dos Santos está espelhada no feitio lírico com que, por vezes, se expressa, como se tivesse bebido a água cristalina da fonte de Hipocrene.

Escreveu para o teatro e ainda hoje nunca foge às rimas, como verifiquei, quando respondeu às perguntas que lhe enderecei durante a visita que lhe fiz numa tarde recente.

Nas dependências da sua residência, vêem-se recordações por todos os lados: fotografias, quadros, uma vitrine com brindes oferecidos nas suas festas artísticas. Em determinada altura do diálogo, rompeu esta quadra:

«Ali, no quarto onde moro,

Modestamente emoldurados,

Estão por mim colocados

Os santos que mais adoro».

Já se deixa ver que de tôda aquela densa espiritualidade que palpita através das inúmeras recordações espalhadas pelas paredes, compartilha a figura simpática e altiva dum devotadíssimo amigo: Fernando de Oliveira!

 

Como velho toireiro — porque foi um profissional com paixão — nunca esquece o pundonor que deve honrar o que veste o trajo de bordados e taleguilla, e a propósito interroguei:

— O que diz das corridas em que há toiros sem toireiros?

—        «Sinto minh’alma cair

            No fundo do meu passado,

            Se vejo um toiro investir

            E ser mal aproveitado.»

E acêrca da vida do toireiro, disse estas redondilhas:

«Não há nenhum que se gabe,

De não cair quando corre,

Nem adivinha, nem sabe,

Se quando toireia morre.»

 

«No decorrer da toirada,

A quem sabe, custa ouvir,

Ao que é bom, assobiar,

E quanto ao mau, aplaudir.»

Como não lhe passasse desapercebido o nosso reparo duma cicatriz que possue numa das faces, lofo elucidou:

«A cicatriz do toireiro

Nem sempre é sinal de falha,

Quem se arrima é verdadeiro,

Traz sôbre a pele a medalha.»

 

«A vergonha nuca dói

O efeito da marrada,

Ao que quere ser um herói

Dói-lhe mais a pateada.»

A conversa, derivando para a comparação entre a bola e os toiros, provocou as seguintes considerações rimadas:

«Mais ligeiros que audazes,

Jogam vinte e dois rapazes,

Mas nenhum encontra a morte.

Nos toiros damos aos «butes»,

Duas bolas, quatro «chutes»,

Em verdadeiro recorte.»

 

«Na luta greco-romana,

Os truques são combinados,

De tal modo disfarçados,

Iludem dar forma e gana,

No foot-ball há pavana,

E bairrismo apaixonante,

A gritaria é sonante.

Nos toiros há bulha aguda,

Não brilha a toirada muda

Dentro dum toiro excitante.»

Como todos sabem, Manuel dos Santos foi o peão de brega de grande confiança e dedicado amigo dêsses espírito de eleição que se chamou Fernando de Oliveira, o único toireiro que até à data perdeu a vida no redondel do Campo Pequeno. Para êle Manuel teve esta quadra quando se comemorou o infausto acontecimento:

«De modos nobres, serenos,

Faz trinta anos que morreu.

Quem morre assim, deixa pena,

Quem assim morre, viveu.»

O grande cavaleiro Fernando de Oliveira, quando faleceu, estava disfrutando duma aura imensa, justificada pela galhardia do seu toireio, e, por isso, foi cantado pela lira popular em glosas sentimentais a que o fado deu singular expressão.

Falando-se do fado, o velho bandarilheiro soltou mais êste indicativo da sua inspiração poética:

 

«Creiam que me capacito

Que o fado tem movimento,

Com salada e peixe frito,

Lá nas hortas a contento.

 

Não foi uma desgraçada,

Teve um amor verdadeiro,

A Severa foi amada

Por um fidalgo toireiro.

 

Maria de Lourdes tem

Carinhos de enfermeira,

Sendo assim, ela contém

Bom fundo p’ra cantandeira.

 

A guitarra é batuta,

Num compasso harmonioso

Comigo ninguém discuta,

Ganha a palma o rigoroso.

 

Amália Rodrigues é

A estrêla do lindo fado,

Cheia de carinho e fé,

Faz recordar o passado.

 

É Maria Raquel

Autêntica portuguesa,

Anima o redondel,

É do fado a princesa.»

Em determinada corrida de toiros dirigida por Manuel dos Santos, de vez em quando ouvia-se a voz dum espectador:

Ó Manuel, toca!... Ó Manuel, toca!... toca!...

E Manuel abanava a cabeça num gesto negativo.

— Não toca, porquê? — perguntou, furioso, o espectador.

— Porque não sei!

E na conversa que tive com Manuel, revelou também o seguinte comentário:

«Toca p’ra dentro, ó Manel,

A unha, toca p’rá unha!

Mandar tocar quem não sabe,

É coisa que não propunha.»

Manuel foi quatro vezes ao Brasil e disso jamais se esqueceu:

«Com Zé Bento (de Araújo) arrojado,

No Brasil andei lutando,

Com Macedo e Morgado,

E também com o Fernando.»

O que aqui fica nestas páginas não é mais do que o extracto duma tarde de paleio com Manuel dos Santos, cuja biografia está traçada em quatro sonetos da sua autoria e que êle guarda ternamente, como peça testamentária que os vindoiros hão-de apreciar.

Da sua casa saí, satisfeitíssimo. O bocado ali passado foi dos melhores.

O que não há maneira de olividar é o papagaio que repete os toques da corrida seja ela à portuguesa ou à espanhola.

Dá vivas ao Benfica para arreliar o Vítor Santos — filho de Manuel — que é sportinguista, e quando o dono da casa atravessa o corredor, de bengalinha, chapéu ao lado, fumando um charuto da «Companhia», lá se ouve o loiro de penas cinzentas:

Adeus ó Manel, até logo!...

Pode o velho toireiro gabar-se de que possue um papagaio «inteligente»!...

In FADO, MULHERES E TOIROS, Pepe Luis, Livraria Popular de Francisco Franco, Lisboa - 1945