Biblioteca nacional do Brasil
TAUROMACHIA
Decididamente
eu sou muito caipora ! Que má idéa tive em me casar ! Já lá vão quatro annos
que abandonei a minha vida de bohemio, com o fim de saborear a tão decantada santa paz do lar, e, afinal de contas,
posso lhes garantir que ainda não tive, sem exagero, oito dias consecutivos de
felicidade completa no meu ménage.
Minha mulher, coitadinha, é uma
verdadeira santa, meiga, de bom genio e sempre condescendente. Tem todos os
predicados indispensaveis para tornar feliz um homem, mas — há sempre um mas — existe
um obstaculo terrivel ao meu xxx e conseguintemente á minha felicidade. A nota discordante
no teclado rouco da minha existencia é, D. Fagundes Carneiro, minha mui
illustre sogra, illustre por muitas razões, mas uma creatura insuportavel por
muitas mais.
Em minha casa eu só sou ouvido e
chamado quando se precisa de dinheiro. No mais, ella é que põe e dispõe, não
como minha hospeda que é, mas sim como se fosse donda da casa. Determina as
horas da comida, toma e despede criados a seu bom grado, e emquanto a jantar e
almoço é uma desgraça ! Só comemos do que ella gosta, uns quitutes impossiveis,
que ella lá inventa, e que me têm dado cabo do estomago. Enfim, só estou para
ver quando chega o dia em que se zanga comigo — o que acontece quasi todos os
dias — e me põe fóra da minha propria casa.
Ninguem pára com D. Fagundes.
Descompõe os criados por dá cá aquella palha, está constantemente procurando
discussões sobre tudo quanto há ; mas o seu pratinho do meio é fallar da vida
alheia, e fazer intrigas.
Eu sou mesmo muito caipóra !
Ora, vejam o que me aconteceu
hontem.
Quando, á tarde, cheguei á casa,
encontrei a boa da minha sogra de, pé no patamar da escada, com os braços
levantados e empunhando na mão direita um jornal e na esquerda um livro — Apontamentos sobre a arte de tourear !
— O senhor já sabe que temos amanhã
a festa artistica do José Bento de Araujo ?
— Amanhã !
— Sim senhor, amanhã. Aposto que não
leu os jornaes da tarde ? Pois era melhor que os lesse em vez de via a namorar
nos bonds, como o senhor faz. Assim
que acabar de jantar quero que me vá comprar um camarote, e amanhã, já o
previno, tem que nos acompanhar as touradas.
— Mas, D. Fagundes, a senhora bem sabe que tenho que
ir para o camarote da imprensa fazer a chronica para A Noticia.
— Qual chronica nem meia chronica !
O senhor amanhã vem para o nosso camarote, e, fique sabendo que, quem vai fazer
a critica da corrida sou eu. Já estive lendo os apontamentos sobre a arte de tourear, e o senhor vai vêr o
que é uma chronica.
— A senhora quer fazer a chronica
para o jornal ?!
— Quero, sim senhor. Porque esses
espantos, imagina talvez que não serei capaz ? Por peor que escreva, sempre há de
ser melhor que as bobagens que o senhor lá escreve.
— Mas é preciso auctorisação da
redacção.
— Não quero saber d’isso. O senhor
lá se arrange com ella, na certeza que, e tome bem conta no que lhe digo, o que
eu escrever há de ser publicado.
Ora, aqui têm os leitores a razão
por que fui obrigado a fallar-lhes hoje na minha sogra. Lá a deixei, agora em
casa, ás voltas com os apontamentos sobre
a arte de tourear, e na firme resolução de fazer amanhã a chronica sobre a
festa artistica do José Bento (de Araújo) !
Já viram uma infelicidade igual ?
Não, eu sou mesmo muito caipora !
Antes de sahir para comprar o tal
camarote, ouvi muito barulho na sala de jantar. Espiei pela fechadura e… oh
céos ! D. Fagundes fazia estudos tauromachicos preparatorios para a sua
chronica ! Imaginem os leitores que mandou tirar mesa e cadeiras da sala, e
improvisou ahi o seu redondel.
Obrigou o copeiro e a criada a virem secundal-a no seu estudo de sortes, esta
como capa e aquelle como féra ; e
assim fui deparar com ella, escarranchada n’uma cadeira de pallinha, que seus
rechonxudos quadris escondiam por completo, deixando apenas apparecer as quatro
perninchas douradas.
Levantando o corpo, levava comsigo a
cadeira e assim corria pela casa nas pontinhas dos pés, em grande algazarra. Ora
fingia fugir do touro (o meu pobre criado), dando-lhe tremendas bengaladas, ora
consultava o livrinho e gritava : esta foi á meia volta — e traz, lá ia outra
bengalada. Mas felizmente a corrida
não durou muito tempo. O cavallo tinha pouco pé. Partiram-se-lhe as perninhas
douradas, e minha illustre sogra estalou-se por sobre o copeiro, agarrando-se
na quéda ás saias da criada, que rebolou, por sua vez, sobre uma linda jarra do
Japão, que se fez em fanicos !
Eu não vi mais nada. Puz o chapéo,
fugi como um doido, e tomei o primeiro bond, por signal que era um cara dura. Comprei-lhe o camarote e
amanhã lá vamos para a praça das Laranjeiras.
Não me posso fazer uma idéa do que a
minha sogra lhes irá contar. Ella disse-me que no tempo de seu fallecido
Carneiro — que Deus haja — dedicou-se muito á litteratura. Emfim, veremos. O
que peço aos meus leitores é que tenham paciencia, e queiram indulgentemente
digerir, só por esta vez, a chronica de D. Fagundes. A avaliar pelos preparos,
deve ficar cousa supimpa. Já mandou comprar 5 lapis Faber, 3 cadernos de papel
e uma borracha !
Adeus, pois, meus bons leitores, e
ao passar o lapis a minha sogra, torna a implorar indulgencia quem é mesmo
muito caipora. — Salero.
———
Tivemos hontem um dia londrino. Bem
nublado, atmosphera carregada e ameaçando chuva.
A grande festa do dia era a tourada
em beneficio de despedida do arrojado cavalleiro José Bento de Araujo.
Esperava-se uma enchente na praça
das Laranjeiras, e assim foi. Ás 3 ½ horas a praça estava repleta de amigos e
admiradores do sympatico toureiro, e todos esperavam impacientes o toque do
clarim, que, dando entrada á quadrilha, dava ao mesmo tempo começo á tourada.
Emquanto esse momento não chegava, a musica tocava um maxixe. Achamos impropria tal musica n’uma praça de touros. Salvo
quando trabalha Pae paulino com a sua afamada troupe (que tambem não admittimos n’um redondel), afora isso, pensamos que deveriam escolher musica mais
apropriada. Por exemplo, musica hespanhola.
É um absurdo querer abrazileirar
touradas, e com isso só conseguem tirar-lhe toda a côr local e graça. Parece
isto uma insignificancia, mas não é. Tira toda a graça a uma tourada ouvir-se o
maxixe, e parece-me que a maioria do publico pensa commigo. Agora que José
Bento (de Araújo) vai á Europa, é boa occasião de nos trazer de lá um bom
repertorio.
Como parece que vamos começar vida
nova é preciso fazer á empreza a seguinte observação : Não é justo que quem compra
um bilhete de camarote com cinco entradas e vae para as touradas com quatro
pessoas, chegue lá e encontre um camarotesinho
onde mesmo tres pessoas já não estão
á vontade. Na praça das Laranjeiras há camarotes grandes, medios e pequenos, é
pois muito racional e indispensavel que as entradas e preços estejam em relação
com o tamanho dos camarotes. Um camarote de touros parece-me que não é nenhum bond onde uns vão sentados e outros de pingente. O mais curioso é que nos
camarotes de cinco entradas só há quatro cadeiras !

Tocou o clarim. Pouco mais são de 3
½, (Alfredo) Tinoco e José Bento (de Araújo) fazem os seus cumprimentos do
estylo e começam as cortezias. Os cavallos são os mesmos de domingo passado ;
José Bento (de Araújo) vem de verde e amarello e (Alfredo) Tinoco de amarello
preto e verde, montando, como sempre, com elegancia e mestria ; observámos
ainda d’esta vez as defesas, ao
ladear, do cavallo que José Bento (de Araújo) montava, no emtanto estava mais
obediente que domingo passado.
Findas as cortezias, e ao novo toque
do clarim, appareceu-nos o 1º touro, preto, de pé e de boa estampa. Coube a (Alfredo) Tinoco, que, perdendo a sorte de gaiola,
por ter o bicho sahido sobre a
direita, não esperou, talvez por contar demasiado com a velocidade do cavallo,
deixando-se colher contra a trincheira. A entrada
foi má e o resultado não podia ser bom, houve terreno mal medido. Pareceu-nos que este bicho, talvez por estar
fraco, passou logo a querenciar-se.
(Alfredo) Tinoco conseguio rematar
com energia mais quatro ferros á estribeira e meia volta. Em seguida
Rocha, com a capa, trabalhou bem fazendo
quatro veronicas e um bom galleo. Foi pena que o Mattos mandasse
tocar a cabrestos, pois tinhamos um bom trasteio,
que poderia ter sido rematado com uma péga.
O 2º touro, preto, bem conformado,
de pé e muito bem engatilhado, foi bandarilhado por Calabaça,
Felix e Rocha, que trabalharam com vontade, enfeitando o bicho com cinco pares e
meio, á meia volta sobre o curto e
quarteando ao relance. Rocha trabalhou bem com o capote, rematando, porém,
muito mal o seu trabalho, largando a capa
nas hastes da féra. Foi pena.
O cabo dos forcados fez uma valente péga a sopé, encornando sobre a
direita e aguentando-se bem nos derrotes
da féra ; o bicho estava bem aplumado.
Foi
para José Bento (de Araújo) o 3º touro. Não o descrevo pois é o celebre caraça.
Desta vez porem o caraça não cumprio como costuma, o que difficultou
o trabalho. A sorte de gaiola,
offerecida á imprensa, falhou por não ter a rez
arrancado para o cavallo. Logo em seguida cravou José Bento (de Araújo) um bom ferro à estribeira o que lhe valeu uma merecida ovação.
Quando
tocaram a cabrestos estava a féra
enfeitada com quatro farpas tendo
José Bento (de Araújo) sido colhido no quarto ferro.
O
publico protestou contra o toque, mas o Sr. intelligente
fez muitissimo bem, pois o caraça
estava francamente no estado aplomado,
e nós não estamos em Madrid.
Depois
de vinte minutos de intervallo, durante os quaes nos mimosearam de novo com maxixes, veiu o 4º touro para ser
bandarilhado por Rodrigues, Cruz e Morenito, que fez um bom quito na sorte de gaiola.
O
bicho era de pé, grande, preto e bem engatilhado. Os artistas portaram-se bem
e a féra foi enfeitada com 7 pares de bandarilhas razoavelmente
rematadas, sendo tres á meia volta,
duas á trazcuerno e duas á quiebro.
O
trabalho de trastear foi pouco bom ; o
publico applaudio Cruz e Morenito, que se alvoraram em saltarellos, fazendo papel de clown.
Mandado
recolher o bicho, o publico queria péga e protestou. A féra estava
francamente com querenças, e no terceiro estado (aplomado), e devia mesmo ser recolhida.
Ao
toque do clarim, sahio da gaiola o 5º touro, torrado, pequeno mas mostrando bravura, com muito pé, e francamente
no primeiro estado (levantado). Foi para José Bento (de
Araújo), que trabalhou bem, cravando
tres farpas á meia volta e estribeira e mais 2 pares curtos. Depois do primeiro ferro curto, gritaram lá do sol : oh Zé, boa viagem, e vá lá uma á saude da rapaziada !
E José Bento (de Araújo), que sabe
agradar a todos, assim fez. Cravou o ultimo ferro
curto com mestria, e muito bem
rematado ; e como o dictado diz : «vox populi vox dei» o nosso querido José Bento
(de Araújo) há de fazer boa viagem.
Foi para a afamada troupe Pae Paulino (sem olho !) que destinaram o 6º touro.
O publico divertiu-se com as
palhaçadas e sortes que fizeram, e a gargalhada virou em palmas e bravos a uma
boa péga de cara a sopé com que remataram o seu trabalho.
Toca o clarim, e vem o 7º e ultimo bicho para José Bento (de Araújo). É
torrado, de muito pé, mal engatilhado.
Conhece a praça e a recarga de que se serve. Mas José Bento (de Araújo),
que tambem o connhece, d’aqui e da Europa, defendeu-se, e enfetou (NOTA : enfeitou?) bem o bicho,
que entou para o touril ao mesmo tempo que todos se levantavam. Tinha terminado
a corrida.
Foi a melhor tourada da época, e se
não foi optima foi razoavel.
D. Fagundes Carneiro.
In A NOTICIA, Rio de
Janeiro – 4 – 5 de Julho de 1898