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Tauromachia
Soberba tarde, de sol dos tropicos
flammejantes, imponente, a rasgar no céo a limpidez azul dos grandes dias
festivos. Hesitava-se nessa contemplaçáo, seria o céo carioca ou seria o
firmamento de Sevilha, esta belleza empolgante que curvava a tarde? Talvez o
refluxo de uns olhos azues, olhos matadores, que lá no alto, nos camarotes,
fitando o céo, formavam um esplendido duetto de luz balsamica.

Na praça, concurrencia animadora,
“sombra” movimentada, “sol” modesto; pelos camarotes cantava a garridice das
damas em vestuarios claros, dous delles, juntos, unidos, ostentavam a graça
infinita da união hespanhola: do peitoril, a derrramar scintillações de sêda,
pendiam festivos “mantons de manilla” (NOTA: mantónes de Manila) emmoldurando a graça subtil das damas;
destes surgia, como um riso humanizado, como uma alegria viva a trefega figura
de Carmen Ruiz (NOTA: Ruiz Moragas,
Carmen. Madrid, 10.IX.1896 – 11.VI.1936. Actriz y amante de Alfonso XIII.),
a lembrar um poema de Merimée, moldado em rimas de Campoamor.
Offuscava o seu olhar fascinante. Dos
labios em constante sorriso pareciam “claveles” minusculos, diminutos,
emmoldurando um fio de perolas de ophir.
O rosto, levemente osculado pelo reverbero
do sol, fazia palpitar na viva accacia de seu olhar que tenta a maravilha, toda
a robusta e encantadora audacia das “salerosas” damas de Sevilha...
Mais adiante, em outro camarote, outra
nota hespanhola interessante de garridice. Guapa morena fazia escorrer pelos
cabellos bastos o rendilhado mourisco de uma vaporosa mantilha.
Mas já vae longe essa introducção; demos
agora a palavra a Justo Verdades para as apreciações da “corrida”.
Presidia o espectaculo tourino, como
figura decorativa, o transformista lisboeta Vaz, que com todo o seu poder
“sobrenatural”, não pôde transformar em mansos cordeiros os bons aficionados
que sabem empenhar os botins para occupar um modesto “tendido” na praça de
touros, onde ordena e manda o philosopho Dom José. Soou a “trompetilla” tourina
á hora regulamentar e os cavalleiros (José) Bento (de Araújo) e Marques,
vestidos á antiga usança, com casacas do anno passado, fizeram os cortejos
implantados por ordem real, durante o reinado de Fernando VII.
O primeiro touro da tarde era mais negro do que o betume aquoso esparramado
no canal do Mangue. Sahiu receloso e manifestou-se “marrajo” (NOTA: asturo) de primeiro grão. O lente
da “faculdade” tauromachica”, Sr. (José) Bento (de Araújo), com a capacidade
toureira que tem armazenada na massa encephalica, cravou tres ferros largos
bons, sobresahindo o segundo.
Os “muchachos de apié”, cumprindo religiosamente a sua
missão, “metieron” os capotes opportunamente e o populacho anacleto protestou
sem razão, (José) Bento (de Araújo), como sempre, colheu umas tantas “fanegas”
de palmas. O segundo, vestido de meio luto, imitou em tudo o seu irmão de
gaiola. Thomé e Alfredo Santos adornaram-lhe o “morillo” com tres pares e dous
meios.
Thomé esteve infeliz e Alfredo esteve á altura de
Santos Dumont, quando o celebre aeronauta brasileiro se elevou em Paris, no
anno de 1902. O terceiro cornupeto ostentava o grão de bacharelato em impureza.
Manuel Santos, “el chato” mas “flamenco” que recebeu
agua baptismal na heroica terra de Viriato, “clavó” um bom par á sahida da
gaiola e outro egual “al cuarteo”.
Maera, o toureiro de merito reconhecido, o “tio” do
capote; com todo “el angel” de um seraphim com “coleta”, depois de uma lucida “preparacion,
dejó en su sitio” dos pares superiores, ambos “al cuarteo”.
O quarto, que pisou a “arena se traia las de Cain”, por
ser receloso, “marrajo y rezabiado”.
Victor Marques, simulando nos labios roseos um sorriso
fingido (só para parecer com Don José (Bento de Araújo, seu superior
hierarchico), fez tudo o que poderia fazer o proprio Tinoco, se o immortal
cavalleiro levantasse a cabeça. Pôz tres ferros largos e recebeu uma ovação do
publico em testemunho da sua lucida faina.
O quinto, revelou-se mal humorado, com maneiras de “capoeira”.
Oliveira cravou tres pares “aboriados” (NOTA:
paridos antes de tempo, em castelhano – verbo:aboriar) e Alfredo Santos
dous muito acceitaveis, que lhe valeram muitas palmas.
Thomé e Maera passaram-lhe o capote com alegria e
arte, e Cantaritos, “ciñendo-se” (NOTA:
sinónimos do verbo “ceñir”, segundo a Real Academia Española: “rodear, abarcar,
abrazar, envolver, ajustar, apretar, estrechar, comprimir, oprimir, amarrar”.)
muito, o “muletéo” com “frescura” dando varios passes de peito superior.
O sexto, digno successor de seus antepassados,
mostrou-se doutor em sciencias occultas. Thomé deixou um bom par à saida da
gaiola, outro melhor, querendo “cambiar” e outro “al cuarteo” superior.
Manuel dos Santos cravou dous pares muito bons, e "ambos
a dos” receberam muitas palmas. Cantaritos “por não sei que irregularidade
commettida por não sei quem, recebeu os “trastos” de matar das mãos de Thomé e,
ajudado magistralmente pelo colosso Maera, fez uma lucida “faena”, dando passes
de peito com os joelhos em terra, o abdomen a duas pollegadas das pontas do
touro. Fez a sorte de matar e deixou assignalada no seu sitio uma superior
estocada.
Depois disso que direi?
Direi que varios aficionados portuguezes, visinhos de
logar, ao saberem que a minha humilde pessoa era revisteira tourina do “Jornal
do Brasil” disseram-me em tom indignado “o que aqui se passa, nuca se viu em
Lisboa e a culpa de tudo isso cabe aos fedelhos revisteiros, que vão por conta
da empreza...”Dios mio! será verdade tanta belleza?”
Agora Justo Verdades passa a palavra ao companheiro
para emittir parecer sobre a pantomina.
Ao signal do piston que finge de clarim, abriu-se o portão
e entraram dansando ao som do trepidante “Corta Jaca” o “Pouca Roupa” e mais
tres collegas encadernados em roupas exoticas, formando dous casaes, um de
calças e outro de saias. Depois dos comprimentos entre passinhos miudos de “catereté
misturado”, foram esperar o touro que lhes estava reservado. Corajosos todos os
quatros, provocaram gargalhadas francas pelos modos comicos com que crivavam os
ferros na féra, a praça parrecia vir abaixo com tanto riso. De uma feita, um
dos comicos, apanhados pelo animal descreveu no espaço a curva do desespero, em
salto mortal macio, e desceu em terra firme, fresco como uma alface, continuando
o seu o passinho de dansa. Os typos dos figurinos eram exoticos a valer, e um
delles, pela extravagencia do aspecto, provocava o riso á simples vista.
Imagine-se um latagão de pernas á mostra, saiote curto, castanholas nas unhas,
a dansar a seguidilha em frente do cornupeto!
E assim terminou a festa, sahindo todos em bicha,
alegremente, emquanto um de nós seguia dominado pela suave impressão daquelles
olhos, daquelle sorriso, daquelle camarote, daquelle “manton de manilla” (NOTA: mantón de Manila).
“Bemdita seas!
Justo Verdades e Raul.
NOTA: A biografia
de Carmen Ruiz Moragas pode ser consultada aqui:
https://dbe.rah.es/biografias/17725/carmen-ruiz-moragas
In JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro – 25 de Novembro de 1907