1896 - UMA TOURADA NO CAMPO PEQUENO - LIVRO: "TOIREIROS E TOIRADAS COM RETRATOS" - JOSÉ PAMPILHO (com prefácio de TRINDADE COELHO)



Arquivo digital CML

NO CAMPO PEQUENO

Na vespera, á uma e meia da noite. Eu e o guarda nocturno d'uma rua onde morei ha annos.

- Então, o que lhe parece?

- Hum! Já esteve peior do que está. O do n.º 26, 3.º andar, já saiu; o do 37, 4.º, ainda não entrou; a cabrita do 58, 3.º, continúa na mesma...

- Homem. não é isso o que lhe pergunto. Não quero saber das vidas alheias. Desejo que me diga se chove ámanhã.

O homemsinho tomou pose, collocou bem a lanterna na barriga, olhou para as astros e disse:

- O tempo, até volta das tres horas, estará um pouco esquisito, mas depois ha de aclarar e o resto da tarde apparecerá delicioso.

Despedi-me do Bandarra nocturno e fui-me deitar.

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O homem acertou. Ao começar a corrida o sol principiou a sorrir, aquecendo ao mesmo tempo a pelle dos espectadores, que sairam algo murchos da toirada, que não foi das melhores que se teem visto.

As cortezias, executadas pelos cavalleiros Manuel Mourisca e Fernando Ricardo Pereira foram um pouco nephelibatas.

Chegavam suas magestades ao camarote real, quando novamente deram entrada na arena os mesmos cavalleiros Mourisca e Ricardo Pereira, a fim do primeiro dar a alternativa ao segundo.

Após um pequeno discurso, que não se ouviu, o Mestre passou o ferro a Ricardo, o qual se poz em posição. Ainda o homem do cornetim tomava folego, já se via na arena:

O 1.º toiro, caraça, aberto de pitones, listão e de muito pé. Recebeu de Fernando Pereira um ferro á gaiola e em seguida sete ferros largos e um ferro curto em differentes sortes. Applausos.

Saiu do curral, sem ver o artista, o 2.º, preto, e de paus pequenos. Calabaça ferrou-lhe um bom par e Raphael um tambem bom. O bruto deu tamanha pancada nas taboas, que se desembolou d'uma das agulhas. Os Anacletos berram desesperadamente, que o boi está desembolado, e manuel Bottas manda tocar. João Calabaça ainda colloca um par e o mesmo quer fazer Raphael, mas não pôde satisfazer a vontadinha, porque o animalejo, que por signal era bonitinho, tratou de se raspar lá para dentro. Ao pé dos companheiros estava melhor.

Era manso como um cordeiro, e berrendo em preto, rabalvo e mal armado, o 3.º. Minuto, á gaiola, deixou-lhe um grande par e em seguida um á meia volta. O bandarilheiro de Torerito plantou um a toro parado. Tambem só assim. Ouvem-se algumas piadas ao lavrador, que se torna vermelho como um pimentão. Outros fazem-se pallidos, e ainda ha outros a quem nada faz mossa. Questão de temperamento.

Custou a sair o demo do 4.º, um bicho dotado de mansidão inverosimil. Uns dizem que a rez estava a dormir a somno solto; outros asseveram que era uma questão de portas ou de cordas. Em quanto se tratava de fazer apparecer o reles cornupeto, o publico do sol entreteve-se a pedir que Cadete, que se achava no sector n.º 1, descesse para bandarilhar, mas Jorge fez ouvidos de mercador, no que andou muito bem. Theodoro Gonçalves e João Roberto inutilisaram um par cada um.

Recolhido este, sae o 5.º, preto, mal armado, de muitas arrobas e um macacão de respeito. Mourisca fez a sorte de gaiola, tendo o cavallo beijado. Depois enfeitou o cachaço do tunante com quatro ferros largos, como Deus manda. O macaco entrou no toiril sem auxilio de cabestos.

Negro como uma amora e gaiolo era o 6.º, que foi bandarilhado pelo espada. Torerito collocou meio par á gaiola e tres pares a curteo, bonissimos. Pegando no capote fez cinco veronicas. Cambiando o percal pela muleta, brinda pelas buenas niñas (maganão) e pelos buenos aficionados (espertalhão), executando, após o curto discurso, alguns passes muito dançados, dando por terminada a faena com uma boa estocada. O toiro, que era duro de cabeça, atirou fóra dois forcados. O terceiro, mais feoliz ou mais valente, lá lhe ficou entre os paus.

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Intervallo. Saem alguns pandegos. Vão refrescar as guellas. A maioria fica a ouvir um fadinho, deliciosamente tocado pela banda da guarda municipal. Já se achava no redondel o 7.º, quando retomaram o seu logar alguns retardatarios, que se tinham demorado a decilitrar. Devia haver uma campainha, como nos theatros. A despeza é pequena e a coneniencia de tal melhoramento salta aos olhos.

Mourisca, á gaiola, deixou um esplendido ferro, e em cinco minutos enfeitou o morrillo da rez com sete ferros largos. Apontou muito bem um par de curtos, que não ficaram. É porque n'aquelle sitio a pelle do boi era mais dura do que a pedra. Talvez callo da canga, salvo seja. Tomára eu um conto de réis por cada toiro, que anda ao trabalho! E fazem um serviço magnifico. Mas ás vezes fartam-se de escangalhar cangas e arados. São uns animaes, que se revoltam contra tudo e contra todos. A delicadeza chegou ali e parou.

Não desgostei do 8.º, preto, e que ma pareceu bom moço. Foi para Raphael e João Roberto. O primeiro chico metteu meio par á gaiola e cuarteou um bom par; o segundo aproveitou tres pares, que não alegraram ninguem. Calabaça, que quiz tamberm molhar a sua sopa, espetou um par. Torerito alanceia de capote. Um forcado, que tenta pegar de costas, vae de peitos ao chão. O outro, que pegou de frente, fechou-se bem com o toirito. Por onde se prova, que o trabalho de frente é menos perigoso e de mais seguro effeito.

Era para Theodoro e Minuto o 9.º, preto, listão e cornialto. Quando os dois muchachos se aprestavam para a lucta, a maioria do publico pede Cadete em alta grita. Theodoro collocou um par magistral, Minuto meio bom e o bandarilheiro de Torerito um rasoavel. A gritaria recrudesce. O sol, inflammado, e uma parte da sombra, pedem Cadete em grande gritaria. Este desce do seu logar, mas uma parte da sombra protesta e obriga Jorge a retomar a sua almofada. N'esta occasião o penante do Bottas oscillava na cabeça do sympathico director de corridas. Serenado o tumulto, Theodoro tira algumas veronicas, que lhe valeram muitas palmas. Um sujeito, que se sentava na contra-barreira, disse: 

― Hoje houve duas manifestações: uma a Elias Garcia e outra a Jorge Cadete; mas na ultima houve contra-manifestação e a minoria venceu a maioria.

Para Fernando Ricardo foi o 10.º, que foi castigado com sete ferros largos, sendo um na sorte de gaiola. Ricardo foi muito festejado pelos seus amigos e admiradores, que lhe offereceram algumas corôas e outros brindes. Piada d'um ratão:

― A este offereceram tanta coisa e a Mourisca nem uma rosa murcha!

Esclarece um amigo do citado ratão:

― Isto é da praxe; quando um artista toma a alternativa, recebe sempre presentes mais ou menos valiosos.

O 11.º e ultimo foi para os debutantes Carlos Felix, de Setubal, e Homem de tal, da Barquinha.

O 12.º não foi lidado, porque de manhã partiu um dos paus.

Quando o Homem, da Barquinha, foi para a gaiola esperar a investida do toiro, gritou dos sectores da banda do Lumiar um sujeito:

― Que lindos olhos tem o mocho!

O Homem, da Barquinha, estremece e perde a côr. Por pouco não cae. É porque elle imaginava, como uma vez succedeu em Alcantara, que aquillo tudo desanadava á bordoada. Felizmente não houve mortos nem feridos. O Homem, da Barquinha, não viu correrias de gentes de armas, mas viu-se azul com um bicho armado. O excellente rapaz lá collocou no toiro alguns ferritos. O mesmo aconteceu a Carlos Felix, que estava muito impressionado.

Resumo. Sete toiros maus e quatro rasoaveis. Manuel Mourisca bem, principalmente no seu segundo toiro. Fernando Ricardo Pereira, que ainda precisa estudar, esteve feliz, sobretudo na segunda parte. A gente não nasce feita. Tambem eu, quando vim á luz do dia, não sabia o que sei hoje. Tempo e estudo é o que se requer. Desejamos vel-o mais alegre e mais desempenado. Nada de tristezas.

Torerito, bem em bandarilhas e com o capote. Na muleta deixou a desejar. Muito trabalhador e muito modesto. O seu bandarilheiro não é nenhuma notabilidade. Theodoro, valente e fazendo coisas bonitas. Minuto teve bons pares de ferros. Calabaça e Raphael houveram-se bem. João Roberto parece ás vezes uma alma penada. Nunca ha de perder a maldita mania de deixar o capote na praça quando toma o olivo. Quanto a Carlos Felix e ao Homem, da Barquinha, pouco fizeram. Não admira; era a primeira vez que pisavam o chão da praça da capital.

Á saida abordei a conhecida amadora, que eu encontrei na toirada do Barreiro, e que me deu a sua opinião sobre a corrida, como então contei. Perguntei-lhe o que pensava da toirada a que acabavamos de assistir.

― Olhe, meu caro, a corrida não me satisfez em absoluto. Sol fraquito e pouca animação. Toiros detestaveis, na sua maioria, como presenceou. O trabalho de Mourisca agradou-me; Torerito, com as bandarilhas, encheu-me as medidas; Theodoro muito catita; a pega de cara em fórma. Não sabe? A noite passada tive um sonho bisarro. Sonhei... Mas o melhor é não lhe dizer nada, porque o senhor é muito indiscreto e conta tudo quanto lhe dizem.

― Juro-lhe, linda creatura, que ácerca do sonho nada relatarei.

― Então lá vae. Sonhei... com uma toirada. 

Era no Campo Pequeno. Dia esplendido. Corriam-se toiros do Emilio Infante. Bravos e de grande poder. Era a festa artistica d'um cavaleiro. Toireavam a cavallo os colligados, Alfredo Tinoco, José Bento (de Araújo), Fernando de Oliveira e Manuel Casimiro. Ah! meu amigo, que corrida, que animação! As garupas do Tinoco, as tiras do José Bento (de Araújo), as estribeiras do Fernando e os ferros curtos do Manuel encheram me a alma de alegria. Recolhido o penultimo toiro acordei. E fiquei a pensar n'aquelles guapos moços! Que elegancia e que destreza! Não imagina a vontade que tenho de os ver trabalhar. Tenho a nostalgia do seu toureio...

11 de Dezembro de 1903: o cavaleiro José Bento de Araújo na corrida em honra de Alfonso XII, rei de Espanha
FONTE: Arquivo digital CML
A formosa mulher nada mais disse e despediu-se de mim. Dirigi-me para casa, e pelo caminho ia pensando, que isto tudo anda fóra dos eixos. Por culpa de todos, está bem de ver.

In TOIREIROS E TOIRADAS COM RETRATOS (com retratos), JOSÉ PAMPILHO (com prefácio de TRINDADE COELHO), M. GOMES EDITOR, Lisboa, 1896