1896 - UMA TOURADA NO BARREIRO - LIVRO: "TOIREIROS E TOIRADAS COM RETRATOS" - JOSÉ PAMPILHO (com prefácio de TRINDADE COELHO)




NO BARREIRO

Dia triste. As nuvens prenhes de fortes aguaceiros; mas os aficionados não recuaram um passo, e lá foram, uns de malvas e outros de casacos de borracha, assistir á corrida.

O vapor, que saiu ás duas horas, ia abarrotado. O que largou dez minutos depois tambem foi cheio.

Gente animada, anciosa por ver as prendas dos cornupetos do Ferreira Jordão. N'um grupo fallava-se de amor; mais além, dois nephelibatas discutiam a reforma do general Malaquias de Sá, e uns caturras, que iam á prôa, e que na estação tinham andado de Herodes para Pilatos, por causa do carimbo nos bilhetes, asseveravam, escanados, que o serviço do caminho de ferro do sul era muito moroso; que pegavam por qualquer ninharia. Um dos do grupo esclareceu, que aquella linha ferrea marchava a passo de boi, emquanto que a do norte e leste se movia a passo de toiro. O conselheiro Acacio não diria melhor.

Quando chegámos ao Barreiro, ainda a machina Loulé, que tinha arrastado dezesete carrugane com gentes de Setubal, de Palmella e da Moita, resfolegava como se tivesse lá nas entranhas um vulcão!

Pela comprida rua, que vae da estação á praça, centenares de machos e femeas marchavam açodados, de nariz no ar, e procurando nas algibeiras o bilhete dos toiros. Lá ao fim cortavam á esquerda, e, enterrando os pés na areia, davam a breve trecho entrada no circo taurino barreirense, que por um pouco não é beijado pelas aguas do rio. Visto de longe, o circo, parece mesmo que está á beira-mal plantado. É para um dia servir de delegação da alfandega, quando acabarem os toiros.

Nas bancadas do sol os seluvelões, os palmellões, os da Moita e de Alhos Vedros; na sombra, a rapaziada do Turf, do Marrare e do ministerio da fazenda, que é a secretaria de estado que conta mais amadores. Aqui e ali caras conhecidas: o Alfredo Tinoco, o José Bento (de Araújo), o Manuel Casimiro, e outros preclaros varões. De espaço a espaço uma senhora.

Depois de comprimentar os amigos e de tirar o chapeu reverentemente a um capitão reformado, que esteve para ser meu sogro, senti-me ao pé d'uma aficionada, para a abrigar, com o meu apara-chuva, de algum aguaceiro impertinente. No fim da corrida, perguntando-lhe eu as suas impressões, disse-me pouco mais ou menos o seguinte:

- A minha opinião é esta. Tenho assistido a corridas muito melhores, com cavalleiros consummados, com bandarilheiros de primeira ordem, com matadores insignes e com toiros de ganaderos de grande reputação; mas tambem tenho presenceado muito peior do que isto. Foi uma toirada regular. Eu esperava, attendendo ao tempo, que o gado estivesse mais magro, e, por consequencia, mais fraco. Olhe, o 1.º toiro era um animal bravo e voluntario ao cavallo; o 6.º, por exemplo, era um bom toiro, que não foi aproveitado como devia ser. Em summa, houve algumas rezes boas. Gostei immenso do trabalho do Fernando de Oliveira. Farpeou o seu primeiro toiro com arte e galhardia. Primoroso! No 2.º, que, como o senhor viu, era tunante formado em todas as faculdades, teve uma lide de mestre. Obrigar a marrar um calmeirão d'aquelles, só o póde fazer um grande artista. O seu primeiro cavallo é um lindo animal. Não conheço nada mais docil do que aquillo. É um toireiro. O segundo não é nada mau. Precisa, no entanto, mais lições. A cabeça está fóra do seu logar; olha ainda muito para os camarotes. O João Gagliardi deve pôl-o na afinação.

A gentil aficionada, após um momento de pausa, continuou:

- Adelino Raposo é valente, é corajoso, não conhece o medo, é modesto, é sympathico, mas necessita afinar o seu toireio. Teve dois ferros curtos de valor, é certo; porém nos compridos não me agradou tanto. Aconselhe o; diga-lhe a verdade sem refolhos. Os amigos ás vezes é que perdem os artistas. Dizem-lhes tanta coisa, que elles, ás duas por tres, já se julgam um conde de Vimioso ou um Manuel Mourisca.

Nova pausa. A minha formosa collaboradora pára a perguntar-me se quero que prosiga. Respondendo-lhe affirmativamente, diz ella:

- O trasteo de muleta e de capote de Conejito não me agradou. No entanto, gostei dos pares de rehiletes do seu bandarilheiro. Dos nossos artistas, Theodoro Gonçalves collocou bem tres pares; Jorge Cadete metteu dois bellos pares, e Minuto embebeu no morrillo do quadrupede alguns ferros de merecimento. Quanto ao amador Salgado, não gostei hoje d'elle. Apanhando um dos melhores toiros do curro, não se salientou como podia e devia. Foi timorato e precipitado. Entrava em sorte quando não devia entrar; e deixou perder sortes por abuso de precauções. Como o senhor viu, um dos grupos dos forcados esteve infelicissimo; o outro portou-se bem. parece-me que é de Palmella. Aquella primeira pega de cara foi archi-superior. É uma das melhores que tenho visto. Que alma... e que pulso! Valente homem! É pena ser tão feio. Se fosse bonito, tinha conquistado mais d'um coração. Finalmente a direcção da corrida, confiada a Jayme Henriques, não podia ser melhor, e a philarmonica de Alhos Vedros fartou se de desafinar.

Ao dizer isto, a amavel aficionada deu entrada no vapor, dirigindo-se immediatamente para a camara, para repousar um pouco. Eu fiquei em cima, a fallar com alguns amigos. Discutia-se acaloradamente. Fallava-se de toiros, de cavallos de combate e da reforma do general Malaquias de Sá. Encostei me á amurada, e emquanto o vapor, cheio como umovo (ou um odre), rasgava as aguas, e eu via desapparecer, a pouco e pouco, a praça de toiros, onde, minutos antes, se tinha verificado um dos espectaculos, que mais emocionam a alma dos peninsulares, um amigo dizia--e com a voz tremula:

- Olha que o vapor traz duzentas pessoas a mais. Se ha uma pequena desordem, muita gente cae ao mar; se a machina tem o mais pequeno desarranjo, vamos todos para o charco. Isto é uma grande pouca vergonha. Receber gente a mais da lotação, é uma patifaria.

Disse e repetiu isto umas poucas de vezes, mas eu pouca attenção lhe dava. Estava pensando n'um caso bizarro e estranho. Quando Fernando de Oliveira embebeu o ferro no cachaço do seu segundo toiro, o tal macacão, eu vi distinctamente o animal menear tristemente a cabeça, como quem pede compaixão, e uma lagrima cair-lhe dos olhos grandes e doces. Naturalmente, lembrava-se das noites de luar, nas lezirias, em companhia de algum ente querido...


In TOIREIROS E TOIRADAS COM RETRATOS (com retratos), JOSÉ PAMPILHO (com prefácio de TRINDADE COELHO), M. GOMES EDITOR, Lisboa, 1896