ECOS DOS VELHOS TEMPOS DE LISBOA - AS ESPERAS DE TOIROS E OS COSTUMES QUE SE PERDERAM

 


A entrada do gado, a pé, no dia ou na véspera das corridas, feita com aquela vida, aqueles movimento e vibração próprios dos espectáculos de esplendente, ruidosa e colorida realização, foram, e serão sempre, o motivo de grande atracção no povo português.

Campinos, cavaleiros, toiros e cabrestos, o povoléu que corre e grita, veículos dos mais variados que deslizam nas estradas e nas ruas, as janelas, muros e árvores a abarrotarem de gente que ferve de entusiasmo, tudo isto constitui um quadro de tintas fortes e cambiantes luminosos que a nossa retina fixa a par dos episódios pitorescos que tantas vezes sucedem.

Referimo-nos apenas a esse cortejo, exuberante de cor, que á a entrada dos toiros, e não à largada de cornúpetos de hastes limpas, nas ruas, como número planeado.

As esperas de gado vêm das épocas seculares em que os animais bravios viviam à solta nos campos e rude era a tarefa de conseguir a quantidade destinada aos torneios em que os toiros constituíam importante elemento. E sempre a passagem da manada era motivo de regozijo popular.

O tempo foi rodando e hoje já não existe a necessidade de caçar os toiros bravos, porque são criados em propriedades vedadas e a sua reprodução é feita segundo especiais características de tipo e de sangue.

Em Lisboa, as esperas foram uma das mais surpreendentes diversões da rapaziada do século passado (XIX), muito especialmente no tempo da praça do Campo de Sant'Ana.

Uma chusma de tipóias e cavaleiros dirigia-se na véspera da corrida para as Marnotas, ao encontro dos toiros que ali repousavam desde manhãzinha.

Dali partia o cortejo, seguindo pela Calçada de Carriche, Estrada do Lumiar, Campo Grande, e a manada descansava nas imediações do palácio Galveias, ao Campo Pequeno. Dada a meia-noite, tudo se preparava para tomar rumo para Arroios, Santa Bárbara e Campo de Sant'Ana, e à ordem do maioral lá iam os toiros na ponta da unha, com o ruidoso acompanhamento de campinos marialvas, povo, carruagens puxadas por velozes parelhas enguizalhadas e sempre na mão de hábeis batedores, que ansiavam obter o troféu da bandeirinha branca que se encontrava na porta do cavaleiro da praça de toiros, que existiu onde se ergue hoje a Escola Médica.

O palácio Galveias, no Campo Pequeno, e o frondoso ulmeiro, à sombra do qual tantas vezes descansaram os toiros lidados no Campo de Sant'Ana.

Esse costume lisboeta já se apagou há muito, e a propósito damos a palavra a José Pedro do carmo, que, no livro Toiros — Arte Portuguesa, diz o seguinte:

 «Com a demolição da praça do Campo de Sant'Ana acabaram em Lisboa as saudosas esperas de toiros.

Algumas vezes vieram desenjaulados para o Campo Pequeno os curros destinados a este tauródromo, mas em nada se assemelhava essa condução de gado bravo às que em tempos idos foram as genuínas esperas».

A praça do Campo de Sant'Ana foi demolida em 1889; a do Campo Pequeno inaugurada em 1892, e já em 1896 o erudito aficionado Manuel Ferreira de Barros se queixava:

«Que diriam o conde de Vimioso, o marquês de Castelo Melhor e o conde da Anadia e outros, se vissem os toiros enjaulados!

As guitarras da Severa e de outras figuras chorariam plangentemente a abolição das suas queridas esperas de toiros».

Com a perda de tal costume, calaram-se as guitarras e as vozes do sentimento e da alegria que predominavam nos centros de animação que eram os retiros que havia desde o Senhor Roubado, passando pelo «Colete Encarnado», até o velhíssimo «João do Grão», casa que existiu perto do local onde foi construído o Instituto Bacteriológico.

Dessa velharia mantém-se hoje apenas o «Quebra-Bilhas», no Campo Grande, o «Altinho» no Largo do Mitelo, e pouco mais.

Ainda é principalmente o Ribatejo, com a ardência do espírito da sua gente, que vai resistindo à onda avassaladora que tende ao desaparecimento das festas de características bem nacionais em que figura a espera de gado. Moita do Ribatejo, Vila Franca de Xira — que marca na heráldica com o seu «Colete Encarnado» e correspondente àquele entusiasmo com que Alcochete ostenta o seu «Barrete Verde» e amanhã Santarém erguerá o seu «Pampilho de Oiro».

Na verdade apreciamos as entradas de toiros, mas sem os exageros deploráveis que não oferecem interesse algum.

Lisboa transformou-se; é uma sombra do passado. Apagaram-se tradições dum curioso pitoresco.

E, a propósito, o crítico de Arte e olisipógrafo de grande relevo que foi Nogueira de Brito, queixava-se e com funda razão no prefácio do livro Evocações do Passado de José Pedro do Carmo, publicado há alguns anos:

«Lisboa foi a pouco e pouco perdendo a sua feição de terra despreocupada, onde havia uma ingenuidade da diversão popular que a recomendava, e até a engrandecia, a olhos de nacionais e estrangeiros.

E tudo sofreu o embate, a cilindração do progresso, tornando difícil a expansão das camadas populares condenadas a esse arremedo de europeização.

Subúrbios e até alguns pontos relativamente centrais da Lisboa oitocentista sofreram a derrocada de recantos simpáticos, de usos inofensivos, mas gratos ao povo alfacinha e, como por encanto, a cidade transformou-se.

O camartelo demolidor arrancou das velhas paredes caiadas os sugestivos registos de azulejos, tão nossos, esventrou desalmadamente trechos de carácter citadino tradicional e, tomando conta de tudo, condenou hortas e locandas, arrasou vergéis e recantos floridos e a própria sombra do arvoredo caseiro foi atirada para longe para que, nas paragens onde ela benèficamente protegia gente pacata ou buliçosa, se erguessem caixotes esburacados de janelas uniformes a fingir da grandeza arquitectural.

Acabaram os retiros dos arredores que deixaram de o ser, as guitarras, e os seus cantores e essa Arte a valer, que não era incompatível com as horas alegres do povo, arrebicou-se».

É assim mesmo. E não se pense que a radical transformação, por que Lisboa passou, data de há muito tempo. Não senhores: há uns quarenta anos. Desde então que se está verificando acentuada mutação na fisionomia citadina.

Os costumes, esses então, vêm sofrendo uma modificação considerável. O povo vivia e divertia-se de outra maneira.

Daqui a muitos anos ainda se falará, com saudade, do Suíço, um dos mais típicos cafés taurinos de Lisboa.

No desfiar das recordações de longínquos tempos, acode-nos à memória o Café Marrare, que era um centro do marialvismo e gente de teatro, junto do Hotel Francfort de Santa Justa; a cocheira do Espanhol na Rua dos Correeiros, onde eram alugadas montadas a alguns amadores do toireio e aos passeantes da Avenida, do Campo Pequno e do Campo Grande que transitavam pelas portas do Rego que desapareceram, passando, mais tarde, o maior movimento a fazer-se pela Avenida da República¸as damas de tournure; os cavalheiros de sobrecasaca cintada e chapéu alto; a rapaziada de calça apertadinha e madeixas puxadas para a testa; os janotas do Chiado; os batedores das tipóias cujas parelhas feriam lume nas calçadas, esses clássicos veículos que nos inspiraram um capítulo do livro Fado, Mulheres e Toiros; os bailes de máscaras no Salão da Trindade, nos Teatros de D. Amélia, D. Maria, Real Coliseu e no das Portas de Santo Antão, com as suas habituais cenas de pancadaria de que eram protagonistas brigões enciumados; os retiros instalados em pitorescos rincões sitos fora de portas: «Perna de Pau», «Zé dos Pacatos», «Águia Roxa», «Fonte do Loiro», «O Casaca», perto do local onde fica hoje «Montanha», «Tia Iria», «Caliça», e nestas casas era praxe, em quarta-feira de Cinzas, confraternizarem toireiros e artistas de teatro.

Ali apareciam guitarristas das mais variadas condições sociais, que desferiam notas de cristal nas suas banzas da forma dum coração, para acompanharem, nos seus expressivos fados, o Caixinhas, a Amélia das Laranjas, a Júlia Florista, a Júlia Mendes, a Maria Vitória, etc., que cantavam sem o objectivo de exercerem profissão fadista, mas simplesmente para darem ao ambiente uma feição portuguesa, enternecendo os ouvintes e a si próprios.

Mais nos fala a lembrança dos verdes anos da mocidade: as toirinhas e as cavalhadas; os cafés cantantes — com o virtuoso da guitarra Luís Petrolino, o mestre do Armandinho — o concerto Chat Noir, da Rua do Alecrim, casas em que a juventude folgazã se divertia na época que antecedeu ao aparecimento dos clubes Maxim's, Magestic, Bristol, Palace, Mayer e outros, e para onde debandaram os frequentadores alegres daqueles cafés que eram sucessores dos antigos botequins; as feiras de Alcântara e Belém, derivadas da outra das Amoreiras e seguidas pela de Agosto na Rotunda, e de Santos, e, modernamente, pela que o diário O Século organiza, há quatro anos, no parque José Maria Eugénio — onde há trinta e tantos anos funcionou o Jardim Zoológico e o velódromo —, a favor da sua notável obra de assistência da Colónia Balnear Infantil.

No velódromo de Palhavã assistimos a algumas corridas com Belo de Almeida e a outras do memorável campeonato internacional, a que concorreram o nosso José Bento Pessoa, o ás dos ciclistas portugueses desse tempo, e os franceses Jacquelin e Buisson.

Já que falámos das feiras populares de Lisboa transitemos para o teatro de revista que constituía um prato indispensável e saboroso para o povo que ali buscava horas de distracção. Nesse género de teatro havia escritores da especialidade — autênticos continuadores do Jacobety — o Penha Coutinho, o Baptista Dinis, Celestino da Silva, Lino Ferreira, o Artur Arriegas, nosso inesquecível amigo, que era um poeta romântico — provou-o no seu livro de sonetos Neurasténicos — e que, em certa altura, se dedicou à feitura  de obras de teatro ligeiro e de semanários humorísticos, alguns da sua propriedade, e outros apenas da sua direcção.

O toireiro Manuel dos Santos também meteu no Teatro Chalet, da feira de Alcântara, a revista «Colhido e volteado» que deu uma boa série de representações; porém, uma das mais gritantes que se representaram nas feiras foi a «Zás, trás, pás».

Nesse tempo estavam na berra os artistas dessa classe de teatro: Isabel Tainha, Perpétua Viegas, Júlia mendes, Rebocho, Eusébio de Melo, e outros mais.

As últimas revistas de que nos lembramos nos teatros da feira de Agosto foram: «A Espiga», «Zig-Zag» e «Águas de Bacalhau» e para algumas destas obras compôs música dum popular encanto o devotado amigo, que não olvidamos, o maestro Alves Coelho.

Na voragem destruidora dos costumes de outras eras, foram-se as tardes em que as famílias iam para a Avenida da Liberdade ver passar as equipagens, cavaleiros e amazonas que à toirada se dirigiam; as festas artísticas dos toireuiros; os bandos anunciadores das corridas que tanta vida emprestavam aos bairros populares; os pregões alegres dos mil vendedores de tanta coisa de que se necessita na casa de cada um; os círios da Atalaia; os bailes campestres; as marchas buliçosas que consecutivamente passavam sob as nossas janelas nas noites dos santos populares; campeonatos dos desportos nacionais que eram o jogo de pau e o chinquilho de tão populares tradições; os grupos dramáticos das sociedades de recreio, de onde saíram tantos actores; o próprio Carnaval com o seu frenético movimento, e o bom gosto na apresentação de carros tirados por belas parelhas e guiados por adniráveis mãos de rédea como eram José Libânio, Ribeiro da Silva, João Barral — o tal que mandou construir uma vitória propositadamente para transportar o Guerrita em dias de corrida de toiros —, o Colares, o João Bregaro, o conde de Fontalva, o Anastácio Fernandes, o Dias Amado, das tisanas, etc.; a dança da luta , com as suas acrobacias executadas por homens da Bica vestidos de gladiadores romanos; as cegadas; os batalhões de Alfama e doutros bairros; e os da estudantada que atravessavam a cidade no meio de geral hilaridade, nas vésperas do Entrudo; os marialvas montados em lindos corcéis seguidos dos mestres de equitação Gagliardi, D. José Manuel da Cunha Meneses, António Correia, Miranda, Chaves e, por último, o José Mota e Carlos Telhado. Tudo foi para as regiões misteriosas do olvido!...

Já vão longe as temporadas anuais da ópera em S. Carlos; da alta comédia e da boa zarzuela no D. Amélia, depois República e agora Cine S. Luís; de opereta no Trindade e Avenida; dos cavalinhos no Coliseu da Rua da Palma e depois no das Portas de Santo Antão; de farsa no Ginásio; das peças históricas no D. Maria e dos dramas de faca e alguidar, do género grand-guignol, que fazia chorar as pedras da calçada... no Príncipe Real, hoje Apolo, e das revistas baptistinianas no Rato. E com isto também se foram as caricaturas fustigantes dos costumes e da política que saíam do lápis extraordinário de Rafael Bordalo Pinheiro, Celso Hermínio, Leal da Câmara e Jorge Colaço.

Até desapareceram das ruas desta cidade de mármore e granito esses tipos com quem topávamos constantemente: o rei da madureza, sapateiro e poeta; o José Augusto, dos sermões; as manas Perliquitetes; o Gaspar da Viola; o Anão dos Assobios; o Sr. Daupiás; o Santa Casa está roubada; o Luciano das ratas; o Homem dos abat-jours que apregoava o seu artigo com voz de tenor; a tarinta réis e a pataco... b... a... ra... a... to... o... o! e que pelo saudoso empresário Taveira, da Trindade, foi aproveitado para uma revista de Eduardo Schwalbach; o Tim das flores; o Vertical; o Comboio das onze — que ainda não há muito tempo o vimos, sempre a nove, cosido com as paredes a conversar consigo próprio; o Ravachol, o palrador que estava plantado num estrado, à entrada dos teatros das feiras populares, a chamar gente; o Pálidas Madrugadas; o Oportuno, com o seu bonèzinho de pala e que era um alho para descobrir namoros e oferecer os seus serviços na troca de correspondência dos bem-amados, sim, porque nesse tempo não havia telefones! Os comunicados eram todos feitos à força de missivas perfumadas!

Também tivemos o Burnay, um boémio incorrigível, muito delgadinho, como os cigarros que chupava, sempre altivo, e espirituoso na conversação; e subia e descia diàriamente o Chiado em busca de amigos e conhecidos a quem pedia emprestada aquela coisa com que se compram os melões, e por tal razão lhe chamavam o Precurador Geral das Coroas! Foi-se o Tremidinho, e hoje temos o Zé Maria, o Cauteleiro fardado, que se expressa em latim como fosse formado nalguma faculdade, o que não é de admirar, dada a quantidade de anos que esteve empregado numa casa de comidas, em Coimbra, muito frequentada pelos estudantes da Universidade. «Hoc opus hic labor est», exclama ele agora para vender as várias fracções de lotaria, o que lhe já vai sendo difícil pelo peso dos anos que lhe está quebrando o desembaraço.

Os anos passam, a idade derrota a vida, e todos seguem o caminho das malvas — passe o plebeísmo — não há dúvida. Mas o certo e que a esses tipos não se seguiram outros com o mesmo espírito, com aquele pitoresco e originalidade que dão carácter a determinados ambientes.

Mas apareceu o fado industrializado, à sombra do qual algumas damas se apresentam nos tablados recamadas de jóias, envergando sedas e a cantar sambas, tangos e o «Antonio Vargas Heredia» num flamenco... estilo mascavado!

O modernismo arrasou o melhor que o passado nos legara.

Várias vezes ouvimos pela radiotelefonia a transmissão de diversos serões festivos. Pois uma coisa nos produz estranheza: é que as ovações mais calorosas, que afogam as goelas dos difusores, estalam depois de se ter ouvido um swing, um fox... Uma loucura!

E dizem-nos que isto são expansões da rapaziada e da raparigada que frequentam os bailes. É sintomático. Precisamente à juventude é que se torna necessário dizer que o nosso país possui música linda que não deve ser preterida pela dos sertões!

O progresso desfez tantos e tão interessantes costumes da nossa terra, mas, em substituição, trouxe-nos os cabeleireiros de senhoras e bares para as acanhadas ruelas da Moiraria e Alfama e outros bairros de gente do povo; as damas pintadas das pontas dos cabelos às unhas dos pés; o êxodo do ambiente familiar, etc. E depois ribomba, constantemente, o trovão da vida cara!

Por muito tempo que vivamos, sempre se nos apresentará a visão dos quadros típicos do povo da terra lisboeta e as colinas recamadas de casinhas com os seus telhados vermelhos e de roupa branquinha às janelas.

Não esqueçamos o pitoresco e o ar castiço da velha cidade «cuja graça é Lisboa», ainda não há muito cantada pelo nosso estimado amigo de muitos anos e excelso escritor Bourbon e Meneses, em prosa cristalina tecida com mão de mestre na sua tebaida onde entra o perfume das florinhas que, enamoradamente, cultiva, ali, na vertente do Castelo, mui pertinho da portuguesíssima Rua da Saudade, nossa vizinha há cerca de meio século.

In LISBOA DAS TOIRADAS, Pepe Luis, Livraria Popular de Francisco Franco, Lisboa - s.d.