1 DE ABRIL DE 1888 - LISBOA: O CAVALEIRO JOSÉ BENTO DE ARAÚJO NA ÚLTIMA CORRIDA DA PRAÇA DO CAMPO DE SANT'ANNA


 

A PRAÇA DE TOIROS DO CAMPO DE SANT'ANNA



A antecessora do actual Campo Pequeno levou um ano a construir e teve meio século de doirada existência

Está provado que a primeira praça de toiros que houve em Lisboa, e de certa duração, foi a da Junqueira, inaugurada a 8 de Julho de 1738, com os cavaleiros duque de Cadaval, marquês de Alegrete, marquês de Távora e Manuel Sampaio de Melo, que toireavam a rojão, auxiliados por quatro «capinhas» ou «toireiros volantes».

Tudo isto foi devido à ideia de se manter os espectáculos de outrora, em que prevaleciam a elegância e o arrojo de titulares, que bem cavalgando, cravavam garrochões no alto do cachaço de bravas e corpulentas reses.

As toiradas da Junqueira eram alternadas com jogos de cavalaria, em especial as canas e alcanzias, todos eles constituindo manifestações de destreza, com formidáveis alardes de equitação, em que os portugueses sempre foram primorosos.

Nas corridas de toiros realizadas na dita praça, na primeira metade do século XVIII, vigorava a usança de o cavaleiro se apear quando era desfeiteado pelo toiro em rude arremetida, para valentemente, em luta arriscada, cravar o estoque ao adversário, que tombava vergado ao ímpeto vigoroso dum esforço.

Dos cavaleiros aristocratas de então havia um que sobrelevava todos: o 3.º duque de Cadaval, que ocupou o lugar de estribeiro-mor da corte de D. João V e foi habilíssimo no toireio a cavalo e também no de pé, que nos terreiros e praças estava alvorecendo.

Na segunda metade do século XVIII, cerca de 1763, foi edificada, no local onde está hoje o Jardim da Estrela, uma praça de toiros, efectuando-se ali corridas com a antiga pompa, e uma se recorda que foi a comemorativa do natalício do príncipe da Beira, o filho de D. Maria I.

Toirearam exímios cavaleiros portugueses; um espada, peões auxiliares (capinhas) e picadores espanhóis; e cooperando também na função robustos moços de forcado, todos rapazes da Borda d'Água.

Noutros brincos de toiros se salientaram o cavaleiro João Gambeta e capinhas espanhóis.

No Campo de Sant'Ana houve, por volta de 1767, uma praça na qual deram nota destacada os cavaleiros António José de Araújo Gramato e José Soares Maduro; e o intervaleiro «Coxo de Benavente».

À roda do ano de 1771 realizaram-se toiradas nos terrenos juntos ao palácio do marquês de Louriçal, cerca do actual Largo da Anunciada, e onde, mais tarde, existiu o Passeio Público que precedeu à parte da entrada da Avenida da Liberdade.

De 1790 a 1830 realizaram-se toiradas na praça do Salitre, que existiu a meio da actual Avenida da Liberdade, defronte da entrada da rua que deu o nome ao circo referido, o qual teve na sua inauguração a presença do príncipe D. João — que mais tarde subiu ao trono sob o título de D. João VI —, da sua comitiva completa e do famoso intendente Pina Manique. No Salitre ficou memorável a actuação dos cavaleiros Gambeta, Sousa Belo, Máximo Veloso e João Grilo, os espadas portugueses Faria, Joaquim Grilo, Roquete, Mendonça, Bacharel, que estoquearam de verdade; e capinhas, os primitivos Calabaças e Cadetes.

A referida praça terminou os seus dias adaptada a espectáculos de teatro e de circo.

No Poço dos Negros, perto do Beco do Carrasco, em 1818, foi levantada também uma praça de toiros, de que era proprietário José Pimentel Bettencourt.

Apeada a referida praça do Campo de Sant'Ana, uma outra foi erguida no local onde está hoje a Escola Médica e que constitui berço artístico de muitas figuras da tauromaquia nacional. Então as corridas tinham doze e treze toiros, alguns mastodônticos, dizem as folhas do tempo. Um documento curioso afirma que nas primeiras fases do Campo de Sant'Ana toireava-se de lenço atado na cabeça e de cigarro na boca, e o neto era alvo de todas as chufas e o mais apupado depois da autoridade. Não havia inteligente e os toireiros sabiam menos, mas trabalhavam mais!...

O traje de luces e a montera, marcando a elegância do lidador de pé, só apareceram no penúltimo quarto do século passado e a ciência taurina progrediu a par do luxo da indumentária.

A histórica praça de toiros, de que ainda hoje tanto se fala, foi aquela que se seguiu à que no mesmo local deixou de existir por volta da primeira década do século XIX. É da segunda praça que nos vamos ocupar, embrenhando-nos nas crónicas da época e servindo-nos também das narrativas a que desde rapaz os nossos ouvidos se habituaram.

Os entusiasmos que se notavam na deficiente praça do Salitre muito concorreram para o nascimento dum tauródromo de construção mais perfeita e dentro das possibilidades de então; e daí a razão por que D. Miguel, que o povo cognominara de «príncipe-toireiro», bastante influiu para que fosse lavrado um decreto autorizando a Real Casa Pia de Lisboa a proceder às obras, revertendo exclusivamente o rendimento da praça para aquele estabelecimento, que procura recursos para a manutenção de órfãos sem aparo que ali têm asilo carinhoso e educação.

A respeito da fundação da última praça de Campo de Sant'Ana, conta-se que, certo dia, D. Miguel determinou dar uma toirada de beneficência, e soube que o empresário da velha praça do Salitre levantava dificuldades e regateava o preço do aluguer.

Mandou chamar o seu amigo Sedvem, cavaleiro célebre, encarregou-o de dirigir a obra de construção imediata de uma praça de toiros, sem olhar a despesas, e fez publicar um decreto que dava à Real Casa Pia o privilégio da receita daquela e doutras praças nalgumas léguas em redor. Ficou o D. José Serrate, explorador do Salitre, encerrado em sérios apuros e o público, contentíssimo com um circo taurino melhor, também gozou com a pirraça feita ao onzeneiro empresário.

Nasceu assim a praça do Campo de Sant'Ana.

A construção durou um ano e na tarde luminosa e quente de 3 de Julho de 1831 realizou-se a corrida da inauguração, com a assistência de D. Miguel e sua irmã, a infanta D. Maria da Assunção, e de tudo que havia de mais representativo na sociedade lisboeta.

Os cavaleiros F. Grilo e Veloso abateram toiros a rojão e nas quadrilhas dos «espadas» Sebastián García e Pedro José Rodriguez figurava o português José Mendonça, ex-aluno da Casa Pia, que um dia abalara para Espanha com o fim de se dedicar à profissão de toireiro, no que adquiriu certa fama.

Houve toiros lidados a pé, por bandarilheiros portugueses, entre eles António Roberto, Joaquim Grilo, Roquete e Bacharel, e o grupo de forcados compunha-se de dez elementos. Intervieram no espectáculo quatro intervaleiros pretos, cães de fila largados aos toiros mansos, e também se verificaram os duelos a que a arte sujeitava os cavaleiros quando o seu trabalho corria irregularmente.

Esse acontecimento marcou o início de capítulos brilhantes da tauromaquia nacional com os seus episódios de heroísmo, arte e deslumbramento, em que os nomes do conde de Vimioso e D. João de Meneses aparecem como legítimos herdeiros daquelas virtudes destacadas do marquês de Marialva, o estribeiro-mor do rei D. José I.

Seguiram-se outros fidalgos no cultivo da nobre arte do toireio equestre, que luziram em corridas de gala, para as quais a praça do Campo de Sant'Ana era decorada com panos de veludo e damasco, guarnecidos de franjas de oiro reluzente. Havia riqueza na decoração e gosto e elegância na indumentária dos cavaleiros e dos toireiros de pé, alguns deles também aristocratas.

O mundanismo fazia ali centro de reunião, para aplaudir a fina flor do amadorismo.

A magnificência subiu a alto grau por ocasião das corridas efectuadas quando do casamento de D. Luís I e da visita do rei de Espanha, Afonso Xii, em 1882, sendo a segunda promovida pelo conde de Fontalva, que nela toireou a cavalo, com Carlos Relvas e D. António de Portugal, da família Vimioso.


Durante os cinquenta anos de vida que teve a praça do Campo de Sant'Ana, no seu redondel desfilaram ganadarias de fama, como foram as de D. Rafael José da Cunha, Dr. Máximo Falcão, Roquete, conde de Sobral, Emílio Infante (pai), Dr. Laranja, D. Caetano de Bragança, Palha Blanco, Estêvão de Oliveira, etc.

A antiga praça do Campo de Sant'Anna, em Lisboa.
Foto: Arquivo da CML

Enriqueceram também os pergaminhos da história daquela praça (durante os seus 50 anos de vida), entre tantos nomes prestigiosos, os seguintes cavaleiros: Mourisca, marqueses de Belas e Castelo Melhor, Galveias, Batalha, D. Luís do Rego, Tinoco, os Monteiros, José Bento (de Araújo), Manuel Casimiro e Fernando de Oliveira, havendo os dois últimos ali tido auspiciosa estreia; os espadas: Cuchares, Frascuelo, Lagartijo, Fernando Gomez Gallo —  o pai do genial Rafael e do inesquecível Joselito —, Cara Ancha, Pescadero, Mazzantini, Punteret, que trouxe na sua quadrilha o bandarilheiro Filipe Aragô Minuto que ficou por cá alguns anos e foi encontrar a morte numa corrida na praça da Covilhã.

(...)

Mais elementos que muito se celebrizaram na velha praça: os três irmãos Pina Manique, os Caldeiras, Botas, os Robertos, José Cadete, os Peixinhos, Sancho, Calabaça, Caixinhas, Pontes, Poeira; os forcados Galache, Rafoa, Silva Lisboa, etc.

O cavaleiro José Bento de Araújo a actuar mais tarde na praça do Campo Pequeno, em Lisboa.
Foto: Arquivo da CML

Como não cabe aqui a história completa do toireio desse tempo, a lista não é mais extensa.

Antes, porém, de terminar estas linhas de evocação, salientemos as festas artísticas que eram espectáculos deslumbrantes; a banda dos cegos da Casa Pia que abrilhantava as corridas; as esperas de gado em buliçosas madrugadas; os bandos anunciadores das corridas, que eram cortejos garridos que atravessavam a cidade de lés a lés; a aura de que desfrutava o festejado dramaturgo e cronista taurino Salvador Marques que possuía o célebre semanário O Toireiro, que já em 1876 se queixava dos «toiros pequenos, raquíticos e linfáticos que comprovavam a decadência das raças!...»; a velocidade de seta dos azougados andarilhos Jorge Cadete e Manuel dos Santos, que mais tarde foram populares toireiros; os balões do capitão Martinez e de Mr. Bitard, que, saindo do Campo de Sant'Ana, caíram em vários pontos da cidade e arredores.

O espanhol pousou numa água-furtada cerca da Mouraria e enfiou pela janela que mais perto encontrou.

As locatárias, umas pobres velhotas, vendo entrar aquela avantesma vestida de encarnado, julgaram ter na frente o diabo!... Não ganharam para o susto!

(...)

Em 1878 terminou o velho hábito de as cortesias serem repetidas no final das corridas.

O primeiro espectáculo nocturno realizou-se em 1880 e, para isso, foi construído um dispositivo semelhante a um aracnídeo, de cujas pernas saíam bicos de gás. O povo ainda hoje chama «aranha» à instalação eléctrica que ilumina a arena do Campo Pequeno e tem o valor duma grande jóia cravejada de pedras preciosas... conforme se rumoreja.

Bilheteira da nova praça do Campo Pequeno, em Lisboa.
Foto: Arquivo da CML

Os últimos empresários daquela praça foram Alegria, Vitorino Marques — que também dirigia as corridas —  e Costa Guerra, homens inteirados no complicadíssimo mister de organizadores de espectáculos, sujeitos à mais rigorosa crítica, particularmente dos que nada perdoam.

A última corrida no Campo de Sant'Ana foi realizada sob a vigência da empresa Guerra & C.ª, que tinha como elementos principal o velho e competente Costa Guerra, o mais espanhol dos aficionados portugueses — assim o classificou Joaquim Sette que na Vida Ribatejana forneceu também esta pormenorizada notícia:

«A aura de pompa e de felicidade adejava sobre os seus propósitos; as temporadas foram das mais belas para a conquista de prosélitos.

Esse empresário proporcionou ao público os melhores carteles que se fixaram nos umbrais daquele circo. Tardes de emoção comunicativa avasslavam as massas.

Riscos iminentes atraíam a sentimentalidade. E as filigranas, prodígio de um estilo celso, arvoravam em ídolos os toireiros audazes. Mas... como o que é bom dura pouco, após quatro anos de exploração, Costa Guerra fazia anunciar para 27 de Novembro de 1887 a despedida da Empresa. Data que a chuva  fez transferir para 4 de Dezembro, e que pelo dito motivo só se efectuou em terça-feira, 6.

Apesar da época, a corrida, que começou às 2 ½ da tarde, foi magnífica. O curro, de Roberto & Irmão, saiu nobre e voluntário, tendo havido toiros bravíssimos, que pareciam ter tido a noção do festival.

Foram lidados a primor pelo saudoso grupo de artistas que trabalhou com o seguinte detalhe:

1.º para Casimiro Monteiro; 2.º para irmãos Robertos; 3.º para José e Rafael Peixinho; 4.º para José Bento (de Araújo); 5.º para Sancho e João Roberto; 6.º para João Calabaça e Minuto; Intervalo. 7.º para A. Tinoco; 8.º para irmãos Robertos; 9.º para José Peixinho e Minuto; 10.º para D. Luís do Rego; 11.º para João Roberto e José da Costa; 12.º para Calabaça e Rafael.


A apraça do Campo de Sant'Anna foi demolida em 1889.
Foto: Arquivo da CML

Tudo se organizou para a inauguração ser em Domingo de Páscoa, 1 de Abril de 1888; mas a vistoria dos peritos, ordenada a todas as casas de espectáculo, em virtude da catástrofe do teatro portuense Baquet, condenando o edifício, fez ficar nula toda a organização.

Eis porque a toirada de despedida da empresa Guerra & C.ª foi a derradeira no tauródromo das melhores tradições taurinas de Portugal».

In LISBOA DAS TOIRADAS, Pepe Luis, Livraria Popular de Francisco Franco, Lisboa, s.d. (provavelmente nos anos 40).


NOTA: A praça do Campo de Sant'Ana foi demolida em 1889. A do Campo Pequeno foi inaugurada em 1892.