3 DE JUNHO DE 1894 - LISBOA: UMA CORRIDA NA PRAÇA DO CAMPO PEQUENO COM TOUROS MAUS



Biblioteca nacional de Portugal

Chronica das touradas

CAMPO PEQUENO

9ª corrida da epocha = Espadas: Enrique Vargas, MINUTO, Francisco Bonal, Bonarillo. Sobresaliente: Fernando Lobo, Lobito. = Touros do sr. Visconde da Varzea.

Um dos principaes elementos para as boas corridas são os touros. E é isso exactamente o que tem faltado na praça do Campo Pequeno para o complemento dos bons espectaculos. Não ha, nem pode haver artistas, com maus touros, e d'ahi o ponto de partida para as corridas, embora recheiadas dos maiores attractivos, se torna em aborrecidas e semsaborenas. De que serve a empresa apresentar Guerrita, Reverte, Bombita, Faico, ou mesmo dois espadas dos modernos que tenham vontade de agradar, se os touros os não ajudarem? É trabalho baldado e esforços perdidos. É este o principal ponto a estudar e que merece com franqueza, um estudo muito serio, para que as corridas de touros continuem a agradar e para que a arte tauromachica seja engrandecida como merece e é digna. Vimos no domingo passado o que aconteceu com os touros do sr. visconde da Varzea, que os artistas queriam - como Minuto - apradar, e tiveram que retirar-se a bastidores ou ás taboas - como lhe queiram chamar - pois que os touros fugiam de um trapo encarnado, em que qualquer boi de carroça marraria. Isto assim não pode continuar de forma alguma, e carece de um remedio efficaz para pôr termo ao que se tem presenciado n'aquella praça. O preço que os lavradores levam pelos seus touros é muito razoavel e mesmo até bem pago, não havendo por isso motivo para que continuem  a mandar rezes de tão ordinaria qualidade como aquellas que este anno alli se teem apresentado, com raras excepções. Se não teem touros de confiança não os aluguem. Evitem ao menos a decadencia do seu nome como lavradores, já que obrigam a empreza - bode expiatorio - a lesar o publico, sem ter culpa do logro, pois que o unico responsavel pelo que fornece á empreza é o lavrador. Em abono da verdade, deve-se declarar que ainda ha lavradores que ainda tratam de apurar as suas raças, gastando para isso muito dinheiro e muito tempo. Se ainda não chegaram ao resultado desejado, hão de chegar mais tarde, com paciencia e vontade. N'estes casos estão, por exemplo, os srs. Maximo Falcão, Carlos Marques, Estevam de Oliveira, Laranjo, Emilio Infante, etc., etc., não incluindo José Palha, que não apura para as nossas praças. Não queremos no entanto dizer que todos os touros que teem vindo ao Campo Pequeno tenham sido maus, mas na maioria assim tem acontecido. É portanto, como novamente repetimos, um assumpto que carece de ser estudado com a maior atenção pelos srs. lavradores, com o que teem tudo a ganhar. Ficando hoje por aqui e passemos ao compte-rendu da tourada de domingo ultimo, que correu cheia de peripecias e incidentes, como vamos descrever.


Ás quatro e meia da tarde a praça estava completamente cheia no sol e na sombra, havendo alguns fauteuils e camarotes vagos. Compareceu a auctoridade no seu camarote á hora indicada, e o Botas, que já estava no seu posto, manda tocar a sahir a cuadrilla, que pouco depois apparece.

Todos os artistas de pé trazem gravata preta em signal de sentimento pela morte do desventurado Espartero. Feitas as cortezias cada um toma o seu logar. Lobito leva a farpa para o cavalleiro José Bento (de Araújo), sendo esta, depois de ter passado a diversas mãos, entregue finalmente por Fernando d'Oliveira ao seu collega, que se dirige ao camarote real, no qual estão Suas Magestades El Rei, que agradece a amabilidade. Dirige se para o curro, e sáe o 1.º touro, de nome

Gravato, preto, bragado, e aberto de cornea. - O distincto cavalleiro executa uma sorte de gaiola magistral, e põe em seguida um ferro á estribeira, um á tira, sendo o cavallo tocado, e um outro bom á estribeira. Pede ferros curtos e a competente auctorisação ao sr. Botas, que lh'a concede tirando o seu lustroso penante, e põe um par de bandarilhas á meia volta, que fica um pouco deanteiro. Dá signal o clarim para ser recolhido o Gravato, sendo chamado e muito applaudido o festejado artista.

Negro, bragado, de grandes pitones e baixel do esquerdo é o 2.º, que dá por Vagos. Calabaça á gaiola perde a sorte, pondo em seguida um par curto razoavel. Raphael Peixinho cita a rez, e n'esta occasião ouve-se um grande borburinho para os lados do curro. Os carecas, os campinos, os forcados e os vendedores de gazosa saltam á trincheira falsa, muito palidos e enfiados, e houve tal que... não ganhou para o susto. Era o caso que um outro touro apanhando a porta do curro aberta, sahiu, e como um raio, percorreu toda a trincheira tal a pondo tudo em debandada. Entra na arena, pouco depois, e sahindo os cabrestosrecolhem os dois touros, dando em seguida a liberdade ao Vagos. Raphael cita novamente e deixa um bom par a cuarteo. Entra novamente Calabaça que n'um cuarteo mau deixa um par, e remata Raphael com um par aberto a cuarteo tambem. O espada Minuto dirige-se para o touro, que se torna cobarde e fugidio, não sendo possivel fazer nada d'elle, fazendo signal ao Botas, que manda tocar. O publico protesta, e o artista dirigindo-se novamente á rez e com grande custo consegue tirar tres veronicas, finalisando com um adorno. Toca novamente e sáem os cabrestos. N'esta occasião o boi de guia persegue o espada Minuto, que muito atrapalhado corre para a trincheira para se vêr livre d'aquelle inimigo com que não contava n'aquelle momento.

Sáe para a arena o 3.º, que era o Coelho, torrado, bocalvo e gravito - Minuto, que á gaiola perde a sorte porque o touro lhe sahiu cortando o terreno, colloca depois um par a cuarteo, entrando Zayas, que deixa meio par em sorte identica. Repete Minuto, que põe um par cuarteando, superior, e sahindo novamente Zayas deixa um par á volta que remata desegual. Minuto cita novamente, deixando um par bom, e Zayas fecha a lide com um par a cuarteo razoavel. Bonarillo com o capote tira cinco veronicas e nada mais pode fazer porque o touro o que quer é campo ou charrua.

Apparece depois aos olhos dos espectadores o 4.º, que é tratado por Boneco, preto, de cornea regular e bem armado. - Á gaiola põe Theodoro um par muito bom; Cadete segue com um a cuarteo superior. Bonarillo faz dois recortes (palmas). Repete Theodoro, que deixa outro par bom a cuarteo, e sahindo Cadete colloca um tambem bom em egual sorte. Theodoro cita novamente, mas não consegue a sorte, e Cadete põe um par superior a sesgo (palmas). Lobito pega na muleta, e n'um baile que até fez inveja ao Justino, que estava no sector 1, principia com uns passes sem elegancia nem luzimento, finalisando com uma estocada a volapié bem assignalada, soffrendo um desarme. O Boneco é pegado de cara á segunda tentativa pelo cabo de forcados. E depois foram chamados Theodoro e Cadete recebendo muitos applausos.

Pertence a Fernando d'Oliveira o 5.º, que se chama Espelho, preto, listão, caraça, de muito pé e de bonita cornea. - O distincto cavalleiro offerece a sorte a El Rei, e dirigindo-se para a gaiola perde a sorte, principiando o cavallo a negar-se por completo ao toureio. Depois mette dois ferros á estribeira, dois citados de cara, e rematados á garupa, um á tira, sendo o cavallo tocado. Pediu para ferros curtos ao que o Botas accedeu, e apesar de muito trabalho não conseguiu pôr as bandarilhas, chegando mesmo a collocar o cavallo junto da cabeça do touro. Ouve-se o toque de retirada. O artista não obedece e continua toureando, mettendo ao fim de bastante trabalho os ferros quasi á força, indo o cavallo de encontro ás taboas. N'este momento ouve-se uns pum! pum! pum! Fernando é muito appaludido por uns e assobiado por outros. Recolhendo, desmonta se e deitando a correr pela trincheira falsa fóra, dirige-se a um espectador da barreira do sector 1, e tenta tirar uma satisfação das manifestações de desagrado. O Romão Gomes desce do seu logar e agarrando o artista leva o d'alli para fóra. Não achámos bonito o procedimento dem Fernando d'Oliveira, que não tinha nada que se dirigir ao espectador. Mas como todos erram, e o caso está liquidado como se vê d'umas cartas que abaixo publicamos, pomos ponto no assumpto. Depois d'um charivari medonho entre os espectadores, veiu para a arena o 6.º, que foi baptiado com o nome de

Carapucinho, preto e de pitones agravitados. - Pertenceu ao espada Minuto, que perdendo a sorte de gaiola, põe em seguida um par a cuarteo desegual, um a quiebro rtegularmente rematado, um a cuarteo razoavelmente posto, mas deanteiro; um par de sobaquillo, e finalisou com um par mal rematado, a cuarteo tambem. Pega na muleta e tira tres passes de peito, dois redondos, um natural, e arrancando a matar antes de tempo e sem o touro estar quadrado, resultou um fiasco de simulacro, soffrendo um desarme e tendo de fugir. Tentou nova estocada, nas mesmas condicções, e a espada vae pelos ares (assobios).

Intervallo. - Commenta-se de varios modos o incidente Fernando d'Oliveira, uns tomam o partido a favor, outros contra, e nos corredores ha grandes magotes de espectadores, não se falando d'outra cousa. A musica toca algumas peças bonitas, e d'ahi a pouco ouve-se o signal do cornetim. Não assisti á lide do 7.º touro, e quando entrei no meu logar dava-se o signal para sahir o 8.º, que dava por

Fagulha, preto, listão e bem armado. - Pertenceu a Bonarillo a sós, que á gaiola deixou meio par a quiebro muito bem marcado, em seguida citou de egual forma, pondo então um par excellente, e ainda um outro par da mesma forma, tambem muito razoavel (palmas). Em seguida pediu uma cadeira, e tentou fazer a sorte de silla, mas teve de abandonar a ideia, porque o touro se tornou cobarde e não arrancava. Depois citou a cuarteo, pondo um bom par, com o qual fechou a lide. Pegando na muleta teve uma faena elegante, parada e cingida, que deixou o publico bem impressionado, dando os seguintes passes: dois naturaes, tres de peito e dois cambiados, e dedicando a sorte de morte aos espectadores do sector 1, atirou-se bem e por alto, resultando uma estocada um pouco trazeira (palmas).

Sahiu depois o 9.º, que o Mau Ladrão me disse chamar-se Bonito, negro, listão e de grande cornea. Jorge Cadete á gaiola põe apenas meio par. Sáe Theodoro, que colloca um par a cuarteo, que resultou ficar descahido. Repete novamente Cadete, que deixa um par bom, e tornando Theodoro a citar, põe um par a cuarteo, muito bom, rematando Cadete com um par a sesgo, completo. O espada Minuto pegando na muleta dirigiu-se á rez e pouco depois teve de abandonar o seu intento, pois que ella só servia para o matadouro.

Lambisqueiro era o 10.º, preto, listão e de grande cornea. - Pertenceu aos cavalleiros José Bento (de Araújo) e Fernando. O ultimo, que perdeu a sorte de gaiola, soffreu uma recarga em que se viu atrapalhado, principiando o cavallo a negar-se. José Bento (de Araújo) põe depois um ferro á estribeira, sendo o cavallo tocado; sáe Fernando collocando um ferro em egual sorte bem rematado, começando o cavallo a negar-se por completo. tendo o distincto cavalleiro grande lucta. Finalisa depois José Bento (de Araújo) com um ferro á meia volta, bem posto. Depois de recolhido o touro principiam os applausos, apparecendo José Bento (de Araújo), que em seguida vae buscar o seu collega. Ouvem se muitas palmas e ao mesmo tempo manifestações de desagrado a Fernando d'Oliveira.

Pouco depois é dada a liberdade ao 11.º, que foi baptisado com o nome de Pimpão, negro e caldeiro. - Lobito, que perde a sorte de gaiola, põe depois dois pares a cuarteo, meio á volta, e termina com um par bom a cuarteo. Depois o touro é passado de capote pelos dois espadas e pelo novilheiro. Todos tres molham a sopa. O Pimpão é pegado de cara, á segunda tentativa e valentemente, porque o forcado á primeira foi vêr as estrellas.

Veiu depois o 12.º e ultimo, que dava por Barbacho, preto, corni curto, de muchas libras, com sete ou oito annos, e com mais praças de que o Bicha Fera de Carlos Marques, que morreu no sabbado, 2, no matadouro, e cuja cabeça foi adquirida pelo Albino, como recuerdo de tão notavel bicho, e que tanta avaria causou aos cavalleiros que o lidaram. - O matutão levou os seguintes ferros; um de Calabaça, razoavel; dois a cuarteo, regulares, de Minuto, e um bom em egual sorte, de Raphael. E assim fechou a lide da ultima corrida.

RESUMO

Touros: - Não acreditaram o sr. visconde da Varzea aqueles que forneceu para serem lidados no domingo no Campo Pequeno. Pelo contrario o seu nome perdeu muito. Á excepção de tres que sahiram regulares, quasi todos fugidios e cobardes, difficultando assim a lide. Corpulentos e bem tratados eram elles, o que muito honra o lavrador; mas simplesmente por este motivo não se deve ufanar, pois que o principal requisito é a bravura. A não ser na opinião de um certo critico que entende que a gordura do gado é motivo sufficiente para dar credito aos lavradores...
Tenha pois paciencia o sr. visconde da Varzea, que d'esta vez, os seus touros, entalaram-n'o nos seus creditos.

Espadas: - Bonarillo agradou-nos sobremaneira. A primeira vez que aqui se apresentou não conseguiu pôr-se em evidencia, devido, certamente, a ter sido colhido pelo 2.º touro, o que o impossibilitou de mostrar ao publico quanto vale como artista. O seu trabalho de domingo, embora não fôsse muito, satisfez-nos plenamente. Passou de muleta muito bem. Apresentou um toureio serio, elegante, parado e cingido, deixando o publico muito bem impressionado. Com bandarilhas o seu trabalho foi correcto. Entrou e sahiu com limpeza e elegancia da cabeça do touro. O pulico applaudiu-o e com toda a justiça. O espada Minuto comquanto estivesse um pouco infeliz teve a attenuante dos maus touros que lhe couberam. No emtanto deu alguns passes razoaveis; esteve desastrado na sorte de morte, atirando-se sem o touro estar nas devidas condicções,o que lhe resultou algumas manifestações de desagrado. Com bandarilhas andou regularmente, mas não da forma como se apresentou na primeira tarde que aqui o vimos trabalhar. Repetimos: tem a seu favor a attenuante dos maus touros que lhe pertenceu lidar.

Lobito com a muleta teve um trabalho irregularissimo, muito movido e sem elegancia. Com bandarilhas andou menos mal.

Cavalleiros: - José Bento (de Araújo) andou correctamente no 1.º touro que lidou evidenciando mais uma vez os dotes de artista primoroso. No 2.º, que lhe coube com Fernando, andou tambem correctamente, aproveitando o melhor que pôde um touro de difficil lide. Tornou-se notavel para todo o publico a maneira cavalheiresca como se portou para com o seu collega Fernando, o que verdadeiramente é digno de todos os elogios.


Fernando d'Oliveira errou em se não recolher quando tocou para findar a lide do 5.º touro, em que se tinha tornado notavel pela maneira como se houve na lide de tão difficil rez, em que conseguiu com uma vontade de ferro fazer brilhar o seu trabalho, tanto mais que teve de luctar com o seu cavallo, que se negava ao toureio, e que elle conseguiu quasi domar. No toureio com José Bento (de Araújo) andou tambem muito bem, attendendo ao cavallo, e sobretudo ao touro.

Bandarilheiros: - Sobresahiram como de costume os valentes e notaveis rapazes Theodoro e Cadete. Este ultimo então merece os maiores elogios, pois vemos que se dedica com vontade á arte de que jáé tão brilhante ornamento, pois que já executa o sesgo com a maxima perfeição. É para nós sempre agradavel registar estes factos que honram sobremaneira o artista e a tauromachia portugueza. Calabaça teve um par bom; Raphael, um superior e um bom: Minuto, dois bons e Zayas teve dois pares bons.

Forcados: - Duas pegas de cara, sendo uma rija a valer, uma de cernelha e nada mais.

Direcção: - Andou mal em não fazer cumprir o espada Minuto com a sua obrigação, e nunca devia ter tocado para recolher o touro, quando elle disse que não o passava. O publico gritou e d'ahi o resultado de ter de dar o dito por não dito. No resto bem.

Resumo final: - O publico muito descontente com a corrida pelos maus touros que o sr. visconde de Varzea apresentou, a quem fez uma grande manifestação de desagrado.

In A TOURADA, Lisboa - 10 de Junho de 1894