Arquivo Público do Estado de São Paulo
Tourada Tragica
(CARTA DE LISBOA)
O caso sensacional da semana - Morte de um toureiro portuguez
na praça do Campo Pequeno - Um precedente historico - Traços biographicos.
LISBOA, 15 DE MAIO.
Na semana passada
o grande caso sensacional de Lisbóa foi o crime do quartel da Estrella, em que
um soldado allucinado tirou a vida a dois officiaes. Tambem esta semana temos um
acontecimento desastroso a referir e que por egual emocionou toda a cidade.
Não se trata
de um crime, trata-se de um desastre que tirou a vida a um artista portuguez,
em circumstancias devéras extraordinarias.
Na
quinta-feira da Ascenção realizou-se uma tourada extraordinaria na bella praça
do Campo Pequeno. Os cartazes tinham reclamado
largamente a festa e, no numero dos lidadores, figurava o nome do cavalleiro
Fernando de Oliveira, tão estimado do nosso publico.
O dia apresentou-se
esplendido. Um sol ardente cahia sobre a praça e fazia brilhar todas as
bellezas desse espectaculo tão querido do nosso povo e tão genuinamente
singular.
Infelizmente
o gado não correspondeu aos reclames
que lhe tinham feito e no segundo touro destinado á lide a cavallo, (NOTA: O primeiro touro coube ao cavaleiro
José Bento de Araújo) appareceu na praça Fernando de Oliveira.
Fernando que
se apresentára na arena alegre, e bem disposto para a lide deste touro, o seu
primeiro que pertencia á ganaderia do sr. marquez de Castello Melhor, teve a
defrontar-se com uma rez mal intencionada.
Com um
trabalho diligente, e mettendo-se demasiadamente no terreno do touro,
conseguira collocar-lhe dois ferros a meia volta sem que fosse tocado. Ao
terceiro porém, e ao rematar a sorte, o touro colhe o cavallo, derruba-o e o
cavalleiro é cuspido da sella a distancia, ficando de bruços e sem sentidos.
Nesta
occasião, o touro arremette de novo do infeliz artista, a dá-lhe violenta marrada
na cabeça. Estabelece-se a confusão, accodem os capotes tardiamente, o corpo inanimado
de Fernando de Oliveira é levantado pelos forcados que accudiram pressurosos, sejam
ajudados pelos demais artistas, que o conduzem á enfermaria.
O publico
levanta-se xxxx impressionado e muita gente se dirige para xxxx a indagar o
succedido. Os soccorros medicos não se fazem esperar, e para xxxx Fernando
de Oliveira correm os srs. drs. Joaquim Salgado e xxxx Ribeiro e Arthur xxxx compareçam
os srs. drs. xxxx Tavares, Bebiano, Fernando de Almeida, Archer da Silva e
Gonçalves Marques, que verificaram ser grave o estado do estimado cavalleiro,
pois apresentava uma grande fractura na base do craneo, havendo tambem grande
homorrhagia interna.
Em vista da gravidade do caso foi o desditoso
cavalleiro mettido em uma maca e conduzido ao hospital de S. José, em estado
comatoso, e onde pouco depois de alli ter entrado expirava, sem nunca mais ter
dado accôrdo de si, desde o momento da terrivel colhida.
Calcule-se a
impressão que este horrivel espectaculo causou nos espectadores ! Eram mais de
6.000 pessoas que enchiam dois terços do grandioso amphitheatro e que, tendo
corrido a um divertimento, recebiam do acaso um espectaculo horrivel da morte !
Nas praças
hespanholas esses desastres são quasi freuqntes e o publico está habituado a
elles como os espectadores romanos ás tragedias do circo. Entre nós, porém, em
que o toureio tem perdido o seu caracter de selvageria e barbaridade para se transformar
num verdadeiro espectaculo artistico, sendo prohibida a entrada na praça de
gado desembolado, este desastre não tinha precedentes no nosso tempo. É preciso
recorrer ao seculo XVIII para se encontrar um outro caso de morte dum toureiro
numa praça portugueza. Foi esse no tempo de celebre marquez do Pombal, e,
tambem como agora, em presença de familia real.
Era uma tourada
de fidalgos, e um dos cavalleiros era o gentil e destemido conde dos Arcos,
filho do velho marquez de Marialva, mordomo-mór do rei e seu grande amigo.
Coube-lhe um touro dos peiores instinctos que o matou no meio da praça de
Salvaterra, onde a tourada se realizava.
Toda a
assistencia se levantou num movimento de horror, mas essa impressão subiu ao
auge quando, deante do cadaver do filho, saltou á praça, onde o touro escarvava
haurindo o cheiro do sangue, o velho marquez de Marialva.
Faz-se um
silencio absoluto, o annuncio das grandes sensações. E o marquez,
desembainhando a espada, avançou sereno para o animal, cujas hastes agudas e
despidas se erguiam como dois punhaes.
Serenamente citou o touro que, fitando o arremetteu
afinal ; e o marquez, com a firmeza do pulso, que fizera a sua reputação de
primeiro toureiro da peninsula nos tempos da mocidade, mergulhou-lhe a espada
na nuca, com uma tal destreza, que o touro succumbiu immediatamente.
E só então
duas lagrimas rolaram pela alvura das suas barbas sahindo sobre o corpo do filho
inanimado.
Este triste
episodio que inspirou algumas das melhores paginas de Rebello da Silva e levou
o marquez de Pombal a prohibir as touradas em Salvaterra, foi agora recordado
por occasião deste tragico acontecimento, por ser o unico precedente conhecido
de um caso de morte em praça de touros portugueza.
Eis alguns
traços biographicos do cavalheiro Fernando de Oliveira :
Nasceu na
villa de Banavente, povoação ribatejana, em 1859, contando, portanto, 45 annos.
Filho de lavradores e tendo recebido uma educação cuidada, cedo entrou na vida
commercial, em Lisboa, como caixeiro despachante.
Mais tarde,
e por morte de seu pae, Fernando de Oliveira dedicou-se á lavoura nas lezirias
da Villa Franca, mas a sorte foi-lhe adversa, perdendo nessa exploração os
capitaes que ahi empregára.
Em 1879
lidava rezes a cavallo pela primeira vez, na sua terra natal, e tão bem se
houve, alcançando um grande successo que o seu nome se tornou falado, não só
aqui como em Hespanha, onde mais tarde toureou por diversas vezes, uma das
quaes, em 1892, numa corrida de beneficencia em favor dos pobres de madrid e
Lisbóa, em companhia dos cavalleiros Alfredo Tinoco, Luiz do Rego e Manuel
Casimiro, sendo alli muito applaudido, merecendo do notavel critico taurino, o
fallecido Sanchez de Neira, os maiores elogios ao seu trabalho.
Foi por diversas
vezes ao Brasil, tendo ahi toureado com applauso recebendo do publico
fluminense geraes provas de estima e apreço realizando a sua ultima «tournée»
em 1902.
Toureou em
todas as praças do paiz, algumas das quaes em corridas de inauguração.
Demonstrando
desde o inicio da sua carreira um aturado estudo pela arte a que de dedicará, a
breve trecho alcançava pelos seus meritos artisticos um logar invejavel entre
os da sua classe.
Procurou
sempre dar o maior brilhantismo á lide equestre, empregando na forma de
castigar as rezes, um toureio artistico e variado, consoante ás condições em
que ellas se lhe apresentavam.
Dotado de
excepcionaes faculdades artisticas, auxiliadas por extraordinaria força de
vontade, Fernando de Oliveira foi incontestavelmente um dos modernos
cavalheiros que mais concorreu para imprimir a lide equestre novos attractivos,
o que em parte conseguiu, não sem que esse facto désse motivos grandes xxxxxxx,
como quando começou a realizar a sorte denominada «á garupa», cuja invenção lhe
é atribuida.
Artista correcto
e sereno, a sua fórma de tourear, por assim dizer inconfundivel, grangeara-lhe
grande somma de triumphos durante a sua carreira artistica, que , diga-se de
passagem, lhe acarretaram tambem algumas semsaborias provenientes de
animosidades partidarias que nada justifica, e que ao contrario, mais põem em
evidencia o merito daquelles a quem se dirigem.
Toureiro pundonoroso,
não soffrendo que alguem duvidasse de
sua coragem ante as rezes bravas, foi talvez um desses excessos de pundonor que
o levaram ultimamente a entrar demasiadamente no terreno dos touros, a causa,
ainda que involuntaria do desastre que lhe succedeu, e do qual lhe resultou a
morte.
Com a morte
de Fernando de Oliveira, perde a tauromachia nacional um dos seus mais brilhantes
ornamentos, e aquelles que com elle conviviam, um amigo sincero, dotado de
excellentes qualidades de caracter.
MASCARENHAS GAIVÃO.
In
CORREIO PAULISTANO, São Paulo - 2 de Junho de 1904